domingo, 4 de janeiro de 2015

Ainda tem sentido, atualmente, defender a concepção do comunismo de Marx?


Leandro Konder

Sabemos todos da importância do comunismo na concepção de Marx: o processo das transformações sociais se encaminharia na direção da superação do capital, na direção de uma sociedade humana sem classes, que seria exatamente o comunismo.

Como se caracterizaria, no entanto, a sociedade comunista? Marx se limitou a algumas indicações que ele mesmo não ignorava serem bastante vagas. Quando lhe pediram que descrevesse a sociedade comunista de modo mais preciso, respondeu que não pretendia preparar receitas para os caldeirões do futuro.


Que formas de propriedade poderiam subsistir no comunismo? O comunismo suprimiria toda e qualquer forma de propriedade? Não é o que sugere o famoso Manifesto de 1848, no qual se lê: “O comunismo não retira a ninguém o poder de se apropriar da sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outros por meio dessa apropriação”. E em outra passagem: “O que caracteriza o comunismo não é a supressão da propriedade em geral e sim a supressão da propriedade burguesa”.



N’O capital, o comunismo é caracterizado como “uma associação de homens livres, que trabalham com meios coletivos de produção e aplicam suas numerosas forças individuais de trabalho, com plena consciência do que fazem, como uma grande força de trabalho social”.



A divisão social do trabalho, que prevalece nas sociedades classistas, estilhaçou a comunidade dos homens, isolou os indivíduos, provocou um estreitamente nas habilidades de cada um deles (inclusive uma concentração exagerada do talento artístico). O comunismo – segundo a Ideologia alemã – promoveria uma superação de todos esses efeitos da divisão social do trabalho: “Numa sociedade comunista, não haverá pintores e sim homens que, entre outras coisas, também pintarão”. De acordo com Marx, o comunismo superaria igualmente a dicotomia cidade/campo, acabando com o “idiotismo da vida rural” (na esteira da industrialização já promovida pelo capitalismo). Seriam atenuadas as diferenças nacionais, o direito tenderia a ser absorvido pela moral.



Pressupondo um elevadíssimo desenvolvimento das forças produtivas, o comunismo, com a automação, suprimiria a separação ainda existente entre o trabalho físico e o trabalho intelectual; e suprimiria também todas as diferenças sociais que ainda existem entre homens e mulheres.



Sob o comunismo, desapareceriam as necessidades religiosas que se manifestam nos sentimentos e na consciência dos homens. Marx escreveu n’O capital: “O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as condições práticas das atividades cotidianas do homem representem normalmente relações racionais claras entre os seres humanos, bem como entre estes e a natureza”.



Por fim, na caracterização do comunismo por Marx, não podemos deixar de falar na extinção do Estado, com o desaparecimento de todas as instituições de tipo estatal, como o exército permanente, a polícia etc. Marx era hostil ao Estado como tal, desde a juventude. Na Crítica do direito público de Hegel, de 1843, Marx escreveu que, no melhor dos casos, o Estado seria a “democracia da não liberdade”. E acrescentou: “O homem é o verdadeiro princípio do Estado; porém o homem não livre”. No comunismo, para que a dimensão política da existência dos indivíduos não se aliene deles, é preciso que o Estado deixe de existir.



Um exame honesto e sereno de todos esses aspectos aqui sumariamente mencionados da caracterização do comunismo por Marx é um exame que nos leva certamente à constatação de que a imagem da sociedade comunista, nos escritos de seu maior idealizador moderno, permanece muito fragmentária, lacunosa, cheia de aspectos problemáticos.



Marx nunca se dispôs a descrever quais as formas que poderia assumir a propriedade não burguesa que se seguiria à superação do capitalismo. A estatização, do ângulo do pensador comunista, evidentemente não poderia resolver esse problema, já que a criação de formas não burguesas da propriedade precisaria se fazer paralelamente à extinção do Estado.



Claro, após graves derrotas sofridas pelo movimento operário europeu (em 1848 e em 1871), Marx escreveu que, para consolidar o poder que viesse a conquistar, para neutralizar a reação da burguesia, a classe operária deveria estabelecer a ditadura do proletariado. Porém, na sua concepção, essa ditadura revolucionária deveria ser de breve duração e deveria promover um rápido processo de liquidação do Estado (sua autossuperação). Nunca passou pela cabeça do autor d’O capital a ideia de uma ditadura do proletariado que se prolongasse, que se transformasse numa forma nova e duradoura de Estado, e na qual a questão do comunismo fosse relegada para um futuro remotíssimo, de tal modo que nem sequer valesse a pena discuti-la…



