Como o golpe de Estado devolveu todo poder aos latifundiários? De onde surgem sem-terra, que resistem e exigem direitos? Que é o EPP, pequeno grupo que aterroriza ricos?
Maurice Lemoine
Em 24 de agosto de 2013, um vento gelado dilacerava o rosto. Divididas em quatro “brigadas”, 108 famílias reocuparam a terra da localidade conhecida como Naranji To, de onde haviam sido expulsas quatro vezes pelas forças da ordem. Sobre uma coberta, armaram-se barracas precárias em meio a trouxas de roupa. “A partir de amanhã, plantaremos culturas de subsistência”, anunciou o dirigente Jorge Mercado, com uma segurança pouco convincente. A força das lembranças ainda transparecia em seu rosto como uma onda. A última expulsão havia sido particularmente violenta: “Os policiais queimaram 84 barracas! Roubaram animais, aves, mataram os porcos”.
Em 1967, o ditador Alfredo Stroessner deu essas terras de mão beijada a um alemão, Erich Vendri, as quais foram posteriormente “herdadas” por seus filhos Reiner e Margarita. Mas elas não deixaram de pertencer ao Estado. “Verificamos junto às instituições responsáveis o que é legal e o que foi vendido ou adquirido com irregularidades”, explica Mercado. “Temos anos de experiência em recuperar, pedaço por pedaço, o território paraguaio.” Enquanto disserta sobre a cobiça dos terratenientes (latifundiários) e dos sojeros (produtores de soja), um lençol de trevas cobre o acampamento. Reunidos ao redor de braseiros incandescentes, os camponeses tomam seu mate, deixando o calor da bebida penetrá-los lentamente.
Dois dias depois, com a brutalidade costumeira, a polícia atacou novamente.
Nesse país de 6,7 milhões de habitantes, cerca de 300 mil famílias de camponeses são desprovidas de terras. Sem remontar às calendas paraguaias, foi no fim do século XIX que o modelo de latifúndio se consolidou. Sob Stroessner (1954-1989), superfícies consideráveis de “terras livres” pertencentes ao Estado e legalmente destinadas à reforma agrária, como Naranji To, foram repartidas entre amigos, cúmplices, militares, funcionários. A partir da década de 1970, produziu-se uma revolução maior: vinda dos estados do Sul do Brasil, a agricultura mecanizada passou a fronteira com sua vedete, a soja.
Um espasmo agitou os campos. Os pequenos e médios produtores – que historicamente alimentavam o país – atrapalhavam a expansão desse setor voltado para a exportação. Ora, existem diversas formas de perseguir os que impedem o plantio intensivo. “A mais simples é comprar a terra deles”, comenta Luis Rojas. “Oferecemos a um camponês um valor que ele jamais viu em sua vida. Ele imagina que é uma fortuna, vende o lote, vai para a cidade, gasta tudo em três ou quatro meses e engrossa os cinturões de miséria, porque fica sem trabalho”, completa.
E assim a soja ampliou suas fronteiras.
Comunidades inteiras migraram pelas secas causadas pelo desmatamento. Além disso, a aspersão aérea de pesticidas afetou as culturas limítrofes, envenenou cursos de água, obrigou os animais a percorrer quilômetros em busca de pasto, se arrastando pelos últimos tufos. Vômitos, diarreias, dores de cabeça. Impotentes, os vizinhos venderam suas porções de terra a preço de banana.
E assim a soja engoliu vilas e vilarejos.
Em 1996, sua variedade transgênica, a semente “roundup ready”, da Monsanto, surgiu na Argentina, de onde travou uma guerra imperialista, sem aprovação do governo, contra o Brasil, a Bolívia e o Paraguai, reforçada pelos pesticidas mortíferos para o meio ambiente.1
E assim a soja inundou planícies e savanas – maré implacável.
Ilhas irredutíveis tentam fazer valer seus direitos. “Com o pretexto de atender a suas reivindicações, o governo desloca essas pessoas, que são enviadas para lugares de florestas que precisam ser desbravados, a 80 quilômetros de qualquer estrada, sem posto de saúde, sem nada”, critica Perla Alvarez, da Coordenação de Mulheres Rurais e Indígenas (Conamuri). E quando alguns desses deslocados se organizam para retomar as terras férteis que lhes foram confiscadas, o agronegócio solta os cachorros. “Desde o início do período democrático, em 1989, até hoje, registraram-se 116 casos de assassinato ou desaparecimento de dirigentes ou militantes de organizações camponesas”, lembra Hugo Valiente, da Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy). Além dos agentes de Estado, os seguranças particulares dos latifundiários, os matones, atuam sob total impunidade.
