Fabiano Barcellos Teixeira
Boa parte da historiografia que analisa os conflitos da bacia do Prata, no século XIX, empenha-se para examinar as disputas territoriais, os direitos de navegação fluvial, as questões diplomáticas, as batalhas épicas, até mesmo a biografia dos comandantes beligerantes, sendo breves e por vezes carregadas de estereótipos as econômicas análises sobre a sociedade paraguaia.
Publica-se muito sobre a guerra do Paraguai, porém se conhece pouco sobre a formação social paraguaia. Atento a esta realidade e disposto a superá-la, o historiador Mário Maestri, competente especialista em estudos sobre as origens da guerra do Paraguai, escreveu Paraguai: A República Camponesa: 1810-1865.
Em 2014, lembra-se 150 anos do início do maior conflito militar da América Latina, no qual Brasil, Argentina e Uruguai, por seis longos anos, combateram contra o Paraguai. Na busca de uma compreensão mais refinada sobre as raízes seminais daquele cenário, precisamos conhecer melhor o povo paraguaio, entender como foi o desenvolvimento da sua singular organização social na América, abreviada após a guerra grande (1864-1870).
Camponeses Dominantes
Dividido em cinco capítulos, Paraguai: A República Camponesa 1810-1865 aborda a sociedade paraguaia desde a época colonial, no século XVI, concentrando-se mais detidamente no século XIX. Destaca-se na obra de Maestri a análise sobre os chacareros, segmento social formado maioritariamente por mestiços de ameríndios, sobretudo guaranis, com colonos espanhóis natos e crioulos, sendo proprietários de minifúndios produtores de gêneros agrícolas e da cria do gado, em uma rudimentar agricultura de subsistência.
Nesse trabalho, elucida-se a relação desenvolvida entre a população paraguaia e a terra. A autonomia sobre a chácara e sobre a família criou laços culturais que são singulares na América do Sul e se diferenciam substancialmente do escravismo colonial brasileiro, onde, por exemplo, muito marginalmente, os trabalhadores conseguiam a posse da terra, cultivavam chácaras e se formavam famílias de cativos.
A conquista da independência paraguaia, sobretudo em relação a Buenos Aires que, entre 1776-1810, fora capital do Vice-Reino do Prata do qual a província do Paraguai fazia parte, foi tema discutido com precisão na obra em questão. As mercadorias importadas e exportadas do Paraguai deveriam necessariamente ser tarifadas em Buenos Aires, grande porto do Prata, rota vital para acesso ao oceano.
Independência precoce
A independência paraguaia, declarada em 1811, apenas na década de 1840 foi reconhecida por diversas nações, como o Brasil, a Argentina, a Inglaterra etc. Uma independência forjada nos grandes congressos da pátria. A formação dos congressos republicanos, entre 1810-1814, com mais de mil deputados, em grande parte representantes dos pequenos camponeses, foi apropriadamente destacada como elemento fundamental para a consolidação da pequena propriedade no Paraguai, em detrimento dos setores realistas-espanholistas e liberais-portenhos.alt
Congressos democráticos, certamente os mais democráticos da América, naquela época, pois certamente a população do país era inferior a 300 mil pessoas.
Durante as deliberações na jovem nação, destacou-se o doutor Francia, filho de pai brasileiro, de origem desconhecida. Ele abraçou a causa de uma independência total em relação à Espanha e a Buenos Aires. Formado em Teologia, em Córdoba de Tucumán, advogado rábula, rousseaniano convicto, Francia defendeu com tenacidade os interesses dos pequenos e médios chacareros.
Entre 1814 a 1840, no governo do ditador supremo José Gaspar Rodriguez de Francia, houve uma luta intransigente pela consolidação da independência paraguaia, que ensejou uma economia autossustentável com restritos contatos comerciais com as nações vizinhas, não por vontade paraguaia. Naquele contexto, fortaleceram-se os setores minifundiários de camponeses arrendatários e proprietários que defendiam a soberania da pátria e a sua própria sobrevivência.
Estado Nação
O período áureo dos pequenos camponeses, liderados pelo doutor Francia, consolidou a república camponesa do Paraguai. Daí o nome dado pelo autor ao seu trabalho: Paraguai: a República Camponesa. Consolidou, no fato, o talvez único Estado-Nação da América Latina. Na época, também ocorreu a expansão dos monopólios estatais do comércio da erva-mate, do tabaco e da madeira de construção; a reorganização do Exército, em um viés popular e nacional, uma exigência dos camponeses que não queriam deixar suas propriedades para combater em batalhas, e a expropriação de propriedades dos inimigos da independência, sobretudo dos espanhóis, dos crioulos e da Igreja católica, então nacionalizada.
Atento às especificidades dos conceitos, Mário Maestri disserta sobre o sentido do título ditador que Francia recebera, pois atualmente esta palavra tem acepção antidemocrática e pejorativa. No entanto, Francia fora democraticamente eleito ditador com poderes discricionários, perante maioria do eleitorado rural, mais responsável diante dos congressos.
