Retórica inflamada e brutalidade marcam debate sobre ‘policiais soldados’ nos EUA
Pablo Uchoa
Criação da SWAT nos anos 70 teria dado início a militarização das polícias americanas. Policiais com escasso contato com as comunidades que patrulham, uma retórica da "guerra contra tudo" e batalhões antichoque que saem para manifestações treinados e equipados para reprimir.
A fórmula, que parece aplicável a diversos países do mundo, também explica em parte os altos níveis de militarização das polícias americanas.
O problema foi acentuado após os ataques de 11 de setembro de 2001, segundo especialistas e grupos que defendem as liberdades civis no país.
Uma ilustração deste fenômeno ocorreu recentemente quando a polícia de Concord, capital do Estado americano de New Hampshire, pediu ao governo federal uma verba de mais de US$ 250 mil (R$ 578 mil) para comprar um veículo armado a ser usado em operações contra o "terrorismo".
Os "terroristas" a quem a petição se referia na cidade de 40 mil habitantes eram manifestantes do Occupy local e de organizações libertárias, como o grupo Free Staters Project, que busca convencer os "amantes da liberdade" a se mudar para New Hampshire.
"(Nossa) experiência com terrorismo se inclina para o tipo doméstico", alertava a petição, obtida pela União das Liberdades Civis de New Hampshire (NHCLU) justamente para mostrar o excesso de zelo policial neste caso.
"Temos sorte de nosso Estado não ter sido vitimado por fatalidades em massa causadas por eventos de terrorismo internacional, mas na frente doméstica, a ameaça é real e presente. Grupos como Sovereign Citizens, Free Staters e Occupy estão ativos e representam um desafio diário."
Depois da polêmica, o pedido saiu pela culatra e o chefe da polícia local, John Duval, foi obrigado a se explicar. "Olhando para trás, eu preferia ter dito as coisas diferentes", disse Duval.
Policial soldado
Embora localizado, o episódio serve de exemplo para um fenômeno que especialistas vêm observando nos EUA desde os anos 1970: a cultura de uma polícia crescentemente militarizada e, de quebra, violenta.
O treinamento militarizado, hoje lugar comum, as transferências de armamentos excedentes das Forças Armadas para as polícias e as verbas antiterrorismo disponibilizadas após 2001 acentuaram o processo que começou com a criação da SWAT nos anos 1970, explica o jornalista investigativo Radley Balko em um livro sobre o assunto.
Nos anos 1980, a "guerra contra as drogas" se somou à "guerra contra o crime", relata Balko em Rise of the Warrior Cop: The Militarization of America’s Police Forces ("Ascensão do Policial Guerreiro: A Militarização das Forças Policiais Americanas", em tradução livre).
"Quando você pega um soldado, o veste, treina, arma e manda para rua como soldado, e repete que ele está lutando uma guerra, isso tem um efeito na forma como ele vê o próprio trabalho", disse Balko à BBC Brasil.
"Quando um político declara guerra contra tudo, aquilo que você combate vira uma tal ameaça existencial que estamos dispostos a sacrificar algumas liberdades civis para combatê-la."
O autor acredita que "pode-se argumentar que o terrorismo seja uma ameaça existencial ─ mas o crime e as drogas certamente não são".
Criando violência
O pesquisador afirma que as operações violentas de esquadrões como a SWAT saltaram de menos de dez nos anos 1980 para entre cem e 150 por dia atualmente.
"A grande maioria delas está criando violência onde não existia, entrando na casa das pessoas no meio da noite sem mandado de prisão, criando volatilidade e violência em vez de pacificação", afirmou o jornalista.
Um indício pouco notado do abuso policial é ─ curiosamente ─ o número de cães mortos durante este tipo de missão.
"Quando você pega um soldado, o veste, treina, arma e manda para rua como soldado, e repete que ele está lutando uma guerra, isso tem um efeito na forma como ele vê o próprio trabalho."
Radley Balko, autor do livro Rise of the Warrior Cop: The Militarization of America’s Police Forces
A vida canina pode não valer tanto quanto uma humana, concede o pesquisador, mas a morte dos animais "é indicativo desta mentalidade de soldado: o cachorro é apenas um dano colateral que você precisa tirar da frente".
No fundo, é a mesma "mentalidade de nós contra eles" que explica a violência contra grupos de manifestantes pacíficos, acredita Balko.
Mas ele crê que uma "mudança no debate" começou a surgir com a expansão das tecnologias móveis de gravação de imagens, que hoje são comuns mesmo nas comunidades de menor poder aquisitivo.
"Antes, a palavra de um policial era sagrada, mesmo que os juízes, chefes de polícia e policiais soubessem que havia algo errado. Hoje, quando você tem uma imagem feita por um amador que não pode ser contestada, no mínimo a polícia precisa apurar os fatos e investigar os soldados", afirma.
"Transparência é o primeiro passo para a prestação de contas."
'Justiça'
Balko e outros especialistas também enfatizam a necessidade de aproximar os policiais da comunidade que patrulham.
Tom Tyler, professor da Universidade de Direito de Yale, argumenta que "buscar uma cooperação ativa com a comunidade é a melhor maneira" de identificar corretamente as ameaças e não incorrer em excessos policiais.
Em um podcast com o instituto de pesquisas em segurança Vera Institute of Justice, o especialista disse que a aplicação da lei de forma justa salta aos olhos como um fator quase absoluto para que as comunidades enxerguem as polícias com legitimidade.
Sua pesquisa analizou a relação policial com comunidades muçulmanas em Londres e Nova York. Mas o pesquisador disse que, surpreendentemente, a etnia e religião não foram decisivas para explicar o nível de cooperação entre comunidades e a polícia.
"Nem o fato de eles serem muçulmanos, nem o fato de questionarem as políticas americanas em nível nacional tiveram importância para essa cooperação", disse Tyler. "Eles estão preocupados com a maneira como a polícia trata as pessoas dentro da comunidade."
O pesquisador disse que esse achado vale mesmo para as comunidades onde a ameaça de terrorismo não seja prioridade.
"Acredito que seja uma oportunidade para a polícia, porque se eles olharem para estas conclusões com seriedade, se implementarem políticas e buscarem equidade nos procedimentos, podem alcançar a cooperação com as comunidades", disse.
BBC Brasil
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