E a soja avança, avança. Soja sem fim.
Influentes, organizados, incrustados no coração dos grandes partidos tradicionais – a Associação Nacional Republicana (ANR, ou Partido Colorado, no poder de 1946 a 2008, e de volta em 2013) e o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) –, os terratenientes administram empresas de trens, possuem suas próprias pistas de aterrissagem, seus próprios aviões. O grupo do brasileiro Tranquilo Favero, o “rei da soja” (ver box), possui 140 mil hectares em oito departamentos (Alto Paraná, Canindeyú, Itapúa, Caaguazú, Caazapá, San Pedro, Central e Chaco), nove empresas (tratamento e distribuição de sementes, elaboração e importação de agroquímicos e fertilizantes, financiamento de produtores, fornecimento de máquinas e combustíveis etc.) e um porto particular do Rio Paraná – via fluvial chave para grandes projetos de infraestrutura no continente. Os oito membros da Central Nacional de Cooperativas (Unicoop) controlam mais de 305 mil hectares. O grupo Espírito Santo se contenta com apenas 115 mil. Em resumo, segundo o Censo de 2008, 2% dos proprietários monopolizam 85% das terras do Paraguai.
De seu lado, as multinacionais aproveitam. As norte-americanas Cargill (vinte silos, uma fábrica, três portos particulares),2 ADM Paraguay Saeca (trinta silos, seis portos particulares) e Bunge (cinco silos com capacidade total de 230 mil toneladas), além da Louis Dreyfus (França) e Noble (Hong Kong), obtêm altos benefícios com a soja e controlam cerca de 40% de todas as exportações do país. BASF e Bayer (alemãs), Dow (Estados Unidos), Nestlé (Suíça), Parmalat (Itália) e Unilever (Países Baixos, Grã-Bretanha), para citar algumas, completam esse cenário.3 E convém mencionar um detalhe: mesmo gerando com suas atividades 28% do PIB, latifundiários e transnacionais contribuem com apenas 2% das receitas fiscais do país.4
Aos buzinaços, filas intermináveis de máquinas agrícolas e caminhões invadem as estradas, enquanto a soja avança sem fim sobre as terras vermelhas e pouco férteis da região oriental, inclusive a dos ganaderos– criadores de 14 milhões de cabeças de gado na rústica região do Chaco. As superfícies invadidas pelo “ouro verde” passaram de 1,5 milhão de hectares em 1993 a 3,1 milhões hoje, e fazem do Paraguai o quarto maior exportador mundial de soja. Cerca de 60% do grão produzido parte rumo à Europa para a alimentação de gado e produção de biocombustíveis.
Mobilização sem terra
Os camponeses, contudo, não assistem passivos a esse processo. “Já recuperamos muitas terras. Mais de trezentos de nossos companheiros estão em ocupações nas zonas de Itapúa e Caazapá”, explica Esther Leiva, coordenadora nacional da Organização de Luta pela Terra (OLT). Entre 1990 e 2006, período em que ocorreram 980 conflitos por terra, camponeses realizaram 414 ocupações, a forma de pressão mais utilizada para “sensibilizar” as autoridades. Chamadas de “invasões” pelos proprietários e pela mídia, as ocupações resultaram em 366 expulsões e 7.346 detenções.5 Mas, analisa Dominga Noguera, coordenadora das organizações sociais de Canindeyú, “apenas nesse departamento, 130 hectares foram reconquistados”.
