quarta-feira, 11 de julho de 2012

“Cracolândia”: retrato de um fracasso

Cuidando dos dependentes




Seis meses depois da megaoperação policial, reportagem revela: drama social e desrespeito aos direitos humanos persistem. 

Só especulação imobiliária ganhou com ação dos governos paulistas 


Estevan Muniz

Os números apresentados pela Secretaria de Segurança Pública são eloquentes: quase 83 mil abordagens, 489 prisões, mais de 6 mil encaminhamentos para serviços de saúde e 775 internações, além de 66 quilos de drogas apreendidos. Nada disso, porém, conseguiu por fim à Cracolândia, no centro de São Paulo, conforme previa o projeto de “limpeza” da área iniciado em janeiro pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB), em parceria com a administração Gilberto Kassab (PSD).

Seis meses depois das ações repressivas da PM, a região, que fica entre o Campos Elíseos e o bairro da Luz, continua concentrando grande número de dependentes de crack. E a presença da polícia, nas ruas, ainda é maior do que a dos agentes de saúde.

Em janeiro, a denominada “Operação Sufoco” prendeu 296 pessoas e internou 195. A prefeitura demoliu imóveis condenados, que seriam ocupados pelo tráfico de drogas. A ideia era “limpar” a região para facilitar o desenvolvimento do polêmico projeto Nova Luz, que favorece a especulação imobiliária e sofre vários questionamentos na Justiça por ter desapropriado um bairro inteiro em benefício da iniciativa privada.

Originalmente, a Operação Integrada Centro Legal tinha três fases. A primeira consistia em quebrar a logística do tráfico, para, segundo o governo do estado, criar condições para a intervenção da saúde, com uma presença intensa da polícia por 30 dias.

A segunda fase previa ações sociais e de saúde aos usuários, com abordagens e encaminhamento. Agora, seis meses depois, seria o momento da terceira fase, já sem a presença de usuários – mas isso parece estar longe de acontecer.

As cenas chocantes de policiais acuando hordas de viciados, mostradas pelas TVs em janeiro, continuam acontecendo. PM e a Guarda Civil Metropolitana (GCM) não interromperam a chamada “romaria do crack”, que consiste em mover os usuários de uma rua para outra, forçando-os a circular no bairro, como se fossem uma manada de bois. A comparação é feita por uma usuária, cujo segundo nome é Laura.

“Só queria que a polícia deixasse a gente em paz”, disse ela. “Eles nos descem pra lá, sobem pra cá, tiram a gente dali e voltam pra cá. Não podemos ficar em paz em lugar algum. Aqui a gente está por enquanto, porque já já eles vêm e nos tiram”.

A reportagem presenciou a GCM expulsando um grupo de usuários de um quarteirão da rua Helvétia. Antes de a polícia chegar, alguns deles gritam, em aviso aos demais: “Oh a loira passando de caminhão”, um código no qual a ‘loira’ significa a polícia. A GCM coordenava o fluxo de pessoas. Em seguida, passavam agentes da Limpeza Urbana, com um caminhão-cisterna varrendo a rua com água. Minutos depois, o mesmo grupo se encontrava concentrado em outro quarteirão, na própria Helvétia, a 100 metros dali.

“Uso crack desde 1980, quando surgiu o crack”, conta Laura, que não quis revelar a idade. “Foi a pior coisa que eu fiz na vida. Isso é horrível, é avassalador, é a pior coisa que pode acontecer com um ser humano. Você sabe o que é ficar 24 horas só dependendo daquilo? O crack não te deixa dormir, não te deixa comer, você parece um zumbi”.

Quando a operação começou em janeiro, ela conseguiu escapar, indo para os bairros vizinhos. Laura não reconhece qualquer aspecto positivo da ação da PM. “Eles xingam a gente, chamam de vagabunda e de escória e batem na gente. Todo mundo que mora aqui é amigo, nós convivemos bem. O único problema é a PM. Eu sei que isso é terrível, que ninguém quer ter noia na porta de casa, mas infelizmente acontece, em algum lugar a gente tem que ficar”, disse.

Questionada se não tinha interesse em se internar e se não pensou que a ação da polícia poderia ser uma boa oportunidade para tanto, respondeu: “Todos os meus conhecidos que foram internados em janeiro voltaram. Eu já fui internada dez vezes, e eu voltei”. Laura poderia ter mudado para outros bairros, como o Glicério e o entorno do Elevado Presidente Costa e Silva, o “Minhocão”, como outros usuários fizeram após a operação, mas disse que se acostumou com a Cracolândia. “Eu tenho família, mas, quando eu surto, eu sumo e venho pra cá, por dois ou três dias, depois eu volto pra minha casa e fico meses lá.”

A operação policial foi alvo de denúncias de violação aos direitos humanos feitas pela Conectas e outras três entidades ao Conselho de Direitos Humanos das Organizações Unidas. Em junho, o Ministério Público de São Paulo, que considerou a ofensiva um “mero exercício higienista”, ajuizou ação pedindo condenação do governo do estado e indenização às pessoas submetidas à operação policial, por danos morais, no valor mínimo de R$ 40 milhões.

Os promotores pediram a concessão de uma liminar que impedisse a PM de fazer a “romaria do crack”. “A operação mostrou-se totalmente ineficiente”, disseram os promotores Justiça Arthur Pinto Filho, Eduardo Ferreira Valério, Luciana Bergamo Tchorbadjiane e Maurício Antonio Ribeiro, em nota divulgada pelo MP.

Eles afirmaram que a “romaria” dificulta o trabalho de agentes de saúde no local e de entidades que realizam trabalhos sociais com os usuários. “Ela gerou graves violações aos direitos humanos, ofendeu princípios do Estado Democrático de Direito e desperdiçou vultosos recursos públicos”, sustentaram eles, na ação.

Para comerciante da região, presença policial não resolveu nada

A quantidade de usuários diminuiu, na região, de acordo com os comerciantes que ali trabalham. A maioria deles, contudo, acredita que a região continua a ser um “antro” do crack. Dermivaldo Pereira tem comércio na região desde 1970. “Está a mesma coisa, oh eles ali”, contou, apontando para usuários na rua de sua loja de conveniência.

Everaldo Siva Ribeiro, que vive há 30 anos no bairro, aprova a presença da polícia. “Não tem mais roubos, e não tem mais noia na minha rua”, disse. Ele afirma, entretanto, que a Cracolândia ainda existe e que os usuários continuam presentes na região.

Outros comerciantes que preferiram não ser identificados são avessos à operação da polícia. “Eles [a PM e a GCM] acham que só porque a gente mora aqui é traficante”, disse um deles. A ação da polícia é abusiva, e as abordagens aos moradores é excessiva e agressiva, segundo eles.

Em janeiro, a prefeitura afirmou que o comércio da região sofria com a presença dos dependentes e as lojas estavam sendo fechadas. Pereira, entretanto, conta que alguns usuários são clientes de seu estabelecimento e que não há qualquer desavença com eles.

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