Filósofo alemão do século XX é indispensável para compreender conceito contemporâneo de utopia: o “vir-a-ser” que convida a “astuciar o mundo”
Por Arlindenor Pedro
Às vezes me pego pensando no porquê de a língua alemã ter produzido uma gama tão grande de pensadores, artistas, e filósofos que contribuíram de forma tão expressiva para história da humanidade.
Desnecessário seria citar os nomes de Schiller, Kant, Hegel, Beethoven, Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Weber, Horkheimer, Adorno, Erich Fromm, Habermas, Walter Benjamim, e agora uma nova geração de marxistas como Robert Kurz, Anselm Jappe e tantos outros — gigantes nos seus objetos de estudo.
Alguém argumentou que isto se dá devido à estrutura da língua alemã, que se apresenta como extremamente prática e precisa na tradução de um pensamento, sendo para muitos uma ferramenta decisiva na criação e na “arte de filosofar”; concepção que tornou célebre a frase do filósofo Heidegger, quando disse que a filosofia só poderia ser escrita em duas línguas: o grego e o alemão.
Exageros à parte, pois sabemos que a produção cultural, artística e filosófica da humanidade vai muito além do que nos legaram os gregos e também o povo alemão, não deixo de me encantar com as ideias oriundas dos filósofos germânicos, notadamente com o pensamento original do professor Ernst Bloch. Nascido em 1885, em Ludwigshafen, viveu 92 anos , encerrando sua vida em 4 de agosto de 1977, em Tubingen. Considerado um dos mais importantes pensadores marxistas alemães do século XX, sua obra vastíssima incursionou por um vasto leque temas de relevantes.
Bloch conviveu com os maiores pensadores do século passado sendo por eles influenciado e certamente influenciando-os, por meio dos inúmeros estudos que publicou: Entre estes, estão Lukács — com quem manteve uma relação de amizade, marcada por altos e baixos –, Simmel e Max Weber — os três participaram juntos de círculos de reflexão — e, mais tarde, Adorno, Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Bertolt Brecht, Hans Eisler, Kurt Weil e Otto Klemperer.
Durante sua vida, em vários momentos teve que se tornar refugiado, ora para fugir do alistamento militar na I Guerra Mundial, ora para fugir do nazismo, às vésperas da II Guerra, ou mesmo para escapar, já no pós-guerra, escapar ao estalinismo da Alemanha Oriental, onde exercia importante cátedra na Universidade Karl Marx. Conheceu, portanto, picos de prestígio por seu valor acadêmico e o desprezo da intelectualidade do comunismo oficial, que o perseguiu por suas posições pouco ortodoxas no campo do marxismo.
O fato é que Ernst Bloch pouco se afinou com a visão economicista do marxismo oficial, desenvolvendo estudos em áreas por ela desprezadas , como a psicologia , arte e filosofia. Priorizou a visão de totalidade dos escritos de Marx , colocada no esquecimento pela ortodoxia da Terceira Internacional. Para Bloch, a ação revolucionária, objetivo do marxismo, é justamente captar esses conteúdos e acioná-los em favor da liberdade. Vanguardas, para ele, são movimentos que conseguem explorar esses conteúdos, expressando-os antes que eles sejam confinados ao senso comum — tornando possível, assim, o exame da ação adequada. Por isso é que, para ele, a utopia é tão importante para o marxismo.
Nesse campo, sem dúvidas, sua obra mais importante é o enciclopédico Príncipio Esperança, escrito em seu exílio nos Estados Unidos e publicado em 1956, quando já retornara à Alemanha.
Hoje, é impossível entendemos o conceito moderno de utopia se não levarmos em consideração os estudos feitos nesta área por Ernst Bloch e seu contemporâneo , o húngaro Karl Mannheim, notadamente com o clássico Ideologia e Utopia, onde se debruça sobre esses conceitos, tão presentes na vida moderna .
Mannheim entende que “as ideologias são ideias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de fato a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora se tornem com frequência motivos bem intencionados para a conduta subjetiva do indivíduo, seus significados, quando incorporados efetivamente à pratica, são, na maior parte, deformados.
