segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Estado de exceção: o que é, e para que serve


Pedro Rocha de Oliveira e Clarice Chacon*.

O conceito de estado de exceção tem origem jurídica precisa e aponta para um fenômeno social muito específico: a suspensão do Estado de Direito através do direito. A ideia geral da exceção é que é preciso suspender a constituição em momentos de crise e que, portanto, tal suspensão deve ser legal, apesar de inconstitucional (o que, obviamente, é um contrassenso – mais um entre muitos dos que são necessários para o funcionamento dessa máquina de moer gente que é o capitalismo). Em bom português, pode-se falar de estado de exceção naqueles casos em que a legislação prevê que o indivíduo não pode contar com a legislação para se defender. 

Historicamente, as constituições burguesas incluem normalmente esse recurso: no caso de “ameaça à ordem pública”, “à nação”, “ao povo” etc., o direito é suspenso para que o Executivo possa agir com “presteza”, “prontidão”, “energicamente” etc. Às vezes é chamado de estado de sítio, de emergência, de urgência, mas não importa: nos Estados contemporâneos, muitas vezes o estado de exceção é decretado sem ser chamado por qualquer nome e, nesse sentido, podemos falar de medidas de exceção. Vejamos alguns exemplos que mostram diferentes matizes do fenômeno.

Primeiro exemplo: o governo francês decretou estado de urgência no outono francês de 2005 e inverno de 2006, quando as chamadas Zonas Urbanas Sensíveis – a periferia de Paris e outras regiões onde vivem 5 milhões de franceses, na sua maioria descendentes de árabes e de africanos – se conflagraram em levantes contra a Lei do Primeiro Emprego. Quer dizer o seguinte: por razões administrativas, o Executivo francês entendeu ser preciso oficialmente “empoderar” a polícia com capacidade de revistar qualquer um, entrar nas casas sem mandato, decretar toque de recolher etc. É claro que a polícia francesa opera usualmente numa lógica de oficiosa seletividade étnica e de classe e, portanto, normalmente pratica essas condutas com os negros, os muçulmanos, os pobres, etc – com a população de regiões que, afinal, possuem a designação emergencial permanente de “sensíveis”. De fato, o estopim dos levantes foi o assassinato de dois jovens pela polícia. Mas, no meio dos motins, dos carros queimados, das ruas cheias de gente, em 2005-2006, o oficioso não foi suficiente, e julgou-se necessário decretar oficial aqueles procedimentos.

Segundo exemplo: o National Defense Authorization Act (NDAA), aprovado em 2012 no congresso estadunidense, ainda evocando o vocabulário da emergência supostamente justificado pelos eventos do 11 de setembro de 2001, prevê, entre outras bizarrias, que cidadãos americanos possam ser mantidos presos sem acusação formal e sem julgamento por tempo indeterminado, em nome do “combate ao terrorismo”. Assim, para além dos horrores sistematicamente praticadas pelos Estados de forma totalmente ilegal – como no caso brasileiro em que há montanhas de denúncias a respeito de mulheres e homens, pretos e pobres, encarcerados enquanto aguardam julgamento, às vezes por anos – a particularidade do NDAA é a previsão legal de tais horrores.

Terceiro exemplo: em novembro de 2010, através de decreto presidencial, autorizou-se a atuação das Forças Armadas na chamada “ocupação” do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O Artigo 144 da Constituição Federal não prevê o emprego das Forças Armadas para cuidar da segurança pública. Porém, outro decreto presidencial, o de no 3.897 de 2001, permite esse emprego de “forma episódica”, em “área previamente definida” e pela “menor duração possível”, em nome da “garantia da lei e da ordem”. Tal decreto cria a curiosa situação jurídica de uma legalidade inconstitucional, mobilizada em 2010 em nome da “guerra ao tráfico”. É óbvio que, diariamente, o Estado comete muita atrocidade que vai contra a constituição (diga-se de passagem que a ocupação do Alemão teve a “menor duração possível” de 19 meses); porém, medidas de exceção transformam a atrocidade em lei. Faz diferença? Sim, faz. Vejamos por quê.

