sábado, 10 de agosto de 2013

Orçamento impositivo: necessidade e oportunismo




A prática política e institucional terminou confluindo para um grande acordo entre os dois poderes, de maneira que os congressistas se contentam com o espaço criado para votação e execução da matéria de seu interesse exclusivo, as chamadas “emendas parlamentares”.

Paulo Kliass

A questão orçamentária é um dos elementos basilares da organização do Estado e das relações entre o poder público e o conjunto da sociedade. A prática do orçamento moderno no mundo ocidental remonta ao início do fim dos regimes monárquicos da Europa. No caso específico da Inglaterra, tratava-se da reação de representantes do Parlamento, que passaram a estabelecer limitações ao poder de tributação do rei e também começaram a exigir que o soberano apresentasse as contas dos gastos realizados a partir dos impostos arrecadados.

Assim, a dinâmica entre o poder executivo e o poder legislativo passou a incluir também etapas relativas a elaboração, apreciação e votação do orçamento. É claro que a realidade de cada país e a especificidade de cada momento histórico oferecem contornos diferenciados e particulares para esse tipo de relação. No caso brasileiro, a Constituição de 1988 e a legislação regulamentadora posterior preveem um conjunto de regras e normas a serem obedecidas, com datas e peças legais muito bem definidas.

As múltiplas faces da matéria orçamentária

O Poder Executivo tem um prazo para enviar o Projeto de Lei Orçamentária ao Congresso Nacional – final de agosto de cada ano. O Poder Legislativo, por seu turno, não pode encerrar a sessão legislativa anual sem que a peça orçamentária tenha sido aprovada. Os Projetos de Lei relativos ao Orçamento da União deverão ser analisados, ao longo da sua tramitação, por uma Comissão Mista permanente composta de senadores e deputados – é o caso da Lei Orçamentária Anual (LOA), da Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) e do Plano Plurianual (PPA). Enfim, há um conjunto de dispositivos detalhando os procedimentos a respeito da matéria.

No entanto, há uma distância enorme entre a intenção inicial do constituinte e do legislador em comparação com a realidade do processo político e legislativo ao longo desses 25 anos da promulgação da Constituição cidadã. Na prática, o poder efetivo fica com o governo e o legislativo acaba influenciando muito pouco nas definições fundamentais das peças orçamentárias. A prática política e institucional terminou confluindo para um grande acordo entre os dois poderes, de maneira que os congressistas se contentam com o espaço criado para votação e execução da matéria de seu interesse exclusivo, as chamadas “emendas parlamentares”.

A ausência de debate e o foco nas emendas parlamentares

Dessa forma, aquilo que deveria ser um espaço para debate a respeito das prioridades gerais da formatação da origem das receitas e da alocação das despesas públicas perdeu muito em substância. As emendas elaboradas pelos parlamentares individualmente ou em grupo (comissões temáticas das duas casas e bancadas dos estados de origem) terminam por se converter em uma moeda de troca para assegurar a fidelidade dos parlamentares nas demais votações de matérias de interesse do governo.

Além disso, a dinâmica do mandato do parlamentar e a lógica de sua perspectiva de reeleição a cada 4 anos passam a depender, em grande medida, das emendas por ele apresentadas ao Orçamento. Na sua base de ação político-eleitoral, a sua popularidade e seu reconhecimento frente à população acabam por serem subordinados à sua capacidade de “trazer” benefícios para a cidade, para o bairro, para o grupo de interesse ou espaço político similar. Dessa forma, a maioria dos representantes eleitos mantêm uma relação com o eleitorado baseado nesse tipo de reconhecimento. Quem está alinhado politicamente com a coalizão governista do momento acaba sendo beneficiado na distribuição da execução das emendas. Os parlamentares de oposição tendem a ser prejudicados nesse aspecto.

Na ponta, no momento de inauguração do centro de saúde, da reforma da escola, no início da obra de saneamento, na pedra inaugural do viaduto ou no repasse de recursos para alguma ONG ou entidade associativa, o nome do parlamentar é que é lembrado com sendo a pessoa que conseguiu trazer o recurso para a obra ou evento. Aquilo que seria uma deturpação da forma republicana de organização das relações entre cidadãos e governo, converte-se em uma prática aceita como “natural” e incorporada na dinâmica cultura, social e política. O parlamentar é considerado “bom” se traz esse tipo de benefício para a população. Os que escapam a esse perfil terminam por ser punidos pelo eleitorado no momento do escrutínio.