Nesses campos de caminhos pouco transitáveis, apenas motos de baixa cilindrada chegam às colônias agrícolas, os asentamientos [assentamentos]. Aqui, no coração do departamento de Itapúa, no Asentamiento 12 de Julio, recorda-se como, em 1996, há dezessete anos, setenta pessoas foram encarceradas durante seis meses por tentar ocupar à força o “sítio” de 1.600 hectares pertencentes a Nikolai Neufeld, um menonita alemão.6 Nesse país desprovido de cadastro fundiário, pacotes de títulos de propriedade fraudulentos foram entregues por um sistema judiciário sob controle da cúpula de magistrados ligados à ditadura de Stroessner e ao Partido Colorado. Um caos administrativo, a ponto de uma terra possuir três ou quatro títulos de propriedade diferentes. A soma dos títulos de terra no Paraguai faria o país ter dois andares…
Em 2005, os habitantes do Asentamiento 12 de Julio retomaram a luta com o apoio da OLT e da Mesa de Coordenação Nacional de Organizações Camponesas (MCNOC). Ocuparam quatro vezes essas terras, e nas quatro tentativas foram violentamente despejados pela polícia, pelos militares e pelos matones, sob os olhos de enviados especiais dos meios de comunicação da oligarquia – ABC Color,7La Nación, Última Hora–,que assistiram de camarote ao incêndio dos ranchos desses “criminosos” de pés descalços.
O combate, porém, trouxe frutos. Cerca de 230 famílias vivem hoje legalmente nessas terras, onde plantam mandioca, milho, feijão, batata-doce, amendoim e gergelim. Em 2009, o Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra (Indert), o órgão encarregado da reforma agrária, de fato recomprou a terra de Neufeld, que desde então foi condenado a cinco anos de prisão: entre 2007 e 2011, ele vendeu terras que não lhe pertenciam a imigrantes alemães por 14 milhões de euros. Para explicar esses felizes desdobramentos, Magno Álvarez, robusto dirigente da comunidade, observa que, “em 2009, as tensões tinham diminuído, era o período do presidente [Fernando] Lugo”.
No dia 20 de abril de 2008, cansados de 61 anos de autoritarismo do Partido Colorado, 40,8% dos eleitores depositaram suas esperanças na figura desse antigo “padre dos pobres”, socialmente muito engajado. Na ausência de uma base política organizada, Lugo foi levado ao poder pela Aliança Patriótica pela Mudança (APC), uma coalizão de movimentos sociais e oito partidos, entre os quais se destacava o Partido Liberal, formação conservadora incapaz até aquele momento de enfrentar a dominação do Partido Colorado.8 O casamento durou pouco.
Próximo dos governos progressistas da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba),9 Lugo levou adiante uma política moderada. Ainda assim, foi demais para a coalizão: ele recusou a instalação de uma base militar norte-americana em Mariscal Estigarribia (Chaco); negou a concessão de subsídios de energia no valor de US$ 200 milhões à multinacional canadense Rio Tinto Alcán, que queria instalar uma fábrica de alumínio nas margens do Rio Paraná; aumentou os investimentos sociais; permitiu aos pobres o acesso gratuito a hospitais; evocou uma reforma agrária e expressou sua simpatia em relação aos movimentos camponeses, que, com esse apoio implícito, multiplicaram as ocupações e manifestações. Depois de apoiá-lo por oportunismo eleitoral, o Partido Liberal do vice-presidente Federico Franco voltou-se contra o chefe de Estado. De mãos dadas com o adversário colorado de antes (ambos os partidos formam a maioria absoluta no Congresso), jogou abertamente em prol da desestabilização do governo Lugo.
Mais um golpe de Estado
Apoiada pela imprensa, a União de Grêmios da Produção (UGP) deu o alarme. O conflito se agravou quando esse poderoso lobby reivindicou a introdução de variedades geneticamente modificadas de milho, algodão e soja. “O ministro da Agricultura, o liberal Enzo Cardozo, agiu em total conformidade com os interesses da Monsanto, Cargill e Syngenta. Era literalmente funcionário dessas empresas e, ao mesmo tempo, porta-voz da UGP”, lembra Miguel Lovera, então presidente do Serviço Nacional de Qualidade e Saúde dos Vegetais e Sementes (Senaves). Contudo, a autorização não foi acordada: a ministra da Saúde, Esperanza Martínez, e o de Meio Ambiente, Oscar Rivas, assim como Lovera pelo Senaves se opuseram. O ABC Color desencadeou uma campanha violenta contra eles. E, pela milésima vez, o vice-presidente Franco evocou a destituição de Lugo por um “julgamento político” (o equivalente a um impeachment). Faltava apenas encontrar um pretexto.
