O sociólogo Jessé Souza, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, foi o convidado para o debate Classes sociais no Brasil contemporâneo.
Segundo ele, todas as sociedades compostas por classes não são igualitárias. “A classe é um processo de fabricação de indivíduos desiguais. Historicamente, desde a Revolução Francesa, a sociedade moderna legitima-se como se não tivesse desigualdade no sangue, como se as diferenças estivessem no talento individual, mas isso não é verdade. Não compreender isso faz parte do processo para não perceber as classes”, afirmou.
O debate, ocorrido no dia 16/8, no salão internacional ENSP, foi uma promoção da Diretoria de Planejamento da Fiocruz. Uma das debatedoras foi a vice-diretora de Pós-Graduação da ENSP, Tatiana Wargas. Para Jessé, a questão das classes sociais é muito mal compreendida. “O mais importante fenômeno social é o pertencimento das classes. Isso não tem a ver com a renda, mas com o fato da pessoa nascer numa determinada classe e, portanto, ter acesso a esse ou aquele bem material”, disse. De acordo com o sociólogo, a concepção de classe tem a ver com qualquer coisa que se deseja, seja roupa, carro, prestígio, escolha de parceiro etc. “As pessoas, em geral, se casam com parceiros da mesma classe social.”
O caso do Brasil é muito perverso, assim como a África e a Índia. “O Brasil é um país que se percebe como herdeiro da cultura portuguesa. Isso é um senso comum absurdo, porque é como se a população se identificasse como una”, disse. Esse é um tema presente na obra do criador do Brasil moderno, o escritor Gilberto Freyre, e o ex-presidente Getúlio Vargas utilizou-se de tal entendimento. “Na verdade, somos advindos de uma sociedade escravocrata, e não portuguesa”, acrescentou.
"O economicismo reduz a capacidade compreensiva da realidade"
As pessoas são, explicou o professor, o que as instituições constroem como comportamento, com uma consciência obediente e não reflexiva. Jessé questiona a posição política da classe média brasileira nas manifestações e seus apelos contra a corrupção. “O economicismo reduz a capacidade compreensiva da realidade. Nega-se a falar de classes, mas fala de faixas de renda. Isso faz perder o impacto, porque o conceito de classe social é mais importante. Só se fala de classe para repetir a ideologia dominante de que somos todos iguais. O que ganha mais é porque produz mais, é uma consequência do talento individual, é a meritocracia”, destacou.
Ele caracteriza o Brasil em quatro classes: ralé, trabalhadora, média e dominante. “A ralé é composta de pessoas inutilizadas, tratadas como verdadeiros lixos humanos.” A “nova” classe média assimila o capital cultural e diversas “habilidades” caras ao mercado, como concentração, disciplina, memorização, garantindo, assim, bons empregos. E a ínfima parcela dominante (os “endinheirados”) se apropria de 70% do PIB nacional recolhido por meio de ganhos de capital, como juros, lucro e rendas fundiária e imobiliária urbana (aluguéis).
A classe média, historicamente, sempre foi a tropa de choque dos “endinheirados”, disse Jessé. Sobre essa questão, Carlos Sávio Gomes Teixeira, professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal Fluminense, que participou como debatedor do evento, elogiou o palestrante por trazer o tema das classes sociais para a academia e a sociedade.
“O Brasil passou por mudanças políticas significativas nos últimos 20 anos. Não existe ‘nova’ classe média, mas modificações de expectativas, pressões, desafios. O acesso ao consumo é uma forma de escapar do mundo de horror”, analisou Carlos Sávio. Ele lembra a participação decisiva da classe média na história do Brasil, em momentos como a luta contra a escravidão, a Aliança Liberal, o golpe militar de 1964, a redemocratização do país com o movimento Diretas Já e a construção do Sistema Único de Saúde.
A vice-diretora de Pós-Graduação da ENSP, Tatiana Wargas, lembrou que, na década de 1970, houve necessidade de expansão das garantias de cidadania. “O Estado estava enraizado com interesses não democráticos, mas sim privados nacionais e internacionais”, disse. De acordo com ela, para haver expansão de direitos, era necessário expansão do acesso universal. “Hoje, temos um sistema de saúde com 46% de financiamento público e 54% privado. Uma ampla parcela da população está longe de acessar altas tecnologias e insumos”, informou.
Ao mesmo tempo em que se lutava pelo acesso universal, explicou Tatiana, os sindicatos reivindicavam planos de saúde. Por isso, acrescentou, é preciso reconhecer não só o que está na Constituição Federal, mas buscar o que temos desenvolvido como práticas que não têm gerado políticas de saúde.
Durante o debate aberto ao público, Jessé falou da concepção da má fé institucional nas inter-relações do Estado com a sociedade quanto à avaliação da prestação dos serviços básicos. “Dizer uma coisa e fazer outra é a negação prática da dita postura universalista do Estado. A saúde e a educação são terrenos inegáveis das contradições das classes brasileiras”, concluiu.
O evento é parte de um conjunto de iniciativas da Diretoria de Planejamento (Diplan/Fiocruz) que visam à preparação das discussões no VII Congresso Interno da Fiocruz.
Ensp Fiocruz
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