Orçamento: autorizativo versus impositivo

É dentro dessa lógica que deve ser compreendido o movimento atual, que se articula mais uma vez no interior do Congresso, de luta pelo chamado “orçamento impositivo” ou “orçamento obrigatório”. A proposta surge da observação de que o orçamento no Brasil é apenas “autorizativo”. Isso significa que o Congresso Nacional autoriza o Executivo a realizar aquele volume de despesas, mas o governo não é obrigado a realizá-lo daquela forma e naquele volume. Esse “detalhe” passa a ser fundamental a partir do momento em que a utilização da política fiscal restritiva se converte em instrumento privilegiado de política econômica. Com isso, o governo promove contingenciamento de despesas, por exemplo, e termina por reduzir em muito o volume de gastos ao longo do exercício. As sobras de caixa são, em geral, utilizadas para geração do superávit primário e para efetuar as despesas de natureza financeira – o tal do superávit primário.

À medida que o Orçamento da União passa a ser encarado como uma grande peça de ficção, o movimento para mudar tal realidade se fortalece. A ideia é que, depois de todo o esforço de apreciação e votação da LOA, o governo seja obrigado a se comprometer com a sua execução. Com isso, haveria menos margem de manobra para fugir às determinações estabelecidas pelo Poder Legislativo. A peça orçamentária deixaria de ser autorizativa e passaria a ser impositiva, na forma da lei.

Porém ocorre que a tentação de escapar desse tipo de determinação externa é característica de qualquer governo de plantão. Vai daí que a mudança de governo em 2003 não foi acompanhada das transformações que o PT sempre havia proposto à época em que estava na oposição. O Orçamento da União continuou a ser exclusivamente autorizativo e as tentativas de transformá-lo em impositivo foram devidamente descartadas e esquecidas. A argumentação é a de sempre: esse tipo de medida promoveria o chamado “engessamento” na condução desse instrumento de política econômica, a política fiscal. O governo perderia margem de manobra para implementar mudanças necessárias, caso a conjuntura econômica e política assim o exija.

O debate atual: necessidade de mudança e fisiologismo

A volta do debate sobre a matéria ocorre justamente em momento de maior sensibilidade no debate da base aliada e a proposta vem justamente dos principais aliados do PT e do governo no Congresso. A versão inicial de Proposta de Emenda à Constituição (PEC 565/2006) é do Senador José Sarney e tem sido estimulada a tramitar em ritmo acelerado na Câmara dos Deputados pelo presidente da casa, deputado Eduardo Alves, do PMDB.

Assim, o que ocorre na prática é uma deturpação da boa intenção inicial do conceito do orçamento obrigatório. A grande maioria dos deputados e senadores têm demonstrado ao longo da história recente que não estão lá muito preocupados com o debate de fundo, a respeito das grandes linhas do desenho orçamentário ou com as prioridades mestras da execução das despesas públicas. Sua ação está mais voltada para lograr a liberação da verba de sua emenda específica, para que a obra ou o projeto de seu mandato seja concluído. E aqui entra, portanto, o caráter oportunista do debate atual sobre a natureza impositiva que se pretende conferir ao Orçamento da União. O foco se mantém sobre a obrigatoriedade apenas do Executivo liberar as emendas parlamentares e executar as despesas a elas associadas.

Na verdade, corre-se o risco de perder a oportunidade de um debate sério a respeito do Orçamento e da necessidade do Congresso Nacional não ser mais enrolado pelo governo em seu dia-a-dia de execução das despesas, na forma de ações, programas, projetos e obras. Como sempre, a discussão e a polêmica acabam permanecendo restritas a detalhes de natureza meramente fisiológica, sob o manto de verniz de um suposto respeito à autonomia do poder legislativo. Alguns partidos da base aliada, em um momento de revolta e descontentamento, lançam mão da ameaça de dificultar a vida do governo no parlamento.

Parece evidente que o Orçamento deveria ser executado pelo Poder Executivo em sua integralidade, uma vez concluído a tramitação e a discussão de suas prioridades e os detalhes de seus programas, ações e projetos em escala nacional, regional e local. Porém, a pior forma de iniciar esse tipo de debate necessário de mudança é introduzir o elemento fisiológico. É de uma pequenez absurda restringir o foco ao atendimento dos interesses mesquinhos do parlamentar em sua base eleitoral. A natureza obrigatória da execução da peça orçamentária é muito maior do que o oportunismo de plantão derivado da prática política fisiológica.

Carta Maior

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