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Bolsa Família, o poder transformador de uma infância sem fome
Para Tereza Campello, o maior efeito transformador do Bolsa Família foi sobre o próprio Estado, que passou a ter um olhar estratégico sobre a pobreza.
Marco Aurélio Weissheimer
Porto Alegre - “Temos uma visão muito distante das diferentes pobrezas que existem no Brasil”. A primeira pessoa do plural empregada pela ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Tereza Campello, na abertura do debate do qual participou neste sábado (25), no Fórum Social Temático 2014, foi um convite para que todo o público se reconhecesse nesta condição. Uma condição de distância em relação a essa realidade que, historicamente, é o cotidiano da maioria da população brasileira. O vídeo de três minutos exibido na abertura do encontro encurtou um pouco essa distância trazendo o depoimento de pessoas beneficiárias do Bolsa Família e de outras políticas públicas do governo federal. Políticas compensatórias ou transformadoras? – perguntava a frase do material de divulgação do diálogo.
Os depoimentos exibidos no vídeo já indicavam, por si só, o caminho da resposta. Relatos de profundas transformações na vida de pessoas e famílias. Não eram relatos de caridade, mas sim de afirmação de projetos, de coragem para enfrentar a vida. As diferentes pobrezas têm como contrapartida, agora, diferentes histórias de orgulho e superação. A ministra Tereza Campello tratou disso quando abordou os temas da superação da miséria e da ampliação de direitos sociais. Ela fez uma advertência preliminar: “Não acho que nenhuma política social sozinha consegue ser transformadora. Quanto mais ela consegue ser mobilizadora de outras políticas, mais bem sucedida ela será. O Brasil não mudou por causa do Bolsa Família. Mudou por causa do Bolsa Família, da política de valorização do salário mínimo, do Prouni, da geração de emprego e assim por diante”.
O poder transformador de uma infância sem fome
O conjunto dessas políticas e a articulação de seus resultados já teve um enorme poder transformador sobre a vida de milhões de pessoas. Só o Bolsa Família atinge cerca de 50 milhões de pessoas e mobiliza um conjunto de outras políticas.
Hoje, ele não é só um programa de transferência de renda. Embora seja apontada nas estatísticas e reconhecida socialmente de modo genérico, essas vidas transformadas nem sempre são visíveis para o conjunto da população. Quando se assiste a um vídeo com depoimentos sobre esse poder transformador atuando concretamente na vida das famílias, o impacto e a própria compreensão acerca de sua dimensão estratégica são muito maiores. “Estamos falando do poder transformador de uma infância sem fome. Já são quase 12 anos de uma infância sem fome”, resumiu Tereza Campello.
Ao fazer um rápido balanço de dez anos do Bolsa Família, a ministra destacou três avanços que considera essenciais. O primeiro deles é o impacto na saúde. A saúde das crianças melhorou em função do casamento do Bolsa Família com o Programa de Saúde da Família. Houve uma redução de 58% da mortalidade infantil causada por problemas relativos à desnutrição. O segundo impacto positivo é na educação, com a alteração da trajetória educacional das crianças. Essa alteração aparece, por exemplo, nas taxas de aprovação. Os jovens do Bolsa Família tem um melhor desempenho escolar no ensino médio do que os jovens que não são beneficiários do programa. A taxa de aprovação dos alunos com Bolsa Família no ensino médio é de 79,7%, enquanto a dos alunos sem Bolsa Família é de 75,7%.
É a primeira vez na história, assinalou a ministra, que temos um indicador de desempenho entre os mais pobres superior ao indicador do resto do país. Na região Nordeste, essa proporção é ainda maior, considerando a aprovação no ensino médio: 82,6% de aprovação entre os alunos com Bolsa Família, contra 72% dos demais.
O terceiro ponto destacado por Tereza Campello foi a redução de 89% da extrema pobreza, lembrando que essa pobreza se concentra mais entre jovens até 15 anos.
Mas o maior efeito transformador do Bolsa Família, defendeu, foi sobre o próprio Estado, que passou a ter um olhar estratégico sobre a pobreza. “Enquanto o mundo inteiro está abrindo mãos de políticas universalizantes, nós seguimos avançando nesta direção, especialmente nas áreas da saúde e da educação. Nós ainda temos muitos problemas a resolver. A falta de creches é um deles. Em São Paulo, famílias mais ricas entram na Justiça para garantir vaga em creche. Precisamos mudar esse quadro”, disse a titular do MDS.
