terça-feira, 3 de julho de 2012

Neobovarismo ou sobre nós mesmos



Márcia Tiburi

A correspondência entre a insatisfação e a dissimulação nossa de cada dia


“Bovarismo” é a expressão criada por Jules de Gaultier para explicar a insatisfação com a própria vida característica de Madame Bovary, heroína do romance de Flaubert que aprendeu nos livros a se iludir sobre a possibilidade de ser outra. O fim de Emma Bovary foi o suicídio, em explícita fuga do real. Bovarismo é, desde então, a postura daquele que, se negando a viver a própria vida, sonha com outra. O bovarista viveria como se fosse o protagonista de um romance. 


Antes da morte, para Emma, havia o livro, a única mídia sobre a qual Flaubert podia instaurar sua história em que a questão da função da ficção na vida estava em jogo. Desde as ilusões de Emma podemos tentar compreender nossa cultura em que o livro é esquecido dando espaço ao cinema e à televisão. Perguntar qual teria sido o destino da moça sonhadora em nossos tempos hiperpublicitários, em que toda insatisfação é resolvida com o tapa-furo existencial da mercadoria, não é absurdo. O que ela faria nestes tempos do prestígio da Internet como domínio fantasmático?

Para além da literatura, do lado de cá da ficção que chamamos ainda por convenção de “real”, devemos dizer que os integrados a esta cultura hipertecnológica são avatares de Emma Bovary.

O termo “avatar” provém do hinduísmo e significa uma encarnação de um deus em forma humana ou animal. Em sânscrito é a descida do Céu à Terra. É tão curioso quanto lógico que o termo tenha feito carreira no universo do entretenimento tecnológico. Chamam-se Avatar um desenho animado de televisão e um jogo de videogame. São a representação gráfica de um usuário no contexto da realidade virtual. O avatar é uma espécie de selo. Alguém que queira usar jogos ou brincadeiras ou simplesmente se expressar por meio de um ícone na internet deve necessariamente criar seu avatar. Alguns sites falam em “alter ego virtual”, outros apenas incentivam o usuário a trocar a própria foto em contextos como chats, MSN, Facebook, Orkut, Twitter, nos quais alguém precise se apresentar. Avatar é algo que apresenta e, em seu caráter de máscara, fala, de certo modo, por quem se apresenta. Vale como brincadeira. O paradoxo do avatar é o seu próprio prazer: que por meio dele alguém se apresente sem se apresentar. Como máscara virtual, o avatar permite entrar no virtual sem ser visto no real que carrega por trás. A afirmação do real não vem ao caso no jogo da internet. Afinal, in-lusio significa entrar em jogo.O avatar entre nós promete essa mágica. E quem não gostaria de dominá-la?

Dissimulação

Crianças são incentivadas a criar seu avatar – corpos, cabelos, cor da pele, cor dos olhos, roupas, moradias, profissões, gostos, objetos de uso pessoal… –, fazendo dele o outro que o si mesmo almeja ser: o idealizado, o “pertencente a uma tribo” ou o mero sinal, o design, o ícone. O bonequinho – como um botão que substitui o ego – que permite “interagir”. Está em jogo também o destino do que um dia se chamou de “representação”.

A internet não é mais o lugar de “representações”, uma categoria que servia para explicar tanto a política quanto a estética. Ela é o lugar de “simulações”. Podemos dizer que por trás de toda representação há um irrepresentado, algo que não se contempla, que escapa, que fica de fora no esforço de exposição e de demarcação daquilo que se tem a dizer por meio da representação.Essa sobra é o real. Pode haver enganação na representação, quando alguém tenta representar aquilo que não é.

A simulação pode ser um modo de fazer arte de computador, mas quando ela chega à vida concreta as coisas podem se complicar. Simular é recriar o real sem que se esteja a representá-lo. Se o real comparece na representação como uma alusão, na simulação ele é a novidade. No entanto, se ao representarmos nos referimos ao real como algo que foi imitado ou alterado, na simulação o real é desconsiderado como o que em nada surpreende. Por trás da simulação há, portanto, o que se dissimula, mas não saber disso faz parte do jogo. Quando escondemos algo, deixamos de impor abertamente, manifestamos tão somente, como que por viés, aquilo que não pode ser dito no “olho no olho”. Dissimular é um desvalor em um contexto que valoriza a verdade, mas se simular tornou-se óbvio é porque algo como a “verdade” já não importa. Capturar a dissimulação em pessoas com quem convivemos é muito difícil, mais ainda no discurso de quem conhecemos só pela Internet.

No começo da modernidade, Torquato Accetto defendeu a ideia de uma “dissimulação honesta” como a necessidade, própria do caráter precário da condição humana, de adiamento da verdade na esfera pública. Não seria necessariamente a sustentação da mentira, mas um jeito de sobreviver em um mundo de paixões. Um mundo que deseja a honestidade, mas ao mesmo tempo a teme e, portanto, se especializa em contatos indiretos com ela. Caillois defendeu o mascaramento como uma prática lúdica própria da vida humana e animal. Sem moralismo, enquanto simular é mostrar o que não está presente, dissimular é não deixar aparecer aquilo que está presente. O dissimulado disfarça, mas o que pode ver? Para além do prazer de usar máscaras, ou de fingir, ou de atuar, é, para muitas pessoas, a única chance de viver uma vida menos insatisfatória. O neobovarismo seria a chance de ser a expressão do que não se é. Seria também a inexpressão pessoal que encontra um jeito de não aparecer?

Mutilação existencial

A hipervalorização da vida privada como algo passível de “aparição” (blogs, fotologs, videologs, culto às celebridades ou a si mesmo) corresponde ao extermínio do espaço público que se sustenta em caricaturizações da política, da arte e do próprio conhecimento. Essa hipervalorização resulta de uma espécie de mutilação existencial. A privação de biografia leva à caricaturização da vida privada. A experiência pessoal não aparece na parafernália impressa ou virtual senão como fantasmagoria.

A biografia da qual somos privados ressurge em sua versão larval nesses meios como promessa de identidade, de inserção, de contemplação por parte do outro. O outro é alguém a ser enganado fundamentando a minha esperteza.

Afinal, sou “avatar”, tenho uma encarnação virtual com a qual ataco e me protejo. Cada um está facilmente desincumbido de ser ele mesmo até quando faz guerrilha psíquica.

Ao mesmo tempo em que avança a caricaturização da privacidade por suas representações nos meios de comunicação e até pelas artes que incorporaram o princípio do reality show (vide as obras confessionais de Catherine M., de Sophie Calle e de seu ex-namorado Grégoire Bouiller), vemos crescer o aumento da clandestinidade na política (vide os “atos secretos” perpetrados pelo Senado brasileiro em estado de putrefação neste ano de 2009). Enquanto Catherine M. confessa todas as suas aventuras amorosas, as traz a público, os políticos escondem o que seria direito de todos saber. Saberemos de algumas coisas, mas apenas enquanto forem capturadas e mais ou menos espetacularizadas pelos meios de comunicação.

Enquanto isso, neobovaristas, nem artistas, nem políticos, criamos nossos avatares. Bem mais fácil do que reiventar a vida real. É a contemplação de si mesmo que está em jogo quando entra em cena a máscara que barra qualquer relação com o espelho. Sua falta é a única certeza real. Bovaristas na internet, temos o sonho inteiro à nossa disposição, enquanto o real apodrece sem que o computador nos deixe sentir seu cheiro. 

Revista Cult n. 139 de 2009

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