A sociedade burguesa inventou o direito universal; ao mesmo tempo, a sociedade burguesa é uma sociedade de classe em sentido estrito: o Estado burguês é uma ferramenta de dominação social. O direito universal sempre teve um quê de mentira deslavada: ele não serve realmente aos pobres, aos trabalhadores, àqueles que devem obedecer e deixar-se explorar. Na sociedade em que os meios de produção são propriedade privada, a polícia, os juízes, os funcionários, tratam o proprietário de um jeito, e o que só possui “seus músculos e nervos” de outro. Mas, como se isso não bastasse, no cerne do Estado de direito, está a previsão de que o direito pode ser oficialmente suspenso.

Essa previsão de suspensão oficial exige que a gente reflita com seriedade sobre o estado de exceção. O emprego de tal conceito não é nem uma tentativa de vender novidade, nem um apego tolo à democracia burguesa, mas um esforço de colocar o problema de por que o interesse de classe e a violência extra-econômica, que é sistematicamente exercida de forma oficiosa, em determinadas situações – e, literalmente, por decreto – passa a ser exercida de forma oficial. De fato, o estado de exceção nos exige que atentemos para o papel específico do direito na dominação de classe, na medida que consiste exatamente na violência estatal expressa juridicamente de forma direta e transparente.

Para início de conversa, é preciso levar em conta o seguinte: apesar do direito ser direito de classe, as pessoas recorrem a ele o tempo todo. É assim, mesmo diante de um quadro de total ineficácia do direito. Por exemplo: a violência de classe leva o aparato jurídico a prender e condenar Rafael Vieira, morador de rua no Rio de Janeiro por portar, segundo o juiz, perigosas embalagens de desinfetantes; não obstante, não é porque o direito é de classe e o Estado é a ferramenta da classe dominante que deixaremos de lutar (também) juridicamente pela libertação de Rafael, mais uma vítima da arbitrariedade estatal.

Vamos expandir esse exemplo. Quando manifestantes são presos, como tem acontecido nos últimos meses, nossa reação é recorrer ao Judiciário para garantir sua soltura, e isso não porque somos bobos e ignoramos o caráter de classe do Estado, mas porque, queiramos ou não, o Estado (ainda) detém o poder de prender e soltar. Apesar de obviamente limitada, trata-se de uma via aberta, que o Estado então cuida de fechar quando o governador do estado do Rio institui, numa medida de exceção, a Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas (CEIV). A CEIV era uma comissão com poderes investigativos – algo que, pela constituição, somente poderia ser criado por lei federal. A flagrante inconstitucionalidade não parava aí: a CEIV conferia os poderes investigativos a órgãos que não possuem tal competência (tais como a Polícia Militar e a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro), e previa violação da proteção aos dados de comunicação telefônica. Devido à pressão social – com importante participação do Instituto de Defensores de Direitos Humanos e da Comissão de Direitos Humanos da OAB – o governador do Estado revogou a CEIV pouco depois de criada.

A exceção, portanto – ainda que vire regra – é uma ferramenta específica de dominação, e devemos prestar atenção nessa especificidade: ela procura eliminar do direito sua pequena, porém valiosa, utilidade na resistência contra a violência de classes. Reivindicamos direitos e garantias constitucionais para evitar a submissão ao arbítrio do Estado. Por regra, todos recorrem ao Judiciário para garantir direitos e ver demandas reconhecidas: afinal, em última instância, o direito ainda é um limite à atuação dos poderes e às arbitrariedades cometidas, mesmo que nem sempre seja observado.

É claro que, se a exceção, em sentido rigoroso, realmente virar regra (e, por uma série de razões específicas ao nosso tempo, tudo se encaminha para isso), teremos diante de nós o desafio descomunal de pensar como fazer luta de classes sem as parcas garantias do direito burguês.

Imagina na Copa.


* Clarice Chacon é Advogada e mestranda em História Contemporânea na UFF.

[Nota dos editores: este artigo foi concebido como resposta reflexiva ao artigo Estado de exceção é o "cacete", de Mauro Iasi, publicado no Blog da Boitempo em 11 de dezembro de 2013.]

Boitempo

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