A 400 quilômetros a nordeste de Assunção, próximo a Curuguaty – cidade de três avenidas estreitas, uma dezena de vias perpendiculares e, em cada esquina, um banco onde é depositado o dinheiro dos sojeros –, na localidade chamada Marina Kue, alguns “sem-terra” ocupam pacificamente uma propriedade grilada por Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado (que representou no Senado de 1989 a 2008) e proprietário de 70 mil hectares de terras da empresa Campos Morombí. Ninguém ignora que os cerca de mil hectares disputados em Marina Kue pertenceram ao Exército paraguaio até o fim de 1999 e que, em 4 de outubro de 2004, o Decreto n. 3.532 declarou-os de “interesse social” e transferiu-os ao Indert. Entretanto, no dia 15 de junho de 2012, 324 policiais fortemente armados irromperam o local para desalojar – pela sétima vez em dez anos! – os cerca de sessenta camponeses presentes no acampamento.
O que aconteceu na sequência? “Queríamos a terra e tivemos uma guerra”, suspira Martina Paredes, membro da Comissão de Vítimas de Famílias de Marina Kue, que perdeu um irmão nos conflitos. Nesse 15 de junho, após um primeiro cessar-fogo, eclodiu um tiroteio durante o qual onze camponeses e seis membros das forças da ordem perderam a vida. Ainda hoje, ninguém sabe quem iniciou o conflito armado. “Falei com alguns policiais, e eles sabem tanto quanto nós”, confidencia Martina. Um dos dirigentes de Marina Kue, Vidal Vega, anunciou que deporia sobre a presença de infiltrados ematones de Campos Morombí nos locais do massacre. Mas foi assassinado antes disso, em 16 de dezembro de 2012. Além disso, a gravação realizada por um helicóptero da polícia que sobrevoava permanentemente a região desapareceu de forma misteriosa.
A presença de mulheres e crianças no acampamento abala qualquer credibilidade da hipótese de uma emboscada orquestrada pelos camponeses contra as forças da ordem. Isso não impediu, contudo, que, no dia 22 de junho de 2012, Lugo, acusado de atiçar a violência contra os grandes proprietários de terra, fosse destituído de seu posto por um “julgamento político” de 24 horas, quando, de acordo com o artigo 225 da Constituição, ele teria o prazo de cinco dias para organizar sua defesa. Em outras palavras, isso se chama golpe de Estado.
Um clássico latino-americano
Assim que Franco subiu ao poder, seu governo desativou imediatamente a comissão independente nomeada para investigar os acontecimentos de Marina Kue com a assistência da Organização dos Estados Americanos (OEA). E não demorou sequer uma semana para, por decreto e sem nenhum procedimento técnico, o algodão geneticamente modificado ser autorizado. Durante os meses seguintes, sete outras variedades transgênicas de milho e soja também foram liberadas.
Segundo a fórmula consagrada, as eleições de 22 de abril de 2013 marcaram o “retorno à normalidade” do Paraguai, que após o golpe foi excluído do Mercosul, da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac). Quando efetivamente assumiu as funções de chefe de Estado no dia 15 de agosto, em nome do Partido Colorado, Horacio Cartes, o homem mais rico do país – que tem por principal conselheiro o chileno Francisco Cuadra, ex-ministro e porta-voz de Augusto Pinochet –, se deslocou do Palácio do Governo à Catedral a bordo de um Chevrolet Caprice branco conversível utilizado por Stroessner em seu tempo. Dando o tom de seu futuro mandato durante um almoço de trabalho do qual participaram 120 (La Nación) ou 400 (ABC Color) “chefes de empresas nacionais e estrangeiras entusiastas”, prometeu que não toleraria que “os investidores fossem maltratados pelos funcionários públicos.
