Protagonismo ilusório
Existe uma categoria na sociologia do imaginário chamada protagonismo ilusório ou ilusão de protagonismo. Em outra linha sociológica esse mesmo fenômeno é rotulado de efeito de testemunho. Trata-se no popular do “eu vi, eu vivi, eu estava lá, eu sei”. A sociologia não faz muito sucesso na mídia. É considerada chata e ideológica. Faz papel de Mister M. Gosta de revelar o truque e estragar o espetáculo. Existe para desmascarar, revelar e mostrar o funcionamento de tudo, até da mídia. Jornalistas detestam isso. Num documentário sobre o sociólogo Pierre Bourdieu, uma pessoa, numa palestra, acusa-o de intelectualismo e diz que o sociólogo é “psiquiatria da periferia”. Bourdieu sente-se insultado.
O protagonismo ilusório é mais forte quando se trata de história. Muitas pessoas acham que sabem muito sobre determinada época por terem vivido nela. Pode-se, contudo, viver num tempo e saber pouco sobre ele. Ou saber apenas aquilo que os meios da comunicação espelharam, traduziram, deformaram e divulgaram. O testemunho direto não é garantia de análise dos acontecimentos. A lente ideológica, cultural, social e existencial de cada um, mergulhada na convulsão dos eventos, angula, conforma, transforma, reforma e impõe um ponto de vista. Só o historiador, com o maior número de documentos em mãos e com algum distanciamento temporal dos acontecimentos, pode recolocar tudo em situação.
– O historiador é o psiquiatra do passado.
A desvantagem do historiador é depender de documentos, que têm a própria história e podem mentir ou enganar tanto quanto uma memória esburacada. A desvantagem do protagonista é a falta de distanciamento ou de visão de conjunto. Há uma situação mais grave: a ilusão de protagonismo dos coadjuvantes, aqueles que viveram uma experiência histórica sem ter acesso aos seus bastidores mais profundos. O que dirá, dentro de 50 anos, um de nós sobre o julgamento da famosa Ação Penal 470?
– Ação Penal 470?
– O julgamento do mensalão.
– Ah! Eu sei tudo. Eu vivi, eu vi, eu sei.
– Que revista você lia?
– A Veja.
– Huummmm…
– E tu?
– A Carta Capital.
– Bah!
Quem poderá contar essa história? O ministro Joaquim Barbosa? Qualquer um dos seus pares de STF? Todos terão muito a dizer. Mas somente um historiador poderá cruzar todos os fios e amarrá-los com pertinência e visão global. Um historiador de 2063, mesmo tendo nascido em 2015, poderá saber mais do que Joaquim Barbosa e seus colegas sobre o mensalão se tiver acesso ao maior número de documentos e de depoimentos possíveis. Esse é o paradoxo do historiador. Ele deve saber mais sobre uma época do que aqueles que a viveram. Não saberá sobre tudo. Mas, curiosamente, deverá saber sobre o muito específico e, principalmente, sobre o conjunto, o todo.
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