Hoje, provavelmente, pensar uma sociedade sem Estado é ainda mais difícil do que na época de Marx. As condições da vida política se complicaram enormemente e nada indica que elas se simplificarão num futuro previsível. É quase impossível acreditarmos que as relações entre as pessoas se tornarão espontaneamente harmônicas. Os observadores mais atentos e mais rigorosos da transformação das instituições e da mudança das mentalidades encaram com ceticismo o mito de uma sociedade vindoura ‘transparente’.*



O próprio Marx estava convencido de que no comunismo os indivíduos se tornariam mais livres e mais originais. “Só na sociedade comunista” – lê-se na Ideologia alemã – “é que o desenvolvimento original e livre dos indivíduos deixa de ser uma frase vazia”. Mas esses indivíduos, ao se libertarem dos efeitos da divisão social do trabalho, não se tornarão ‘inocentes’: eles terão vivido uma longa história que lhes deixa marcas e os condena à complexidade. As relações entre eles não poderão ser ‘cristalinas’. Por serem mais livres e mais originais, as pessoas poderão dispor de maiores pontos de convergência e encontro, porém ao mesmo tempo, inevitavelmente, poderão divergir mais umas das outras; e não há nenhuma razão para supormos que as formas de tais divergências venham a prescindir de uma regulamentação precisa e de instrumentos institucionais adequados para canalizá-las em proveito da humanidade.



Outro aspecto problemático da concepção do comunismo: se não considerarmos segura a possibilidade da sociedade ‘transparente’, também não poderemos afirmar com certeza que as necessidades religiosas desaparecerão da consciência dos homens. As relações entre os seres humanos chegarão algum dia a ser tão ‘claras’ e tão ‘racionais’ a ponto de eliminarem da consciência de todos eles qualquer sentimento religioso?



Assim como atualmente existem pessoas que não sentem necessidade da religião (apesar da irracionalidade e da falta de claridade que prevalecem nas relações delas com as outras, em alguns momentos), não deveríamos admitir, mesmo sendo marxistas, que na futura sociedade comunista algumas pessoas possam sentir necessidades religiosas?



Não haveria na afirmação de Marx sobre o desaparecimento necessário da religião no comunismo um eco da crença iluminista segundo a qual as luzes da razão devem dissipar todas as trevas da ignorância? E como podemos combinar essa crença iluminista com a convicção dialética de que o real é infinitamente rico, está sempre apresentando novas faces e é irredutível ao saber? A concepção iluminista da razão não força uma simplificação da realidade que a dialética nos ensina a respeitar?



Marx aderiu ao comunismo em Paris, no final de 1843 ou no começo de 1844. No próprio momento em que se deu a sua adesão, ele já fazia questão de explicar que a sua concepção do comunismo não tinha nada a ver com o que ele chamava de ‘comunismo grosseiro’, com a idealização de uma comunidade tipo formigueiro, com qualquer programa igualitarista fundado sobre a inveja. A sociedade comunista, a seus olhos, pressupunha o desenvolvimento de indivíduos capazes de cultivar múltiplas habilidades, interesses diversificados: indivíduos que não se deixariam reduzir jamais a uma única função (ou à passividade do carneiro no rebanho). No entanto, Marx deixou de indicar como, na sua concepção, se conciliariam a exigência humanista do desenvolvimento multilateral dos indivíduos com as pressões da especialização, que vem sendo reconhecida como inevitável na economia dos Estados modernos.



Os marxistas atuais não podem deixar de reconhecer o caráter problemático de todos esses aspectos da concepção do comunismo que aparece nos escritos de Marx. O próprio Marx se dava conta das deficiências da sua concepção e concentrou seu esforço intelectual na crítica do presente, evitando se apoiar na imagem, necessariamente nebulosa, da sociedade futura. Na Ideologia alemã, ele escreveu: “O comunismo não é para nós um estado de coisas a ser implantado, um ideal, em função do qual a realidade deva ser organizada; chamamos de comunismo o movimento real que supera o atual estado de coisas”. Nós, porém, que vivemos uma história que Marx não viveu – e nos defrontamos com uma situação diferente daquela que ele enfrentou – não podemos nos satisfazer plenamente com essa afirmação.



Como identificar, no presente quadro de numerosas experiências socialistas distintas e até contraditórias, qual é o movimento real que supera o atual estado de coisas e aponta, de fato, na direção do comunismo? Como prescindir de um esforço no sentido de uma caracterização mais concreta da sociedade comunista, da meta histórica, do objetivo visado, do télos que deve orientar a ação política dos revolucionários marxistas?



