Fundamentando o casamento como contrato, temos uma lei que eterniza nossa condição de instrumento para o outro
Christian Ingo Lenz Dunker Gonçalo Viana
A tradição liberal tende a definir o casamento como um contrato realizado entre duas pessoas, no livre exercício de sua liberdade e faculdades mentais. Um contrato que inscreve os envolvidos em um discurso, por meio do qual o Estado reconhece tal união, prescrevendo, a partir daí, direitos e deveres ligados à descendência e à herança do casal. No direito canônico e para a maior parte dos ritos cristãos da Antiguidade o casamento era apenas uma forma de reconhecimento de um laço entre pessoas. Os nubentes se casam, o padre, o juiz ou correlatos apenas testemunham, divulgam ou celebram. Hoje, assim como há uma força que pressiona rumo à ampliação das modalidades de casamento, há outra que tende a reduzir a importância do contrato. Na experiência clínica são cada vez mais frequentes situações de casais que vivem juntos e que se consideram casados, até que um filho, uma herança ou um plano de saúde os separem. Sentimos que o contrato informal e íntimo é a essência de uma relação amorosa e que tal ligação deve perdurar por seus próprios motivos. O combinado, neste caso, acrescenta um incômodo signo de inautenticidade ao que é, afinal e antes de tudo, um pacto de amor entre dois. Mas, como pensam outros tantos, uma relação que não tem estatuto de lei é uma forma de amor acanhada e incompleta. Como um namoro secreto que entre quatro paredes ganha tórrida intensidade, mas que fora dali parece feito de mentira e destituído de realidade. Os dois lados parecem ter suas razões: o verdadeiro amor é livre, somente se, livremente, renunciar a sua liberdade. Foi Immanuel Kant, um célebre celibatário, quem observou a natureza problemática do enlace ao perguntar: “Se o casamento é um contrato, que tipo de lei realiza?”. A resposta é que se trataria de uma espécie de confusão consentida entre uma lei condicionada à propriedade, que regula a relação entre pessoas e coisas, e a lei de tipo comunitária, que organiza a relação entre pessoas. Isso porque o casamento dispõe sobre certo tipo de uso do corpo do outro (propriedade), assim como sobre uma forma de vida comum, livre e justa (comunalidade). Portanto, o contrato mistura, de modo confuso, mas ainda assim deliberado, duas dimensões que sabemos serem independentes: o sexo e as trocas sociais. O sexo suspende a equidade das trocas sociais, introduz relações de uso, abuso e exclusividade entre quase coisas. Por outro lado, a igualdade jurídica cria uma suspensão das diferenças, distinções e diversidades instituindo a figura de quase pessoas (que ignora as pessoas reais, seus desejos reais e seus gozos inconstantes). Fundamentando o casamento como contrato temos então uma lei baseada em um equívoco, que trata pessoas como coisas e coisas como pessoas, que demanda regulação pelo Estado de um ato privado, que fixa a paixão de ser objeto e eterniza nossa condição de instrumento para o outro. Tudo isso junto e misturado é o que se chama clinicamente de perversão. Conclusão: o casamento é uma perversão consentida. Se Kant tinha razão, nossa crescente covardia diante dessa união como contrato é mais um sinal de nossa normalopatia.
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