Paulo René advoga para mais de 60 ocupações urbanas no Rio Grande do Sul
Samir Oliveira
Especialista em Direito Urbanístico e advogado do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana, Paulo René trabalha com mais de 60 ocupações no Rio Grande do Sul – quase todas possuem ação de reintegração de posse expedida pelo Judiciário.
Nesta entrevista ao Sul21, ele fala sobre o tratamento dispensado pela Justiça aos temas ligados à luta pela moradia. Para o advogado, o entendimento de juízes e desembargadores sobre o tema vem mudando e está, cada vez mais, contemplando o direito social da propriedade e o direito à moradia, ao invés de considerar somente o direito à propriedade.
Paulo René entende que a prefeitura de Porto Alegre deveria agir com mais rigor em relação aos vazios urbanos, atuando com multas e desapropriações sobre os imóveis que ficam durante anos inutilizados ou subutilizados. “O Demhab acaba desempenhando o papel de um construtor civil. No que diz respeito à regularização fundiária, não tem função nenhuma”, critica.
“99,99% dos proprietários de vazios urbanos são especuladores imobiliários”
“Especular de forma imobiliária, subutilizar ou inutilizar um terreno são coisas proibidas pela legislação” |
Sul21 – Como começou teu envolvimento com os processos relacionados à luta pela moradia?
Paulo René – Sou especialista em Direito Urbanístico, tenho um escritório que faz esse tipo de trabalho. As famílias nos procuram para fazer uma defesa junto aos processos de reintegração de posse. Trabalhamos muito com regularização fundiária, que é um conjunto de medidas administrativas, judiciais, ambientais e urbanísticas. Não tem muitas especializações nesta área. É uma matéria que ainda está engatinhando. O Direito Urbanístico é uma ramificação do Direito Administrativo. De uns cinco anos para cá, ele está começando a andar com as próprias pernas, em função do volume de ações existentes. Temos muitos institutos jurídicos e excelentes profissionais trabalhando nessa área, o que falta é vontade política por parte dos gestores. Se o prefeito é interessado, ele vai se preocupar em ver como está o déficit habitacional na cidade e procurar no Plano Diretor quais áreas se constituem em vazios urbanos. O prefeito não pode permitir a existência de vazio urbano, porque a lei não permite. O proprietário dessa área deve ser notificado e precisa apresentar, em até seis meses, algum projeto para o terreno. Isso não acontece, porque 99,99% dos proprietários de vazios urbanos são especuladores imobiliários. São grandes empresas que querem ganhar ainda mais dinheiro. Especular de forma imobiliária, subutilizar ou inutilizar um terreno são coisas proibidas pela legislação. Se em seis meses o proprietário não apresentar nenhum projeto, a prefeitura pode aplicar uma taxação cumulativa de 15% sobre o imóvel. Se esse imposto não for pago, a prefeitura pode desapropriar o terreno através de títulos da dívida pública. O município pode receber praticamente de graça uma área para construir loteamentos e acomodar as famílias de sem teto. Basta ter vontade.
Sul21 – Como surgiu a relação com os movimentos sociais e a interlocução com o Fórum das Ocupações Urbanas?
Paulo René – Eles buscam o advogado que tem uma identidade. Quem trabalha nessa área é um advogado diferente de um tributarista, que não sai muito do escritório. O advogado que trabalha com Direito Urbanístico não pode ser simplesmente um advogado positivista, tem que estar identificado com a causa e visitar as comunidades.
Sul21 – Tu advogas para quantas ocupações?
Paulo René – O Fórum tem umas 35 ocupações, mas eu tenho cuidado de mais de 50. Tem 65 ocupações com risco de reintegração de posse nesse próximo ano. Isso está nas mãos da Brigada Militar, para que eles iniciem os trabalhos. Eu estou cuidando de pelo menos 70% destas ações.
“Ninguém fica encostado esperando a ocupação vingar para depois ir morar lá”
“O poder público, hoje, é um inimigo”
Sul21 – Qual o perfil destas ocupações?
