segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Democracia e cidadania


José Antonio Segatto

A vitória da Aliança Democrática, há exatamente três décadas (15 de janeiro de 1985), no colégio eleitoral, ao eleger para a Presidência da República Tancredo Neves e, como vice, José Sarney, encerrou um ciclo de 21 anos de regime ditatorial e demarcou a transição para o Estado de Direito Democrático. Constituiu-se, ademais, no momento extraordinário do desfecho do longo e complexo processo de transição democrática que, com avanços e retrocessos, culminou com a promulgação da Constituição de 1988.

Desencadeada ainda nos momentos sombrios da ditadura, foi conduzida por forças que optaram pela luta política em detrimento da ilusão do confronto armado e, pacientemente, construíram uma ampla frente democrática composta por todos os que se opunham ao arbítrio, ao cerceamento das liberdades, à lógica da força, à violação dos direitos e ao domínio do medo. Aglutinando numerosas e variadas organizações e instituições da sociedade civil e política, o movimento pela democracia travou uma longa e árdua “guerra de posições”, envolvendo embates eleitorais, mobilizações, resistências, denúncias, lutas, campanhas, greves, protestos, etc.

Nesse processo de construção democrática e de superação de instituições e ordenamentos, concepções e práticas do regime de exceção, criaram-se muitas expectativas e esperanças transformadoras, não só políticas, mas também socioeconômicas. De fato, houve uma ampliação dos direitos de cidadania — tanto civis como sociais e políticos, quanto de “novos direitos” (da mulher, do jovem, do idoso, da população negra, dos portadores de necessidades especiais, dos homossexuais, do consumidor, etc.) —, o fortalecimento das instituições da sociedade civil e política, a ampliação das liberdades e a diminuição da iniquidade.

A Constituição de 1988, denominada “cidadã”, incorporou e tornou lei demandas e aspirações, desde as históricas até as hodiernas — nos capítulos referentes aos direitos fundamentais, à organização dos Poderes, de suas atribuições e de suas relações com a sociedade civil, à defesa das instituições democráticas e da soberania popular, compreende normas e princípios inovadores para a garantia da “dignidade da pessoa humana”, da igualdade de condições e das liberdades indispensáveis. Posteriormente à sua promulgação, muitas disposições foram regulamentadas, ampliando e aperfeiçoando alguns direitos e instituições.


Simultaneamente, não obstante as conquistas efetivas formalizadas juridicamente, preservou-se muito da cultura política e das práticas pretéritas. O patrimonialismo e o clientelismo, o corporativismo e os privilégios, a desigualdade e a coerção, a violência e a intolerância e outros vestígios característicos da formação do País foram reatualizados e compatibilizados às novas formas de relações sociais e políticas, amiúde nas brechas ou ao arrepio das normas legais.


Observada pela perspectiva formal e/ou institucional, a democracia parece estabilizada em seus procedimentos e regulação. No entanto, no exercício ordinário ou corrente é demasiado insuficiente na salvaguarda e na prática das liberdades, na garantia das condições de igualdade e dos direitos. O ardil político, o patrimonialismo renitente, a transgressão tornada norma, a cultura política autoritária reatualizada, o clientelismo capilarmente enraizado, o bloqueio do poder estatal à ativação da sociedade civil, os direitos manietados, a indulgência dos Poderes, a reativação contínua dos mecanismos fisiológicos e de cooptação do Legislativo pelo Executivo, a judicialização da política, a indiferença aos valores e aos bens públicos, o desapreço pela transparência nos atos e na gestão estatal, a dissociação entre representantes e representados, governos e órgãos estatais destituídos de fé pública, uma sociedade civil e política flácida e carente de protagonismo, partidos políticos privados de ideais, vocação hegemônica e compromissos cívicos, além de outras vicissitudes, constituem um complexo conjunto adverso ao aprimoramento da democracia e ao exercício dos direitos de cidadania.


A desigualdade de condições e oportunidades extremada, associada à disparidade no exercício dos direitos, no acesso à Justiça e às instituições estatais gera uma cidadania mutilada e a reprodução da opressão e da iniquidade.


Pode-se, no limite, afirmar que — apesar de as instituições e normas democráticas terem sido aprimoradas e ampliadas, de os direitos de cidadania terem sido amplificados, reconhecidos e materializados em leis — a desigualdade e a iniquidade, a arbitrariedade e as injustiças teimam em manter-se incrustadas nas relações sociais e políticas. O passado excludente e autoritário insiste em projetar-se no presente, ou, ainda, as marcas provectas e os resquícios extemporâneos se mantêm impressos na contemporaneidade ou a ela acomodados.


De fato, houve um inconteste aggiornamento do processo de transição democrática. As forças renovadoras, que o conduziram, ajustaram-se, em grande medida, à velha ordem. Não tiveram capacidade ou vontade suficiente para encaminhar e dirigir um projeto com referenciais programáticos e práticos reformadores e democráticos — um empreendimento sociopolítico que pudesse efetivar transformações que garantissem a realização do ser social em condições de equidade e democracia. Isso implicaria a reordenação das forças partidárias, a recomposição do poder, a publicização do Estado, a ativação da sociedade civil, a atualização da cultura política, o alargamento dos espaços e esferas de participação, a superação das múltiplas e desmesuradas desigualdades, a criação de instrumentos de reapropriação social do excedente gerado, etc.


O desafio está posto, à espera de agentes que possam remover entraves e dar curso progressivo à dinâmica democrática, criando pressupostos necessários para que suas prerrogativas sejam efetivamente socializáveis e de desfrute coletivo.

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José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp.

Gramsci Brasil


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