Mário Maestri menciona os fatos e os interpreta à luz de uma apurada reflexão condizente com a sua experiência na produção de dezenas de livros de história. Suas principais fontes foram relatos de viajantes, a documentação do doutor Francia, publicada e arquivada, além de uma refinada análise na historiografia especialista no tema.
Restauracionismo tendencial
O período de governo da Carlos Antonio López (1844-1862) e os primeiros anos de Francisco Solano López no poder também foram sagazmente detalhados no livro de Mário Maestri. Nesse ponto, já estamos nos aproximando do início da guerra grande. No governo de Carlos Antonio López ocorreu importante mudança de sentido da política paraguaia.
No período Lopez pai, assim como no Paraguai colonial, os comerciantes de Assunção, a igreja católica e os estancieiros tiveram maior representação social e política, em um processo tendencialmente restauracionista. O movimento de Carlos Antonio López para se relacionar mais intensamente com outras nações ocorreu, sobretudo, devido ao retorno do Império ao Prata e o isolamento da Argentina rosista, ferrenha opositora de um Paraguai independente, sempre interessada em sua redução à situação de província.
Em Paraguai: a república camponesa: 1810-1865, Mário Maestri destaca erros estratégicos, ou no mínimo falta de visão estratégica, dos dirigentes paraguaios comandados pela família López. Na operação de 1845 contra Buenos Aires, quando as tropas comandadas pelo jovem Francisco Solano López não se acertaram com as províncias argentinas aliadas de Corrientes e Entre Rios. Foi igualmente um grave erro que, em 1852, na batalha de Monte Caseros contra Rosas, de Buenos Aires, o Paraguai teve divergências com os aliados do Império do Brasil e as referidas províncias Argentinas, não participando da derrota do seu tenaz impugnador da independência.
Finalmente, Francisco Solano López, em obediência ao seu pai, ajudou a província de Buenos Aires a ganhar tempo para vencer as forças da Confederação Argentina (províncias do interior e do litoral confederadas), ao arbitrar as questões diplomáticas entre os estados argentinos, em 1859. Em 1861 ocorreu a reunificação argentina, após a batalha de Pavón, com o general Mitre à cabeça, que imediatamente se lançou, primeiro contra a República do Uruguai, a seguir contra o Paraguai.
Extroversão comercial
A abertura do Paraguai ao comércio internacional foi acompanhada de investimentos na infraestrutura civil e militar. Construiu-se estrada de ferro, fábricas de ferro (Ibicuy), pólvora e salitre. Tais medidas se tornaram viáveis sobretudo após o aumento das receitas do Estado com as expropriações dos povos indígenas. Em 1848, Carlos Antonio López encampou 21 “pueblos de indios”, significativa área de terras e produção pecuária, concedendo aos nativos o simbólico título de cidadão da república, iniciando movimento de espanholização das comunidades guaranis.
A importante viagem diplomática à Europa, com a delegação paraguaia comandada pelo general Francisco Solano López, primogênito do presidente Carlos Antonio López, também foi trabalhada pelo autor. Ela consagrava o movimento de exteriorização comercial do país. A questão Water Wich com os Estados Unidos da América e a expedição Pedro Ferreira de Oliveira, com o Império do Brasil, na primeira metade da década de 1850, dimensiona a atração que a pequena nação paraguaia despertava nos países de política expansionista da época.
Mário Maestri analisa também a forma de entronização pouco tranquila de Francisco Solano López na presidência do Paraguai. O que registra a importante vida política, entre as classes proprietárias, ao contrário do que comumente proposto. Havia segmentos que se opunham à manutenção da família López na república paraguaia, ou então eram a favor de um de seus irmãos, Benigno e Venâncio, de viés mais liberal, que foi acusado de conspiração por Solano López.
Para melhor entender a Guerra da Tríplice Aliança
O autor sustenta que, em geral, a historiografia tradicional paraguaia foi dura com o doutor Francia, e seu regime de viés popular, e elogiosa com Carlos Antonio López, que primou pela restauração das classes proprietárias. A riqueza da família López não mereceu a mesma atenção. Analisa-se também o mito de que Benigno López seria o próximo indicado a ser presidente, em detrimento a Francisco Solano López, sempre mais ligado à política estatal que seu irmão.
Seria injusto definir Paraguai: A República Camponesa 1810-1865 como apenas uma contribuição significativa preparatória à história da guerra do Paraguai. Vai muito mais longe. Com um texto elegante e agradável, Mário Maestri conduz o leitor a refletir e a entender a sociedade paraguaia. A variedade e a riqueza de fontes rigorosamente interpretadas revela uma erudita investigação. Quem deseja entender o maior conflito da América Latina está convidado a acompanhar a excelente narrativa crítica de Mário Maestri.
Correio da Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário