terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O Presídio Central e a nossa vida do lado de fora


Já há um razoável consenso no Brasil que não é possível reduzir os níveis de criminalidade sem enfrentar o problema do sistema penitenciário.

Marco Aurélio Weissheimer

É falsa a afirmação de que o Brasil é o país da impunidade. Nosso país pune muito, gosta de punir, mais ainda se for para punir desigualmente. Há várias maneiras de se comprovar isso. Uma delas é dada no debate sobre o Presídio Central de Porto Alegre e sobre o sistema prisional brasileiro como um todo. Esse debate interroga não só o Estado, responsável pela sustentação e administração do estabelecimento, mas a sociedade. Trata-se de um debate permanentemente escamoteado e impregnado de falácias e crenças contraditórias.

Não é pequena a parcela da população que defende que o Estado não deve gastar “muito dinheiro” com a população carcerária, como se esse “gasto” não tivesse nada a ver com uma política de segurança pública de qualidade. Há mesmo quem ache esses gastos um absurdo e que defenda o encarceramento nas atuais condições (precaríssimas) ou a pena de morte como solução para o problema da criminalidade. Há ainda quem veja neste problema dramático uma oportunidade para ganhar dinheiro e defenda a privatização das prisões. A população, de um modo geral, parece não querer participar desse debate. É um tema incômodo, pesado e que mexe com alguns instintos nossos não muito nobres.

Volta e meia a situação de um determinado presídio, como ocorre agora com o Presídio Central, vira assunto na mídia, e surge um debate a respeito, que costuma ser breve e fragmentado, retornando logo para o terreno de um silêncio repleto de crenças contraditórias, nem sempre explicitadas. Essas crenças contraditórias se manifestam em outras áreas também.

A sociedade precisa de mais segurança, mais policiais nas ruas, mais cadeias. O Estado deve garantir tudo isso.

Mas o Estado não pode aumentar impostos, também não pode gastar muito, não pode ficar aumentando salários dos servidores públicos.

A sociedade precisa de mais saúde, mais hospitais, mais postos de saúde. O Estado, os governos, as prefeituras devem garantir esse direito.

Mas o Estado não pode aumentar impostos, também não pode gastar muito, não pode fixar aumento dos salários dos servidores públicos. Também não pode trazer médicos de fora, para citar um exemplo mais recente.

A sociedade precisa de mais educação, escolas e professores de melhor qualidade, com acesso às mais recentes tecnologias.

Mas o Estado não pode gastar muito, não pode aumentar impostos, e não pode ficar dando aumento para os funcionários públicos o tempo todo.

O Estado precisa garantir mais segurança à sociedade, resolver os problemas dos presídios, construir mais presídios, do jeito que der, não quero saber, desde quem não fiquem perto da minha casa.

Mas o Estado não deve ficar gastando dinheiro com vagabundo que está na cadeia. Tem que deixar apodrecer lá. Também não deve dar muito aumento salarial para os servidores da área.

Em resumo, a população precisa de mais saúde, educação e segurança, e o Estado tem de garantir esses serviços públicos sem gastar muito, sem aumentar impostos, sem ficar gastando dinheiro com gente “preguiçosa e vagabunda”.

Essas crenças contraditórias, às vezes, vêm acompanhadas por bordões falaciosos que pretendem expressar verdades. Um dos mais conhecidos é: “o Brasil é o país da impunidade”. Mas, como assim é o país da impunidade, se os nossos presídios estão abarrotados e clama-se pela construção de novos estabelecimentos? É que só os pobres vão pra cadeia! – responderá alguém.

Em geral, é verdade, a julgar pelo perfil da nossa população carcerária, mas, neste caso, não seria melhor dizer “o Brasil é o país da injustiça”, ou “o Brasil é o país onde a lei só vale para o pobrerio”, ou algo do tipo? Dizer isso é muito diferente de dizer “o Brasil é o país da impunidade”. E essa diferença não é um detalhe: significa dizer que o problema é a injustiça, a desigualdade de tratamento, a desigualdade de acesso, de oportunidades, de direitos.

Se há alguma impunidade habitando os presídios brasileiros hoje é a do descumprimento da Lei de Execuções Penais, um fator diretamente responsável pela superpopulação nestes estabelecimentos. Segundo disse há poucos meses o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, praticamente não existe hoje no sistema penitenciário brasileiro a possibilidade de cumprimento da pena nos regimes aberto e semiaberto. Em função disso, mais de 120 mil presos cumprem pena em condições mais graves que as previstas em suas condenações, como o regime fechado. “A execução penal no Brasil talvez seja uma das áreas em que a realidade mais se distancia da letra da lei”, resumiu ele durante uma audiência pública sobre o regime prisional.

Já há um razoável consenso entre as autoridades e especialistas da área de segurança pública no Brasil que não é possível reduzir os níveis de criminalidade sem enfrentar o problema do sistema penitenciário brasileiro. Os presídios, que em tese deveriam ser locais de estada transitória, foram transformados em depósitos de pessoas nas mais variadas situações processuais e em escritórios de facções criminosas. A situação vivida nos presídios e a violência nas ruas das cidades brasileiras não são duas coisas distintas, mas duas faces da mesma moeda.

Acreditar que podemos seguir convivendo com infernos carcerários, que quem está lá dentro merece apodrecer nestes depósitos, e que tudo isso não tem nenhuma consequência na vida da sociedade como um todo, é colaborar para a reprodução da cultura de violência que é parte constitutiva da história do Brasil e do financiamento do Estado brasileiro.


(*) Publicado originalmente no Sul21.

Carta Maior

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