Frei Beto
Está em cartaz, em alguns cinemas do Brasil, o filme “Hannah Arendt”, direção de Margarethe Von Trotta. Por ser uma obra de arte que faz pensar, não atrai muitos espectadores. A maioria prefere os enlatados de entretenimento que entopem a programação televisiva.
Hannah Arendt (1906-1975) era uma filósofa alemã, judia, aluna e amante de Heidegger, um dos mais importantes filósofos do século XX, que cometeu o grave deslize de filiar-se ao Partido Nazista e aceitar que Hitler o nomeasse reitor da Universidade de Freiburg. O que não tira o valor de sua obra, que exerceu grande influência sobre Sartre. Hannah Arendt refugiou-se do nazismo nos EUA.
O filme de Von Trotta retrata a filósofa no julgamento de Adolf Eichmann, em 1961, em Jerusalém, enviada pela revista “The New Yorker”. Cenas reais do julgamento foram enxertadas no filme.
De volta a Nova York, Hannah escreveu uma série de cinco ensaios, hoje reunidos no livro “Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal” (Companhia das Letras, 1999). Sua ótica sobre o réu nazista chocou muitos leitores, em especial da comunidade judaica.
Hannah escreveu que esperava encontrar um homem monstruoso, responsável por crimes monstruosos: o embarque de vítimas do nazismo em trens rumo à morte nos campos de concentração. No entanto, ela se deparou com um ser humano medíocre, mero burocrata da máquina genocida comandada por Hitler. A grande culpa de Eichmann, segundo ela, foi demitir-se do direito de pensar.
Hannah pôs o dedo na ferida. Muitos de nós julgamos que são pessoas sem coração, frias, incapazes de um gesto de generosidade os corruptos que embolsam recursos públicos, os carcereiros que torturam presos em delegacias e presídios, os policiais que primeiro espancam e depois perguntam, os médicos que deixam morrer um paciente sem dinheiro para custear o tratamento. É o que mostram os filmes cujos personagens são “do mal”.
Na realidade, o mal é também cometido por pessoas que não fariam feio se convidadas para jantar com a rainha Elizabeth II, como Raskólnikov, personagem de Dostoievski em “Crime e castigo”. Gente que, no exercício de suas funções, se demite do direito de pensar, como fez Eichmann.
Elas não vestem apenas a camisa do serviço público, da empresa, da corporação (Igreja, clube, associação etc.) no qual trabalham ou frequentam. Vestem também a pele. São incapazes de juízo crítico frente a seus superiores, de discernimento nas ordens que recebem, de dizer “não” a quem estão hierarquicamente submetidas.
Lembro de “Pudim”, um dos mais notórios torturadores do DEOPS de São Paulo, vinculado ao Esquadrão da Morte chefiado pelo delegado Fleury. Ele foi incumbido de transportar o principal assessor de Dom Helder Câmara, monsenhor Marcelo Carvalheira (que mais tarde viria a ser arcebispo de João Pessoa), do cárcere de São Paulo ao DOPS de Porto Alegre, onde seria solto.
Antes de pegar a estrada, a viatura parou à porta de uma casa de classe média baixa, em um bairro da capital paulista. Marcelo temeu por sua vida, julgou funcionar ali um centro clandestino de tortura e extermínio. Surpreendeu-se ao se deparar com uma cena bizarra: a mulher e os filhos pequenos de “Pudim” em torno da mesa preparada para o lanche. O preso ficou estarrecido ao ver o torturador como afetuoso pai e esposo...
Uma das áreas em que as pessoas mais se demitem do direito de pensar é a política. Em nome da ambição de galgar os degraus do poder, de manter uma função pública, de usufruir da amizade de poderosos, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem a seco abusos de seus superiores, fazem vista grossa à corrupção, se abrem em sorrisos para quem, no íntimo, desprezam.
Essa a banalidade do mal. Muitas vezes ele resulta da omissão, não da transgressão. Quem cala consente. Ou do rigoroso cumprimento de ordens que, em última instância, violam a ética e os direitos humanos.
Assim, o mal viceja graças ao caráter invertebrado de subalternos que, como Eichmann, julgam que não podem ser punidos pelo genocídio de 6 milhões de pessoas, pois apenas cuidavam de embarcá-las nos trens, sem que elas tivessem noção de que seriam levadas como gado ao matadouro das câmaras de gás.
Dois exemplos da grandiosidade do bem temos, hoje, em Edward Snowden, o jovem estadunidense de 29 anos que ousou denunciar a assombrosa máquina de espionagem do governo dos EUA, capaz de violar a privacidade de qualquer usuário da internet, e no soldado Bradley Manning, de 25, que divulgou para o WikiLeaks 700 mil documentos sigilosos sobre a atuação criminosa da Casa Branca nas guerras do Iraque e do Afeganistão.
Correio da Cidadania
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