terça-feira, 17 de julho de 2012

Família, amigos e crise de crédito



Marcelo Neri
Catarina Bessell


Estamos há alguns anos mobilizados pelos impactos macroeconômicos do terremoto financeiro deflagrado pela quebra do Lehman Brothers, em 2008.

Dadas a natureza creditícia e contagiosa da crise em curso e a ênfase que se tem dado ao crédito ao consumidor, é interessante tirar lições dos efeitos micro da megacrise na vida dos tomadores de crédito produtivo popular no país.

Começamos pela base de dados do Crediamigo, que é o maior programa de microcrédito da América do Sul, hoje com 1,2 milhão de clientes, a grande maioria atuantes nas cidades nordestinas brasileiras.

A base do Crediamigo permite acompanhar ao longo do tempo balanços e demonstrativos de resultados completos dos negócios nanicos, incluindo interfaces com despesas e ativos familiares, que é algo raro.

Criamos uma amostra pareada de não clientes a fim de isolar os tomadores de crédito dos não tomadores em situações similares.

Esse "efeito placebo" é particularmente importante, pois as cidades nordestinas têm crescido mais que as demais.

O lucro dos clientes do microcrédito nas cidades nordestinas tem crescido nos últimos anos 9,3% ao ano acima daquele observado no conjunto dos pequenos negócios.

Agora o ganho anual de lucro dos clientes do Crediamigo, embora positivo e superior aos dos demais, caiu 7,7% depois da crise europeia de 2011.

As relações entre Crediamigo e Bolsa Família estudadas são mais controversas, pois não contamos com análise controlada, mas tomadas a valor de face indicam crescimento maior dos beneficiários do Bolsa Família do que dos não beneficiários.

Ou seja, há evidências de que o microcrédito conseguiu produzir um diferencial no crescimento de lucros favorável aos seus clientes vis-à-vis o seu grupo de controle nos cenários analisados.

Esse diferencial não cai, mas aumenta com a presença do Bolsa Família, mas cai com o aprofundamento dos efeitos da crise creditícia em curso.

Da cidade ao campo: o censo agropecuário mostra que, apesar de o microcrédito ser mais escasso no Nordeste e para os pequenos produtores da faixa do Pronaf B, estava mais presente nesta faixa na área rural nordestina.

A explicação para esse mistério nordestino é a atuação do programa Agroamigo, também ligado ao Banco do Nordeste, que atua nessa faixa e já conta com 1,1 milhão de clientes.

Em tempos normais, uma amostra longitudinal de clientes do Agroamigo (sem grupos com controles, mas sem placebo) demonstra o ganho de lucro real de 15,3% e uma taxa de inadimplência um décimo daquela observada no Pronaf B, fruto da atuação de agentes de crédito incentivados por prêmios.

No crédito como na atividade agrícola, há que separar o joio do trigo. Isso não se faz atrás de um balcão com ar refrigerado.

É preciso inspiração e incentivos para a transpiração na busca dos melhores clientes.

Uma amostra mais recente permite captar os efeitos de um drama local mais sério que a crise global: a forte seca que hoje assola o sertão nordestino.

As principais causas de atrasos no microcrédito lá são ligadas à água, como sistemas de irrigação e de cisternas que reduzem em 2/3 a taxa de inadimplência controlada.

A principal defesa contra os atrasos não é a poupança prévia ou outros instrumentos financeiros, mas o Bolsa Família.

O sol, símbolo da solidariedade que dá nome a muitas iniciativas de microcrédito na América Latina, tem sido implacável no sertão nordestino.

Programas sociais têm irrigado as condições de vida locais no auge da seca em curso. Fome, migração e saques não estão presentes na conjuntura atual.

Interfaces entre programas sociais, como o Bolsa Família, e produtivos, como o Agroamigo e o Crediamigo, devem ser potencializadas.

Lembrando a máxima: família não se escolhe. Na pobreza, como na família, não temos a opção de não ajudar. Já amigo pressupõe troca, então devemos sempre poder buscar e escolher.

Folha de São Paulo

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