A ideia do amor fraterno cristão, por exemplo, permanece, sob uma sociedade fundada na servidão, irrealizável. Nesse sentido, é uma ideia ideológica, mesmo quando o significado pretendido constitui, em boa fé, um motivo de conduta do indivíduo. E impossível viver harmoniosamente, à luz do amor fraterno cristão, em uma sociedade que não se acha organizada sob o mesmo princípio. O individuo se vê, em sua conduta pessoal, sempre forçado — à medida em que não ocorre a ruptura da estrutura social existente — a renunciar a seus motivos nobres.” (in Ideologia e Utopia).
Devido a seu papel de incongruência — isto é, dissonância com a ordem estabelecida — as utopias passam então a ter um relevante papel como motor do processo histórico, isto é, da busca por mudanças. Estariam elas, entendo, no campo das pulsões, conceito presente nas obras de Ernst Bloch principalmente em Principio Esperança.
Ali, ele nos propõe a visão da existência de um nexo entre as potencialidades “ainda-não-manifestas” e a atividade criadora da “consciência antecipadora”. Isto é, podemos equacionar problemas atuais em sintonia com as linhas que antecipam o futuro. O conceito blochiano de superação “do que-já-se-efetivou” pela esperança “do que ainda-não-veio-a-ser”, torna-se um importante elemento para entendermos o papel das utopias no desenvolvimento das sociedades.
O “ainda-não-ser” — categoria fundamental da filosofia blochiana da práxis — baseia-se na teoria das potencialidades imanentes do ser que ainda não foram exteriorizadas, mas que constituem uma força dinâmica que projeta o ente para futuro. Imaginando, os sujeitos “astuciam o mundo”. O futuro deixa de ser insondável para vincular-se à realidade como expectativa de libertação e desalienação.
Bloch nos diz que, ao contrário do que a psicanálise freudiana procura ensinar, não está no passado o único elemento de entendimento do comportamento humano no “presente-vivido”. Na verdade, no presente, o individuo vive já o futuro, que está presente nas suas ações e comportamentos — isto é, suas utopias. Quanto menos se tem utopias, menos se vive o futuro no presente, vivendo-se apenas no campo das ideologias, formatadas pela realidade social que nos cerca.
Mas, é importante, porém, diferenciarmos o que é imaginação e o que é fantasia: na primeira tendemos a criar um imaginário alternativo; já na segunda nos alienamos num conjunto de imagens exóticas em que procuramos compensar uma insatisfação vaga e difusa da realidade por outra imagem irreal. A imaginação é um elemento decisivo na luta contra a opressão. O ato de imaginar aclara os rumos e acelera as utopias. Eis aí, portanto, uma visão que vai além do conceito mecanicista de luta de classes desenvolvido pelos teóricos de plantão da Terceira Internacional.
Princípio Esperança é uma obra instigante e apaixonante. Leva ao entendimento das diferenças entre o “sonho noturno” , objeto de estudo das importantes descobertas de Freud, e os “sonhos diurnos” , elementos transformadores , impulsionadores da história. Em alguns momentos, a obra de Bloch assemelha-se com outro importante livro, lançada em 1959. Trata-se de Visão do Paraíso – Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, de nosso Sérgio Buarque de Holanda. Aí ele analisa o imaginário das utopias, das lendas paradisíacas do século XVI na Europa, que impulsionaram subjetivamente as grandes navegações, levando-nos a fazer a pergunta: será que estes autores se conheceram? Suas obras são tão relevantes e se tocam em tantas questões!
Olhando para ambas, dificilmente deixamos de nos indagar: não será a utopia o elemento impulsionador das navegações portuguesas? Se não assim, como entender que um país tão diminuto e frágil tenha se lançando em uma aventura de tamanha dimensão?