Os limites do governo
Mauri Cruz, da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais, concordou com Tereza Campello que as políticas públicas implementadas na última década estão promovendo uma alteração sistêmica na sociedade brasileira. Por outro lado, ele assinalou que o governo tem limites neste processo de transformação e que o seu grande aliado para superar esses limites é o poder popular, a força e a organização do povo. “O processo de participação popular no governo pode ser mais ousado”, defendeu. Outro agente que pode ajudar o governo a enfrentar tais limites, defendeu ainda Mauri Cruz, é um partido político capaz de fazer essa ponte entre o governo e os movimentos sociais. “Está faltando partido”, resumiu.
A situação dos moradores de rua
Samuel Rodrigues, do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis e do Movimento Nacional de População de Rua, reconheceu o Bolsa Família como um passo importante, mas assinalou que as pessoas, após conquistarem um direito, querem mais, querem trabalho, voltar para sua terra, querem outros direitos. “A população está percebendo que coisas como o Bolsa Família são direitos e não esmolas”, disse.
Samuel defendeu o aperfeiçoamento dos procedimentos de busca ativa e de diálogo com os moradores de rua e criticou aqueles governos que adotam políticas conflitantes, implementando, por um lado, políticas de assistência social e à noite políticas autoritárias de remoções desses moradores.
Ele também fez uma profissão de fé emocionada no trabalho da Assistência Social. “Eu sou usuário da Assistência Social desde que nasci. A Assistência Social mudou a minha vida. Tive momentos difíceis em que deu vontade de desistir e tinha um assistente social ao meu lado me dando apoio e dizendo que eu era capaz de seguir em frente. Sou apaixonado por essa profissão.
Na mesma linha de Mauri Cruz, Samuel Rodrigues também defendeu a ampliação dos espaços de participação no governo. “A sociedade tem mais para dizer e para participar. O governo pode ousar mais nesta área”.
Bolsa Família e o outro mundo possível
Último a falar no debate, o sociólogo Emir Sader defendeu os avanços obtidos por políticas como o Bolsa Família como exemplos do “outro mundo possível” que o Fórum Social Mundial se propõe a construir. Para Emir Sader, houve um desencontro entre o Fórum e o outro mundo possível.
“O outro mundo possível aparece no vídeo que vimos aqui, está presente em políticas concretas no Brasil, na Bolívia, no Equador, na Venezuela. O Fórum errou quando, lá atrás, excluiu o Estado, os partidos e os governos de suas atividades. A ideia de uma sociedade civil global é uma ficção e a propalada autonomia dos movimentos sociais é autonomia em relação ao que mesmo? À política? Isso não funciona. Eu esperava um balanço mais crítico dos zapatistas que hoje estão isolados no Sul do México. Outro exemplo é do movimento do piqueteros na Argentina, que surgiu como uma grande novidade, abriu mão de fazer política e hoje simplesmente acabou”, disse o sociólogo, sugerindo que o Fórum Social Mundial caminha na mesma direção.
Para Sader, o caminho que as forças que integram o Forum deveriam seguir é aquele adotado pelos movimentos sociais na Bolívia e no Equador que organizaram partidos e foram disputar o poder. “A Bolívia acabou com o analfabetismo. Aí está o outro mundo possível. Sem Estado, não tem política social, não tem integração regional, não tem nada. Quando ocorreu o Fórum em Belém, nós tivemos que organizar um evento paralelo para reunir os presidentes Lula, Evo Morales, Hugo Chávez e Rafael Correa. Um absurdo. O papel do Fórum Social Mundial deveria ser o de socializar experiências reais do outro mundo possível”.
Falando sobre a conjuntura brasileira, Emir Sader defendeu que há dois diagnósticos em luta no Brasil. O primeiro deles, defendido diariamente pela mídia, é o que defende o equilíbrio das contas públicas acima de tudo. Para os defensores desse diagnóstico, a grande saga do Brasil é a luta contra a inflação. O segundo diagnóstico é o que defende a prioridade para o social. Para o sociólogo, a maior prova de que o governo Dilma segue esse segundo diagnóstico é que apesar da economia estar estagnada, com um crescimento de 1,5%, as políticas sociais seguem avançando. “O Brasil está disputando capital hoje não com outros países, mas sim com o capital financeiro internacional, que está com a boca torta de tanto ganhar dinheiro com juros altos”.
Emir Sader defendeu a reeleição do projeto representando pela presidenta Dilma Rousseff e disse que um dos principais desafios políticos das organizações populares e movimentos sociais é eleger representantes de esquerda. “Onde está a bancada dos trabalhadores rurais no Congresso? Só tem dois representantes hoje. Onde está a bancada dos educadores? Se não transformarmos o Congresso os limites do governo prosseguirão. A nossa luta é pela democratização do Estado, o que exige, entre outras coisas, que consigamos mudar o perfil do atual Congresso”, concluiu.
Carta Maior
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