Ao se ocuparem da questão do comunismo, os marxistas correm naturalmente vários riscos, que não devem ser substimados. A concepção do comunismo esboçada por Marx, em virtude de seus aspectos vagos e problemáticos, pode facilmente assumir a feição de um mito, de uma utopia. Como toda utopia, esse ideal comunista pode levar os revolucionários a negligenciar a força das resistências que lhe são opostas, a minimizar os obstáculos que encontrarão no caminho, a substimar os recursos de seus adverários; pode levá-los a avaliações políticas voluntaristas, românticas e ineficientes.



Ao abandonarem a discussão sobre o comunismo, entretanto, evitando reativá-la por medo de suas possíveis consequências negativas, os marxistas correm o risco de deixar de ser marxistas, sem mesmo se darem conta da diluição de sua perspectiva.



Um dos sintomas mais graves da crise do marxismo na União Soviética está, a meu ver, na falta de uma ampla discussão sobre o comunismo. Como a URSS chegará concretamente ao comunismo? Quais seriam os elementos que, nas circunstâncias atuais, antecipam ou ao menos prenunciam a extinção do Estado? As injunções práticas, a necessidade de se defender dos Estados Unidos, a realização de tarefas urgentes que levaram ao fortalecimento do Estado, enfim, empurraram a URSS para mais perto do comunismo ou afastaram-na dele? Caso tenha havido afastamento, suas consequências têm sido suficientemente debatidas pelos marxista soviéticos?



Não creio que exista qualquer vantagem para o enriquecimento e o aprofundamento teórico do marxismo num abandono implícito da reflexão sobre o comunismo. Se os marxistas precisam romper com a concepção do comunismo legada por Marx, será necessária uma explicitação e uma fundamentação de tal rompimento. E isso exigirá uma revisão da perspectiva de Marx em seu conjunto, porque nela o horizonte comunista – mesmo impreciso – desempenha uma função extremamente importante.



Se não é o caso de um rompimento, contudo, os marxistas precisam retomar a concepção do comunismo, tal como ela está esboçada por Marx, desenvolvê-la, conferir-lhe traços menos vagos.



O conceito de comunismo não pode se esquivar à controvérsia, não pode impedir que contra ele sejam levantadas suspeitadas de utopia. Seu destino, porém, não está inapelavelmente decidido pelo tribunal da história e os marxistas ainda dispõem de argumentos dignos de consideração. Eles podem lembrar, por exemplo, que certas características da concepção do comunismo, na época de Marx, pareciam bem mais utópicas do que agora. Com a automação, o desaparecimento das diferenças entre o trabalho físico e o trabalho intelectual, que poderia parecer um sonho irrealizável no século 19, pode ser cogitado hoje de maneira mais concreta. A industrialização atingiu níveis sem precedentes, a urbanização vertiginosa, a conurbação, tudo isso pode ter criado graves problemas ecológicos, mas também conferiu maior viabilidade à superação das diferenças entre a cidade e o campo, tornando tal superação menos ‘utópica’ aos nossos olhos do que aos olhos dos contemporâneos de Marx. Também o desaparecimento de todas as diferenças sociais entre homens e mulheres deveria parecer delirante para o público dos tempos da rainha Vitória e hoje começa a ser considerado algo que pode ser alcançado e passou a ser programa de um crescente movimento feminista.



A própria atenuação das diferenças nacionais – que na prática é muito prejudicada pelas tensões internacionais – pode constituir um objetivo a ser resgatado no debate contra avaliações demasiado céticas ou pessimistas.



Além disso, o comunismo – concebido (e respeitado) como horizonte – ajuda socialistas de filiação marxista a se orientarem nas lutas políticas que precisam ser travadas em profundidade em longo prazo. Desde que funcione como referência mediatizada e não seja artificialmente trazido para batalhas que se travam no plano mais imediato, o comunismo pode contribuir para dar maior continuidade à intervenção crítica e ativa dos socialistas num processo que se dispõe a encaminhar uma democratização cada vez mais consequente da sociedade, promovendo uma ampliação cada vez maior dos espaços disponíveis para a liberdade dos homens. Talvez nunca cheguemos ao comunismo, quer dizer, a um estado de coisas que possamos considerar plenamente satisfatório: lutando por ele, entretanto, animados pela meta que ele representa, poderemos nos aproximar com maior eficácia de tal estado.



A esses argumentos, os marxistas dispostos a defender a concepção do comunismo de Marx ainda poderão acrescentar outro, à guisa de conclusão: ressalvado o imprescindível espírito realista, por que os seres humanos deveriam se conformar em lutar por objetivos menores, quando podem lutar por um objetivo maior e mais ambicioso?


* Leia-se, por exemplo, Trabalho e reflexão, de José Arthur Giannotti, Editora Brasiliense.


Leandro Konder (1936-2014) foi um filósofo marxista brasileiro


[KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias, 1ª ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984, 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009, pgs. 187-194]



Fundação Lauro Campos


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