sábado, 24 de janeiro de 2015

Bandeirantes paulistas eram mestiços


Adelto Gonçalves, de Amparo

As mulheres índias e negras eram as companheiras dos primeiros colonizadores e bandeirantes

Para aqueles que ainda questionam a miscigenação que caracterizou a formação das elites brasileiras, inclusive os bandeirantes, a leitura do ensaio “Pérolas negras: mulheres livres de cor no Distrito Diamantino”, da historiadora Júnia Ferreira Furtado, é uma contribuição definitiva para afastar quaisquer dúvidas. É claro que a análise da historiadora refere-se a uma determinada região da capitania de Minas Gerais, mas é um microcosmo da América portuguesa.

O ensaio, que faz parte do livro Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001), organizado pela autora, mostra que a falta de mulheres, principalmente brancas, fez generalizar a prática do concubinato, geralmente estabelecido entre homens brancos e livres e mulheres de cor, escravas ou forras.

Como as mulheres eram escassas, principalmente as brancas, muitos senhores alforriavam suas companheiras escravas. “Geralmente, esse ato era realizado na hora da morte, quase sempre estipulando um prazo para o pagamento da liberdade ou o cumprimento de mais alguns anos de serviço para com os herdeiros”, diz a autora, acrescentando que só raramente a alforria era concedida durante o período de vida do proprietário.

Também os governadores e capitães-generais que comandaram as capitanias da América portuguesa e as demais possessões lusas, dificilmente, traziam em sua companhia suas mulheres. Embora tenha havido alguns que tenham chegado solteiros, a maioria deixava a esposa no Reino para zelar por seus interesses e cuidar dos estudos dos filhos. Foi o que fez, por exemplo, D.Luís Antônio de Távora, o quarto conde de Sarzedas, que governou a capitania de São Paulo de 1732 a 1737, até morrer no sertão de Tocantins, na região que, mais tarde, seria a capitania de Goiás. Depois de sua morte, d.Teresa da Silveira Silva Teles, a condessa de Sarzedas, pediu a D.João V que concedesse a seu filho D.Luís da Silveira os mesmos serviços e honrarias que concedera ao seu marido.

Não se sabe se esse foi o caso do quarto conde de Sarzedas, mas a maioria dos governadores e capitães-generais, longe de suas mulheres, acabava por arrumar amantes entre as melhores famílias nos burgos acanhados em que se instalavam. Ou, então, desafogavam suas angústias sexuais com mulheres de má reputação, que comensais costumavam levar ao palácio para agradar ao chefe, como se lê nas Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). E não consta que tanto umas como outras fossem brancas, na maioria.

Fosse como fosse, a verdade é que, à medida que o século XVIII avançou, surgiu uma camada crescente de mulatos e mulatas e negros e negras forros. Nesse sentido, diz Júnia Ferreira Furtado, a sociedade mineira apresentou uma diversidade e uma miscigenação muito maior que as sociedades escravistas do litoral brasileiro.

Outras sociedades — e não só do litoral — apresentaram miscigenação mais intensa entre europeus e indígenas, como se deu em São Paulo, Goiás, Mato Grosso e outras capitanias. Por trás disso, estava a ausência de mulheres brancas, que, dificilmente, enfrentavam os longos meses de viagem entre o Reino e as conquistas. Sem contar a predisposição dos comandantes de não aceitar mulheres a bordo em razão das desavenças que, até mesmo involuntariamente, costumavam provocar.

Na cidade de São Paulo, no século XVIII, para agravar ainda mais a ausência de mulheres brancas, havia o obstáculo quase intransponível que era a viagem do porto de Santos ao planalto pela íngreme Serra do Mar, por caminhos improvisados em que não passava mais que um homem ou animal de carga por vez. E por rios e riachos ou por pontes de madeira mambembes, quando existiam.

Por isso, os paulistas dos séculos XVII e XVIII, que se atiraram aos sertões de Goiás e Mato Grosso em busca de índios a serem escravizados e acabaram por alargar as fronteiras da América portuguesa, eram homens de pele escura, cabelos lisos e negros, bem parecidos com os bolivianos e paraguaios de hoje. E suas mulheres de ascendência indígena, acostumadas a enfrentar rios, noites na selva e sezões, as febres do sertão.

O livro organizado por Júnia Ferreira Furtado abriga ainda o ensaio “Precondições e precipitantes do movimento de independência da América portuguesa”, do historiador inglês A.J.R.Russel-Wood, publicado pela primeira vez em 1975 com estudos de outros historiadores no livro From Colony to Nation: essays on the Independence of Brazil (Baltimore/London, The John Hopkins University Press), muito citado em dissertações de mestrado e teses de doutorado, mas até aqui sem tradução.

Nesse ensaio, Russel-Wood também observa que a falta de mulheres brancas, a interação diária e a aproximação entre brancos e negros resultaram em uniões sexuais. “A miscigenação se tornou a característica da evolução da sociedade brasileira. O mulato, nascido dessas uniões, ganhou número e visibilidade a ponto de ser considerado (e ainda considerar a si mesmo) não como uma ponte entre pólos étnicos, mas como uma etnia e uma classe social independentes”, diz.

Mais adiante, porém, escreve uma impropriedade, ao afirmar que, “no Brasil colonial, os negros e mulatos livres nasceram, viveram e morreram numa penumbra social, econômica e étnica”. Ora, é claro que houve um enorme contingente de negros e mulatos livres que viveram uma vida obscura, de agregados a famílias de proprietários ou de pequenos artesãos, mas não houve, no Brasil, uma classe dominante branca, como percebe quem observa fotografias já do final do século XIX ou quadros de potentados econômicos que chegaram a ocupar cargos de ministros ao tempo de D.Pedro II ou mesmo na Primeira República.

Muitos mulatos chegaram à posição de mando, de feitores a proprietários e potentados. Com o poder e dinheiro de que dispunham, acabavam “embranquecendo” e ascendendo a cargos importantes na sociedade.

Na Primeira República (1889-1930), pelo menos, dois presidentes exibiam no rosto os traços da herança genética africana que carregavam, Campos Sales e Nilo Peçanha. Sem contar que o maior romancista brasileiro de todos os tempos, Machado de Assis (1839-1908), alto funcionário do governo, era neto de escravos alforriados. É preciso dizer mais?

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DIÁLOGOS OCEÂNICOS: MINAS GERAIS E AS NOVAS ABORDAGENS PARA UMA HISTÓRIA DO IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS , de Júnia Ferreira Furtado (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, 519 págs. E-mail: editora@bu.ufmg.br

Adelto Gonçalves,jornalista, trabalhou no Estadão, Folha de São Paulo, Editora Abril e A Tribuna de Santos. Professor universitário, doutor em Literatura Portuguesa pela USP, autor dos livros Os Vira-latas da Madrugada, prêmio José lins do Rego, da José Olympio Editora; Gonzaga, um Poeta do Iluminismo, Barcelona Brasileira, Bocage – o Perfil Perdido e Tomás Antônio Gonzaga. Ganhou em 1986, o prêmio Fernando Pessoa, da Fundação Cultural Brasil-Portual. Professor universitário de literatura em Santos, na Universidade Paulista, Unip, e na Universidade Santa Cecília, Unisanta.

Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins



Correio do Brasil


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