Dois dias depois, provocando torrentes de indignação na mídia, cinco seguranças particulares da fazenda Lagunita10 foram executados pelo misterioso Exército do Povo Paraguaio (EPP), um pequeno grupo – e não guerrilha – ao qual se atribuem 31 sequestros e assassinatos desde 2006 em zonas de difícil acesso dos departamentos de Concepción e San Pedro, os mais pobres do país. A investigação revela que uma das vítimas, Feliciano Coronel Aguilar, um suboficial da polícia, dirigia, em seu “tempo livre”, a empresa de segurança San Jorge, encarregada da segurança da fazenda. De seu lado, no Facebook, o EPP afirma que seus alvos “fazem parte de um grupo parapolicial que matou vinte camponeses”, o que confirma implicitamente o ex-deputado colorado Magdaleno Silva: “É preciso investigar a verdadeira atividade da empresa de segurança San Jorge”.11O padre Pablo Caceres, da diocese de Concepción, afirma: “Essas pessoas que são assassinadas, esses seguranças particulares, que nos dizem ser pobres trabalhadores, eram na realidade matones”.12
Em abril de 2010, o presidente Lugo, regularmente acusado de ter ligações com o EPP, havia decretado estado de exceção durante um mês para tentar erradicá-lo – sem resultado – em quatro departamentos. No dia 22 de agosto, com uma velocidade meteórica, o Congresso aprovou uma lei que permite a Cartes ordenar operações militares sem a necessidade de, antes, declarar estado de exceção. A polícia nacional passou ao controle operacional dos militares, que se deslocam pelos departamentos de San Pedro, Concepción e Amambay, apoiados por helicópteros e tanques blindados. Tudo isso para acabar com um movimento de oposição armada cujos efetivos não chegam a constituir duas equipes de futebol?
Na comunidade de Tacuatí Poty, para não se ater a um único exemplo, reina uma atmosfera de fim de mundo. Nesse assentamento de setecentas famílias encurraladas pela soja, brigou-se por tudo: primeiro pela terra, depois pelo posto de saúde, pela escola, o colégio, a água potável, a estrada. A oito quilômetros dali, um rico latifundiário, Luis Lindstrom, foi sequestrado entre junho e setembro de 2008 pelo EPP, e liberado mediante o resgate de US$ 130 mil, depois assassinado no dia 31 de maio de 2013 por dois franco-atiradores supostamente pertencentes à “guerrilha”. Acusado de constituir um dos campos de base da subversão, Tacuatí Poty vive o inferno das revistas noturnas e sem mandado realizadas por militares, além de intimidações, provas plantadas pela polícia nos quartos daqueles que ela deseja incriminar e detenções arbitrárias.
“As pessoas estão com medo. Não se pode confiar na justiça nem nas instituições que deveriam proteger nossos direitos. Os acusados são pais de família, lutadores que se levantam às 5 da amanhã para trabalhar. Como se fosse por acaso, eles são também os dirigentes. No fundo, o problema são as nossas terras. Em nossa ignorância, é o que percebemos. Ao acabar com os dirigentes, eles acham que vão acabar conosco”, alarma-se Victoria Sanabria.
Trata-se, em resumo, de um grande clássico latino-americano. Uma ferida mal curada termina por inflamar-se. Grupos, pequenos ou grandes, condenáveis ou não, radicalizam-se. O poder dito “democrático” grita de forma ameaçadora e, lançando ordens de capturar presumidos culpados, criminalizam em primeiro lugar… os movimentos sociais – em benefício, no caso do Paraguai, dos sojeros.
BOX:
“Brasiguaios”: desprezados ou adorados
Cerca de 19% do território nacional paraguaio, ou 7,7 milhões de hectares (32% do total das terras aráveis), estão nas mãos de proprietários estrangeiros. E cerca de 4,8 milhões de hectares pertencem a brasileiros, principalmente nas zonas fronteiriças do Alto Paraná, Amambay, Canindeyú e Itapúa. É o que mostra o estudo coordenado por Marcos Glauser, da Organização BASE Pesquisas Sociais, e Alberte Alderete, do Serviço Jurídico Integral para o Desenvolvimento Agrário (Seija), realizado com base no Censo Agrário 2007-2008.
Dois períodos favoreceram a chegada dos brasiguaios. As leis que permitem a venda de terras públicas foram aprovadas após a guerra contra a Tríplice Aliança, que, de novembro de 1864 a março de 1870, opôs o Paraguai à coligação composta por Brasil, Argentina e Uruguai – com consequências desastrosas para o Paraguai. Logo depois, nos anos 1970, marcados pela queda dos preços no mercado fundiário, tornou-se tão fácil desmatar áreas selvagens que Alfredo Stroessner não tinha nada a recusar a seus homólogos dos países vizinhos.
O cenário seguiria igual até a “ditadura” ser substituída pela “ditamole”, momento em que os colonos brasileiros, com a bagagem da agricultura mecanizada, introduziram a soja no país vizinho. Esses colonos foram os pioneiros das empresas de agronegócio mais importantes no Paraguai e entraram em conflito direto com os camponeses locais.