Paulo René – O Rio Grande do Sul é um estado muito patrimonialista. Aqui, a propriedade foi defendida à ponta da lança. A gente se cria com estigmas em relação a essas pessoas, pensando que não trabalham, que querem apenas viver de graça em uma propriedade particular. Eu vivenciei essas ocupações, permaneci em algumas delas durante 15 dias, conversando, dormindo e comendo com essas pessoas. Eu me deparei com pessoas muito organizadas, com mães guerreiras e com uma organização interna muito eficiente, com tarefas distribuídas para todos. Ninguém fica encostado esperando a ocupação vingar para depois ir morar lá. Essas pessoas querem adquirir a área. Para isso, precisam ter organização interna. Encontrei muita seriedade e muito trabalho nas ocupações. Existe uma bolha imobiliária prestes a estourar. O aluguel de uma peça de 15m x 8m está custando R$ 700. Ninguém mais consegue sustentar isso.
Sul21 – O surgimento das ocupações é uma reação a esse quadro.
Paulo René - Eles buscaram os vazios urbanos. Alguns juízes, para eliminar a possibilidade do fortalecimento das ocupações, dos líderes e dos movimentos, acabam qualificando os ocupantes como praticantes de ilícito penal. Isso é uma aberração jurídica. Eles são combatentes de uma falta de fiscalização do poder público. São soldados municipais, porque identificam o vazio urbano e lhe atribuem uma função social, restabelecendo uma habitabilidade nas áreas degradadas. Quem deveria entregar isso para eles é o poder público, mas o poder público, hoje, é um inimigo. Para se fazer uma regularização fundiária, são precisos levantamentos socioeconômico, topográfico e jurídico. O projeto é entregue à prefeitura, que demora até dois anos para fazer uma aprovação. Tem gente que está há mais de dez anos na fila.
“Os juízes não têm como escapar a essa proximidade com os movimentos sociais”
Sul21 – No que diz respeito à política habitacional, a maior responsabilidade fica com o município, com o estado ou com a União?
Paulo René – Quem tem a competência de fiscalizar o parcelamento do solo é o município. O município tem total responsabilidade pelo déficit habitacional. O primeiro passo para que consigamos trabalhar melhor esse assunto é a informação. O Judiciário, o Legislativo e o Executivo estão mal informados. Despreparo é o grande problema que enfrentamos, principalmente por parte do município. E também temos má vontade política. Em Porto Alegre, não há decreto de uma Área Especial de Interesse Social desde 2009. Na atual gestão, de 2012 para cá, nunca foi decretada uma AEIS. Já me foi dito pela atual gestão que eles não querem fazer isso “porque o município não é imobiliária”.
“Tem juízes que mandam passar com as máquinas em cima das casas e tem juízes que reconhecem o direito constitucional à moradia”
Sul21 – Tu apresentaste um projeto ao Judiciário para a criação de uma Vara específica para apreciar processos relativos a direito urbanístico e disputas fundiárias. Como funcionária essa Vara?
Paulo René – A criação da Vara parte da ideia de que o Judiciário não pode determinar uma ação de reintegração de posse sem que antes sejam exauridos todos os tipos de conciliação. Essa conciliação precisa se dar entre Ministério Público, prefeitura, proprietários, associação dos ocupantes, advogados e magistrado. São vários entes convergindo para que se faça a aquisição da área. Existe muita discrepância em relação a esses processos. Tem juízes que mandam passar com as máquinas em cima das casas e tem juízes que reconhecem o direito constitucional à moradia e a legitimidade do movimento social. Existem decisões totalmente diferentes e absurdas. O magistrado tem liberdade de convicção e de convencimento, mas temos que padronizar algumas coisas, senão ninguém se entende. A maioria dos juízes nem marca audiências. Se eu fosse magistrado, iria querer ir até as ocupações.
“O Judiciário precisa acompanhar a evolução e se curvar aos fatos sociais”
Sul21 – Nunca soube de um caso de um juiz que desejou verificar a realidade de uma ocupação urbana.
Paulo René – Nenhum juiz vai. A modelagem que temos para a Vara específica prevê que o juiz veja como estão se desdobrando as ocupações e quais são os anseios delas. O juiz precisa vivenciar essa realidade. Não podemos trabalhar com o direito à moradia como se fosse um processo sobre um acidente de trânsito. Estamos trabalhando com crianças e idosos – dois segmentos que são protegidos por estatutos, portanto o Ministério Público também tem que estar junto. Tem juízes que consideram os processos envolvendo o direito à moradia como meramente patrimoniais. Trata-se de um direito social. Isso me levou a colocar esse projeto de criação da Vara específica na mesa do Judiciário.