Fernando Pessoa é um dos maiores poetas da língua portuguesa. Em sua obra Mensagem, onde se destaca o poema O Quinto Império, ele retrata bem o espírito português, que vê na expansão para o ultramar um momento épico da nacionalidade, que se propôs levar ao mundo uma nova civilização, com os valores extraídos dos povos celtas, românicos, mouros e visigóticos. Isto também pode ser percebido em outro grande gigante da poesia épica lusitana — Camões –, que, nos Lusíadas compreendia a Península Ibérica como o final da terra, onde começava o grandioso e misterioso mar: “Onde a terra se acaba e o mar começa” (Camões, in Lusíadas, III, 20)
Era inevitável, portanto, que surgisse naquele povo, no seu ideário, a necessidade de se lançar à mar, onde a terra terminava. Era o infinito que atraía coletivamente a todos — afinal, o que existiria além-mar? Além dos interesses materiais envolvidos no processo de expansão, percebemos que, naquele momento, amalgamou-se no imaginário português a utopia do 5º Império que ajudou a unir o país — o povo e as elites — num sonho único, capaz de realizar tanto a nacionalidade quanto o indivíduo, dando-lhes condições para tão grandiosa empreitada. Foi um momento mágico, único. Aquele momento em que a nação como um todo é capaz de executar e tornar vitorioso um grande desafio. As pulsões do que nos fala Ernsth Bloch.
Enquanto esta utopia esteve viva — durante a dinastia de Aviz –, Portugal conseguiu unidade. Suponho, portanto, que no período entre o início do reinado de D. João I e a morte precoce do jovem rei D. Sebastião, desenrole-se o profundo drama da nacionalidade lusitana. Referindo-se esses tempos, Oliveira Martins, na obra Os filhos de D. João I”, retrata esta dramaticidade, quando da decisão de D. João em invadir Ceuta:
“Estava o rei com os infantes em Sintra, talvez naquela pequena câmara forrada de azulejos também, que a tradição diz ter sido o lugar de D. Sebastião no Conselho decisivo na campanha de Alcacér Quibir. Nesta câmara devia ser, para que num mesmo lugar se resolvessem as duas expedições: a que abre e a que encerra o círculo mágico de nossa vida gloriosa. Desde os tempos misteriosos da Caldeia, esse berço de todas as adivinhações, o anel representado pela serpente devorando-se a si própria, foi a imagem simbólica da vida no seu ritmo fatal, voltando ao ponto de partida, acabando por onde começara…”( in Os filhos de D. João I, Oliveira Martins,1998) .
“Negar que durante os três séculos da dinastia de Avis a nação portuguesa viveu de um modo forte e positivo, animada por um sentimento arreigado da sua coesão interna, seria um absurdo. Essa coesão que fora ganha nas lutas e campanhas da primeira dinastia perde-se no XVI século, por causa das consequências do império oriental e da educação dos jesuítas. Portugal acaba: Os Lusíadas são um epitáfio.” (in Historia de Portugal, Oliveira Martins, 1972).
Na atualidade, vejo que as utopias estão de volta no imaginário do mundo global e elas ganham uma feição pós-capitalista — um novo mundo fora dos padrões da sociedade da mercadoria.
A crise que varre o mundo globalizado acelera estas utopias e cada vez mais arrasta pessoas para um “sonho diurno”, tirando-as do torpor da vida de autômatos-consumistas. Após as derrotas das utopias do século XX, do socialismo real, do nazismo e do fascismo, surgem propostas de um viver agora, já, neste momento, diferente do que nos impõem a sociedade erigida pela burguesia liberal. Nesse sentido os conceitos blochianos têm um imenso valor e são instrumentos importantes para a rebeldia que leva à revolução.
Desta forma, iniciativas que passam desde a formação de Zonas Autônomas, a encontros periódicos como os Rainbows, até a grandes ou pequenas manifestações que atingem a essência do sistema como a proposta do Passe Livre, jogam um importante papel na busca dessa utopia, pois o desmoronamento desse mundo não se fará de uma única forma ou em um único momento. Ele é fruto da ação de milhões de pessoas que, em rede, conectadas por um sentimento de mudanças paralisarão o sistema. Tal processo já se torna visível com as crise do sistema financeiro, do sistema produtivo, no mundo do trabalho e de valores éticos que levam a sociedade para a barbárie e apontam para grandes colapsos energético e ambiental. Não queremos mais isto, é um grito que ecoa com grande intensidade em todo o planeta!
Como era de se esperar, prevalece o instinto de sobrevivência humana que impulsiona os escravos para a rebeldia.
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