sexta-feira, 26 de julho de 2013

'Bolsa Família deve ser direito constitucionalizado'



Em livro, socióloga conta como o programa ajuda a reabilitar autoestima das mulheres beneficiadas

Uma das maiores vitrines dos governos Lula e Dilma Rousseff, o Bolsa Família deveria ser um direito constitucionalizado e não apenas um programa social. Quem defende a ideia é a socióloga Walquiria Domingues Leão Rego, professora da Unicamp e autora do livro Vozes do Bolsa Família (Editora Unesp), escrito em parceria com o professor de filosofia da UFSC Alessandro Pinzani.
Marsílea Gombata

“O Bolsa Família não deveria ser um programa de governo, mas uma política de Estado, assim como o salário mínimo”, explica Walquiria. O livro tem como foco a experiência das mulheres titulares do benefício.

Além de ter sido responsável pela retirada de mais de 36 milhões de brasileiros da pobreza extrema, o programa completa dez anos com o mérito de ter dado às suas beneficiárias um pouco mais de dignidade e autoestima.

“Essa pesquisa mostra que existe um grande sofrimento e uma parcela de cidadãos que sofre toda a sorte de humilhações. O Bolsa Família ajuda nesse sentido", explica a autora em entrevista a Carta Capital. “Imagine que elas não precisam mais pedir comida, por exemplo, e hoje podem comprá-la. Isso faz uma diferença muito grande.”

A pesquisa, que dialoga com teorias da filosofia e da sociologia – como a sociologia do dinheiro –, esbarra em consequências da miséria no âmbito moral e psicológico de seus atores. Como, à página 50, em que os autores concluem que “...uma situação de pobreza material aguda resulta em sentimentos de humilhação, em falta de autoestima e de autorrespeito e, mais em geral, num sentimento de alienação perante o seu mundo que pode até levar a perturbações psicológicas de vários tipos (não foi incomum em nossa pesquisa encontrarmos mulheres que apresentavam claros sintomas de depressão).”

Cientes de que, “no caso brasileiro, nossa pobreza, de modo geral, tem cor: é mulata, negra; e isso remete imediatamente à experiência da escravidão”, a análise se faz sobre mulheres muito pobres, que não tinham uma experiência importante decorrente de uma renda regular prevista antes de receber o benefício. “O que discutimos no livro é que o Bolsa Família, ao ser recebido em dinheiro, libera as mulheres”, afirma Walquiria. “O dinheiro tem essa função liberatória.”

Mas por que a escolha do Bolsa Família dentre as dezenas de programas sociais brasileiros? Segundo a autora, a eleição deu-se pelo grau de “autonomização” trazido pelo benefício em dinheiro. “Diferentemente de uma cesta básica, por exemplo, o dinheiro permite algumas escolhas que as mulheres não conheciam. Como comprar arroz em vez de macarrão”, exemplifica.

Autonomia política. Além do aspecto econômico, o Bolsa Família trouxe ainda independência política. Algumas mulheres, observa a autora, antes dependiam mais de coronéis para comer e sustentar suas famílias Hoje, diz, elas se libertaram dos chefes locais.

O estudo faz cair por terra quaisquer teses de que o benefício faria uma população dependente do Estado sem estimular sua autonomia ou mesmo a de que não se deve dar dinheiro aos pobres, uma vez que não saberiam como empregá-lo. “Isso é preconceito puro”, rechaça a pesquisadora.

As mulheres ouvidas comprovam o contrário: entre as 150 entrevistadas, somente duas afirmaram ter deixado de trabalhar para viver da bolsa. Elas gastam a verba prioritariamente com alimentos, em especial para as crianças.

Os autores ouviram, entre 2006 e 2011, mais de 150 mulheres cadastradas no Bolsa Família, nas regiões empobrecidas onde a circulação de dinheiro é escassa. São algumas delas: sertão e litoral de Alagoas, interior do Piauí e do Maranhão, periferias de São Luís e do Recife, e o mineiro Vale do Jequitinhonha, “onde as ruas e as casas são povoadas por cachorros famintos, galinhas com pescoços menores que um polegar, pintinhos do tamanho de beija-flores, gatos esqueléticos.”

A escolha da amostra se deu em torno de “beneficiárias que moram em áreas rurais ou em pequenas cidades do interior, por entender que sua situação se diferencia muito da dos pobres urbanos, objeto já de inúmeros estudos”, explicam os autores no livro.

“Essas regiões isoladas, onde não há nada, não têm fábricas ou trabalho. Ali precisaria de muito investimento público para, primeiramente, qualificar as pessoas que são analfabetas, observa Walquiria.

Ela avalia, no entanto, que o objetivo final do programa, de retirar as pessoas da extrema pobreza, foi alcançando. “É um primeiro passo importante e que significou muito. Basta lembrarmos de como o recente boato sobre o fim do Bolsa Família levou 1 milhão de pessoas a sacar dinheiro”, lembrou. “Isso mostra o significado decisivo e a importância da bolsa na vida dessas pessoas. Imagino o desespero em que ficaram com esse maldoso boato.”

Carta Capital

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