A compra de votos – uma aproximação empírica ( Excertos)
Bruno Wilhelm Speck
O fenômeno da compra de votos é um assunto relevante na política contemporânea? A própria legislação eleitoral reconhece a existência do problema proibindo explicitamente a compra de votos. No entanto, segundo as constatações da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), não tem sido possível coíbi-la de forma eficiente. O engajamento da CBJP, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no assunto da corrupção eleitoral iniciou-se com as eleições municipais de 1996. Naquele ano a CNBB defendeu na Campanha "Fraternidade e Política" o uso consciente do voto como ferramenta para influenciar os rumos da política. O voto consciente foi confrontado com a prática da compra de votos, que a CNBB identificou como uma das maiores distorções da democracia brasileira.
A organização elaborou nos anos seguintes um amplo diagnóstico do problema e uma proposta para modificar a legislação, tornando a sua aplicação mais fácil e mais rápida (vide Câmara dos Deputados, 1999). Durante o ano de 1999 o processo de mobilização da sociedade para encaminhar o projeto ao Congresso Nacional resultou na coleta de mais de um milhão de assinaturas. Como resultado, o projeto tramitou em tempo recorde no Congresso, sendo aprovada a Lei 9.840/99, que passou a vigorar a partir das eleições municipais de outubro de 2000. Esta modificação do Código Eleitoral tornou a coibição da prática de compra de votos pela justiça eleitoral brasileira mais factível.
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O grito de alerta de um órgão respeitado como a Igreja católica chamou a atenção da sociedade para a atualidade do problema da compra de votos. É grande, porém a dificuldade em diagnosticar a extensão deste problema. Levantamentos; qualitativos durante a mobilização confirmaram o panorama das trocas materiais nas quais se baseia a compra de votos, abrangendo remédios, sapatos, materiais de construção, iluminação para uma rua, um alvará para a construção, material escolar e inúmeros outros itens que poderiam constar numa cesta das necessidades básicas da população brasileira. Na academia, a antropologia política dedica-se recentemente ao estudo das eleições, revelando o enraizamento de práticas como a negociação do voto no tecido social brasileiro. Mas apesar destas investidas no terreno da ilustração e da análise qualitativa, ainda não havia diagnóstico preciso sobre a extensão da prática da compra de votos no Brasil contemporâneo.
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Retrospectiva e Sistematização
Segundo Scott (1971), a compra de votos é um fenômeno intermediário e transitório na sucessiva implementação de sistemas de governo representativo em muitos países. Devemos distinguir três etapas: primeiro, o voto sob chantagem ou extorsão; segundo, o voto negociado ou comprado e terceiro, o voto como manifestação de crédito ou reprovação de candidatos e representantes políticos.
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O voto negociado: Não é o caso aqui de analisar as práticas do mandonismo local, o coronelismo e outras modalidades deste fenômeno na literatura. Mas há uma transição decisiva de voto alienado para o voto negociado. Na medida em que as relações de dependência socioeconômica entre eleitor e patrão enfraquecem e com a garantia do segredo eleitoral, a posição do eleitor no processo político passa por uma transformação. A instrumentalização do eleitor no processo eleitoral, tanto pela elite local como pelos candidatos, passa de uma fase de imposição e coerção social para outra fase da sedução material. E no horizonte surge um papel completamente novo para o eleitor na medida em que ele se torna mais informado e emancipado através dos meios de comunicação de massa.
A nova relação entre eleitor e candidato baseia-se em um sistema de trocas em condições assimétricas, tanto em relação aos atores envolvidos como aos objetos negociados. Há um grande desnível de poder entre a elite política e a massa dos eleitores e o recurso do poder político é negociado por vantagens materiais imediatas aos eleitores. As variedades socioculturais deste voto negociado são muitas, mas sob um ângulo de sistematização, três dimensões da compra de voto são importantes: a primeira delas refere-se ao número de eleitores envolvidos nas transações de troca. A negociação individual com eleitores é complementada pelas transações com grupos e organizações, como moradores de uma mesma rua, igrejas ou clubes. A segunda dimensão refere-se ao objeto da troca. Além de benefícios materiais, como bens e dinheiro, o apoio eleitoral a um candidato poderá ser negociado em função de compensações não materiais como empregos, favores administrativos e influência política através de cargos. A origem de grande parte destes benefícios não se encontra mais nos recursos privados do candidato, mas sim no abuso de recursos do poder público. A terceira dimensão refere-se ao momento de compensação. Há um contínuo, abrangendo vantagens imediatas até trocas envolvendo compromissos futuros. O posicionamento de uma transação concreta em relação a estas três dimensões exerce um impacto sobre a caracterização da compra de votos. Quanto mais individual a negociação, quanto mais material a compensação e mais imediata a troca, mais evidente será a compra de votos.
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A compra de voto, hoje
A compra de voto ainda é uma realidade nas eleições brasileiras. A observação empírica confirma que as eleições são caracterizadas por uma intensa negociação de bens materiais, favores administrativos, e promessa de cargos. Sendo uma prática antiga, ela ocorre dentro de determinados padrões recorrentes. Pode ser organizada por integrantes da própria máquina de campanha do candidato (distribuição de cestas e bens pelo candidato), por correligionários independentes que, com recursos próprios ou de terceiros, conseguem comprar votos para um candidato (por exemplo médicos que dão atendimento gratuito) ou por cabos eleitorais, que profissionalizaram a negociação dos votos. Estes últimos estão geralmente ligados a um representante político municipal, e atuam como uma espécie de intermediário permanente de serviços públicos e outros favores. A dificuldade da interface entre a administração e o cidadão e o caráter opaco dos órgãos públicos são a base para este facilitador que, ao contrário dos outros agentes, atua não só no período eleitoral mas de forma permanente, mesmo em anos em que não há eleições.
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Opin. Publica vol.9 no.1 Campinas May 2003
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-62762003000100006
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