terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Gina, Sam Alves e o Espírito Santo


Samuel tinha dois dias de vida ao ser abandonado numa caixa de sapatos. Na última quinta-feira, ele venceu o The Voice Brasil

Luiz Ruffato

Samuel tinha dois dias de vida ao ser abandonado dentro de uma caixa de sapatos na porta de uma casa em Fortaleza. Adotado pelos evangélicos Raquel e Luis Alves, cresceu adubado com carinho. Em 1993, quando contava apenas quatro anos, os pais resolveram tentar a vida nos Estados Unidos. Após dez anos, Samuel voltou para o Brasil com a mãe, e, incentivado por ela, chegou a gravar um disco independente de música gospel, sem sucesso. Em 2007, regressou aos Estados Unidos, retomando as esperanças de fazer carreira como cantor.


Na última quinta-feira, já usando o nome artístico de Sam Alves, Samuel venceu a edição nacional do show de talentos The Voice Brasil, levada ao ar pela Rede Globo de Televisão, com quase metade dos 29 milhões de votos dados pelo público em eleição direta, cantando Hallelujah. Cercado por bailarinos vestidos de branco, transformou o ceticismo de Leonard Cohen em uma quase canção de exaltação a Deus. Naquele momento, Sam Alves representava, com seu carisma, sua voz, sua história, uma das mudanças mais significativas da sociedade brasileira nos últimos cinqüenta anos, o crescimento vertiginoso da presença da religião no discurso cotidiano.

Pouco antes de Sam Alves se apresentar no palco, a cantora Claudia Leitte, “técnica” dele, disse que a missão de seu pupilo era “fazer Deus se revelar através do canto”. Quando ouvidos, os familiares do cantor, em Fortaleza, não pouparam exortações a Deus em busca de um escudo para o parente naquela hora de provação, e Sam Alves, ao revelarem seu nome como o grande vencedor do programa, elevou os olhos aos céus, murmurando um agradecimento a Deus.

Já na novela Amor à vida, carro-chefe da teledramaturgia da Rede Globo, a personagem Gina, “moça direita e pura”, segundo seu perfil oficial, apaixona-se por Elias, freqüentador de uma igreja pentecostal dirigida por Efigênio, dono de bar convertido em pastor. As cenas em que aparece o casal, onde predominam a cor branca nas vestes, a serenidade nos diálogos, a paz nos rostos dos protagonistas, buscam despertar simpatia no telespectador e construir uma imagem positiva dos evangélicos – algo impensável há pouquíssimo tempo. Claro, trata-se de uma estratégia da Rede Globo, menos interessada em religião, e mais em conquistar um público que vem crescendo exponencialmente, responsável por, em menos de vinte e cinco anos, posicionar a Rede Record, braço midiático da Igreja Universal do Reino de Deus, em segundo lugar no ranking de audiência no país.

O Brasil, segundo o censo do IBGE de 2010, continua predominantemente católico: 65% da população assim se declara, embora todos saibamos que os números são inflacionados, pois esta maioria é formada por “não praticantes”, eufemismo onde se enquadram os que mantêm uma relação apenas pragmática com a religião. Mas o espantoso é constatar que a comunidade evangélica, que engloba protestantes, pentecostais e neopentecostais, representa hoje 22% do total da população – lembrando que quem se manifesta evangélico quase sempre segue os preceitos da confissão à risca. Em dez anos, esta comunidade cresceu 61%, e de forma preponderante entre os que são classificados como a Classe C emergente.

A multiplicação do número de evangélicos – e aqui excetuamos os protestantes históricos, luteranos, metodistas, presbiterianos, batistas – deve-se basicamente a dois fatores, um teológico, outro social. Baseados em uma interpretação literal da Bíblia, único livro reconhecido como repositório de toda a sabedoria necessária para a vida, os ensinamentos evangélicos, de tão simples, podem ser compreendidos por qualquer pessoa, independente do grau de instrução. Afinal, oferece-se um edifício moral sólido, onde não há lugar para especulações metafísicas.

Abraçada pela sensação de permissividade de um mundo moralmente decadente, e vivendo num país onde o Estado se omite no cumprimento de suas funções mais básicas (proporcionar educação, saúde, habitação e segurança de qualidade aos cidadãos), as verdades absolutas, inquestionáveis, definitivas, pregadas pelos evangélicos, vicejam no desamparo das camadas mais pobres, sempre avizinhadas da miséria. O duro cotidiano de pessoas oriundas de famílias destroçadas pelo alcoolismo e pelas drogas, acuadas pela violência dos traficantes e da polícia corrupta, vilipendiadas por salários mínimos, humilhadas na solidão de cozinhas, guaritas e balcões, encontra alívio em igrejas abertas 24 horas por dia. A tristeza, o medo, a angústia se dissipam no aconchego de uma congregação formada por iguais, e uma ampla rede social se estende para amparar o novo crente.

O resultado é uma comunidade fiel e obediente, que alimenta uma máquina que arrecadou em 2011, segundo dados da Receita Federal, cerca de R$ 20 bilhões, levando em consideração todos os credos, mera estimativa, já que as igrejas não pagam impostos e a entrada de divisas ocorre, em geral, por dízimos e doações em espécie, dinheiro cujo destino é impossível de ser rastreado. Uma comunidade fiel e obediente que acredita deter a verdade absoluta, e que possui pouca tolerância com quem dela discorde.

Para manter o proselitismo religioso, formou-se no Congresso Nacional uma frente suprapartidária evangélica que reúne 73 parlamentares, com objetivo de rechaçar, de maneira intransigente, qualquer discussão sobre aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo e eutanásia, entre outros pontos. Além da defesa de seus interesses dogmáticos, a bancada, que projeta para as próximas eleições um crescimento de 30%, tem particular devoção pelas concessões de emissoras de comunicação para difundir a fé – em 2011 as igrejas pentecostais e neopentecostais alugavam 140 horas semanais de programação das cinco principais tevês abertas do Brasil. Ao mesmo tempo, essa bancada é a que detém mais processos na Justiça Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal, por formação de quadrilha, sonegação de impostos, abuso do poder econômico, peculato e improbidade administrativa...

Luiz Ruffato é escritor


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