“A primeira vez que o Tribunal de Justiça recebeu o movimento social foi quando paramos Porto Alegre”
Sul21 – Uma Vara específica não poderia acabar sendo ocupada por juízes com entendimentos contrários à função social da propriedade?
Paulo René – Se o profissional for capacitado e conhecer o processo, os proprietários, o movimento social e a prefeitura, os ocupantes serão os primeiros a aplaudir qualquer decisão. Quem vive em uma ocupação precisa conhecer o magistrado que está julgando seu processo, sentar na frente dele. Os juízes não têm como escapar a essa proximidade com os movimentos sociais. Tem que acabar com essa história de juiz que não gosta de receber “ocupante com cheiro ruim”. Essa realidade vai mudar se tivermos juízes especializados. Quando os juízes compreenderem a realidade social, serão capacitados e respeitados – os próprios movimentos vão entender que serão julgados de forma justa. Hoje um processo cai na mesa de um juiz que já possui outras 20 ações semelhantes, uma formação patrimonialista e uma fundamentação descompassada e arcaica em relação à realidade atual. O Judiciário precisa acompanhar a evolução e se curvar aos fatos sociais.
Sul21 – O Tribunal de Justiça está dando seguimento a esse projeto?
Paulo René – Sim. Eles fizeram um levantamento de todas as ações de reintegração de posse que estavam em tramitação para que soubessem o tamanho do problema. A primeira vez que o Tribunal de Justiça recebeu o movimento social foi quando paramos Porto Alegre. E a resposta foi dada, disseram que iriam estudar o nosso pleito. Antes de sair uma decisão de reintegração de posse, colocando cavalos e tropa de choque em cima de mulheres e crianças, as pessoas precisam ser ouvidas.
“Acabou essa história de propriedade intocável. Agora os movimentos sociais têm vez”
“Se o proprietário não der uma destinação ao imóvel, perderá sua posse”
Sul21 – Como tu vês a aplicação do princípio constitucional da função social da propriedade?
Paulo René – Antigamente, o Judiciário não trabalhava com o princípio da função social da propriedade dentro das ações de reintegração de posse. Hoje existe uma tese lançada por nós que trabalha com a ideia de que a função social da propriedade é um braço do direito à propriedade. Quem não exerce a função social da propriedade não tem direito de buscar uma garantia para seu imóvel. Se o terreno está subutilizado, inutilizado e produz vazio urbano, o imóvel não está exercendo sua função social. Nesses casos, o proprietário não deveria ter o direito de ingressar com uma ação de reintegração de posse. Se existe um direito constitucional à propriedade, também existe a responsabilidade do proprietário de atribuir ao imóvel a sua função social. Não é possível que os vazios urbanos sejam produzidos sem que haja alguma consequência. Uma das consequências é a retirada da possibilidade de buscar uma tutela para esse próprio imóvel. Ou seja, se o proprietário não der uma destinação ao imóvel, ele perderá sua posse. Acabou essa história de propriedade intocável. Agora os movimentos sociais têm vez, isso está mudando a forma como o Judiciário trabalha os processos ligados ao direito de propriedade.
Sul21 – Essa noção da propriedade como uma entidade intocável está mudando?
Paulo René – Sim. Inclusive temos votos de desembargadores que dão importância a movimentos sociais e à função social da propriedade. Cerca de 60% das varas que trabalham com processos de regularização fundiária já estão compreendendo que o direito à moradia tem uma supremacia diante do direito à propriedade. Estão adotando o princípio da razoabilidade, ou seja: vale o direito da coletividade diante do direito patrimonial do proprietário.
Sul21 – Qual a tua avaliação a respeito do trabalho do Departamento Municipal de Habitação (Demhab)? A maioria das pessoas que vivem em ocupações não se sente acolhida pelo órgão.
Paulo René – O Demhab é omisso, é um departamento que regulariza só o que já está pacificado. Hoje, se um presidente de uma cooperativa solicita regularização fundiária para o Demhab, a primeira coisa que vão perguntar a ele é se existe processo judicial. Se existir, o Demhab não fará nada. O Demhab acaba desempenhando o papel de um construtor civil. No que diz respeito à regularização fundiária, o Demhab não tem função nenhuma. Nem cadastro sócio-econômico o Demhab faz, por não ter assistentes sociais.