Em matéria de “domesticação” das populações, os recém-chegados haviam feito escola em seu país de origem: “A grande maioria chegou com a mentalidade de ‘fronteira’, para fazer fortuna facilmente, e se impôs por meio da violência, abalando costumes, normas, regras ambientais. Sem mencionar as leis trabalhistas”, denuncia Miguel Lovera, presidente do Serviço Nacional de Qualidade e Saúde dos Vegetais e Sementes (Senaves). Apesar de empregar pouca mão de obra em função da mecanização da agricultura, esses colonos – cujas propriedades variam de cerca de 100 hectares até os 140 mil hectares do “rei da soja” Tranquilo Favero – não raro infligem a seus trabalhadores regimes de semiescravidão. “Eles possuem seus próprios seguranças, mas é comum que usem camponeses locais como matones [guardas particulares] em troca de um pouco de dinheiro”, conta Jorge Lara Castro, ministro de Negócios Estrangeiros do ex-presidente Lugo. A coordenadora nacional da Organização da Luta pela Terra (OLT), Esther Leiva, é mais direta: “Se você passar pelas terras deles, eles podem facilmente atirar”.
“Entre eles [os brasiguaios], há de tudo”, constata o economista Luis Rojas. “Brasileiros ‘puro sangue’, naturalizados, filhos da segunda e terceira gerações. Mas tenham ou não documentos paraguaios, todos mantêm uma forte relação com o país de origem”, explica. Em distritos onde todas as rádios e canais de televisão transmitem em português, os brasiguaios se comunicam nesse idioma, possuem suas próprias escolas, igrejas e permanecem economicamente ligados ao país vizinho. “Não vemos isso com bons olhos”, confessa Isebiano Diaz, camponês de um assentamento do departamento de Caazapá, resumindo o sentimento de sua comunidade e de outras também. “Eles enchem a cabeça das pessoas com ideias estranhas”, completa.
Xenofobia? “Há rejeição”, admite Rojas. “Mas é muito complexo: enquanto os camponeses são abandonados, os brasiguaios são presentes no meio dos negócios que exploram.” De fato, como tal, a comunidade brasileira se envolve pouco com os partidos políticos, mas faz forte pressão política quando considera que seus interesses são afetados ou ameaçados. E quase sempre obtém ganho de causa, pelo apoio incondicional dos círculos dirigentes. “A médio prazo, seus territórios se converterão em encraves brasileiros em território paraguaio”, observa Alderete. Se é que já não é assim… (M.L.)
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Maurice Lemoine é jornalista ee autor de “Cinq Cubains à Miami ( Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.
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1 Diante do “fato consumado”, o governo paraguaio legalizou sem muitos problemas a soja transgênica em 2004.
2 A Cargill atualmente está no centro de um escândalo na Colômbia, onde é acusada de ter se apropriado de maneira fraudulenta de 52 mil hectares que o Estado havia designado para camponeses pobres.
3 Luis Rojas Villagra, Actores del agronegocio en Paraguay [Atores do agronegócio no Paraguai], BASE Investigaciones sociales, Assunção, 2012.
4 E’a, Assunção, 19 set. 2013.
5 “Informe de derechos humanos sobre el caso Marina Kue” [Relatório de direitos humanos sobre o caso Marina Kue], Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai, Assunção, 2012.
6 Membros de uma congregação evangélica de origem europeia (essencialmente alemã) que emigrou para o Paraguai na década de 1920. Formado por cerca de 30 mil pessoas, o grupo assegura mais de 80% da produção leiteira nacional.
7 Aldo Zuccolillo, proprietário do ABC Color, é o principal sócio da Cargill no Paraguai.
8 Ler Renaud Lambert, “Au Paraguay, l’‘élite’ aussi a voté à gauche” [No Paraguai, a “elite” também votou na esquerda], Le Monde Diplomatique, jun. 2008.
9 Antígua e Barbuda, Bolívia, Cuba, Equador, Honduras (até o golpe de Estado de 2009), Nicarágua, República Dominicana, São Vicente e Granadinas, Venezuela.
10 Fazenda dedicada à criação de gado.
11 E’a, 21 ago. 2013.
12 Radio Ñanduti, Assunção, 6 set. 2013.
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