“O governo do estado tinha a possibilidade de dizer que não iria retirar as pessoas de suas casas”
“O governo Tarso deixou a desejar no final”
Sul21 – Como tu avalias o governo Tarso Genro no que diz respeito à questão da moradia?
Paulo René – O governo Tarso deixou a desejar no final. Os movimentos sociais apoiaram o Tarso. Logo que ele assumiu, se comprometeu a manter as portas do Palácio Piratini abertas aos movimentos sociais. E isso ocorreu, os movimentos foram recebidos – inclusive em caráter emergencial. A recepção pela Casa Civil foi bastante proveitosa. Mas, no final, houve um comprometimento para garantir que não houvesse reintegrações de posse até o período de transição e isso acabou não sendo cumprido. Houve duas reintegrações de posse no final do ano, os juízes estavam enlouquecidos para tirar as pessoas de suas casas. Conseguimos ter êxito em uma ação, suspendendo a reintegração. Isso nos pegou de surpresa, porque o governo tinha assegurado um compromisso. Os juízes, sem nenhuma responsabilidade, ordenaram um deslocamento de um enorme aparato policial para fazer uma reintegração de posse – correndo o risco, inclusive, de que criminosos se aproveitassem disso para cometer delitos em outras regiões. Os magistrados quiseram mandar prender inclusive o governador do estado e multar o comandante o Comando de Policiamento da Capital. Isso acabou coagindo eles e fazendo com que as reintegrações fossem apressadas, sendo realizadas em meio à Operação Papai Noel, à Operação Golfinho e às festas de final de ano. O governo do estado tinha a possibilidade de dizer que não iria retirar as pessoas de suas casas. O governador, pessoalmente, poderia ter impedido isso, mas o governo deixou a desejar. Os movimentos sociais não perdoaram esse tipo de conduta, estavam contando com o governo Tarso naquele momento.
“Sartori vai ter que dialogar com os movimentos sociais”
Sul21 – Quais são as expectativas em relação ao governo Sartori?
Paulo René – Estamos no início das tratativas para que ele entenda como funciona o Fórum das Ocupações e conheça os movimentos sociais que levantam essas demandas. É um governo que não apresentou uma plataforma e não tocou nesta ferida aberta que é a questão da reforma urbana durante a campanha. Mas o Sartori vai ter que falar sobre isso, porque temos mais de 60 ações de reintegração em andamento. O governador vai ter que dialogar com os movimentos sociais, já estamos buscando uma agenda com ele. Estamos esperançosos, por mais que saibamos que é um governo mais próximo ao que pensa a prefeitura de Porto Alegre sobre direito à moradia. O vice-prefeito Sebastião Melo (PMDB), que disse uma vez que “quem fura a fila não tem vez”, foi um dos coordenadores da campanha do Sartori. Acredito que vai haver mais dificuldade do que no governo Tarso, mas não creio que as portas estarão fechadas.
“Orientei os líderes comunitários a não darem entrevista se os veículos tivessem apenas o interesse de vender um pasquim pingando sangue”
Sul21 – Como tu avalias a cobertura da mídia em relação aos temas ligados à luta pela moradia?
Paulo René – No início do ano era bastante complicada, denominando as pessoas como invasores, ouvindo apenas o Judiciário e os proprietários da área, sem dar voz aos ocupantes e seus advogados. Mas tiveram que nos ouvir, porque fizemos história no Brasil. Veio gente de outros veículos do país ver como estávamos nos organizando em Porto Alegre, onde houve 18 reintegrações de posse, mas apenas uma teve que sair. A cobertura da mídia está mudando, a própria Zero Hora fez um trabalho muito interessante, a partir das reportagens da Bruna Scirea. Houve um momento em que eu disse que não falaria mais com a imprensa e orientei os líderes comunitários a não darem entrevista se os veículos tivessem apenas o interesse de vender um pasquim pingando sangue. Os movimentos sociais da luta pela moradia não são violentos. São inteligentes e informados. Isso deveria despertar muito mais interesse da mídia do que o momento em que a Brigada Militar está expulsando as pessoas de uma ocupação.
Sul 21
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