segunda-feira, 27 de maio de 2013

Vida, o reality show



Isleide Fontenelle.*

O que você faria se soubesse o que fazer? É mais ou menos com essas palavras que se compõe parte da música tema de um dos reality shows mais famosos do Brasil. O que você faria? também é o título, em português, do filme espanhol El método, que se desenrola a partir de um processo seletivo para o cargo de executivo de uma grande empresa, no qual os candidatos não conhecem as regras e precisam mostrar o que, de fato, são capazes de fazer para conseguir a vaga. Até onde você chegaria se não soubesse o que fazer? Porque, nesses dois exemplos, o que está em questão é, justamente, a capacidade de vencer uma competição na qual as regras mudam ao sabor do vento, ou melhor, da necessidade de se acirrar a competição a fim de se saber o quanto cada um suporta.

Um dos motes centrais do livro Rituais de sofrimento é comparar o formato dos reality shows com o dos modelos de gestão do capitalismo flexível. E, ao longo do livro, a autora não poupa exemplos que tornam, de fato, essa comparação possível. Em alguns casos, inclusive, os formatos se sobrepõem, como no reality show O Aprendiz, conduzido por um empresário, e que tem como enredo a luta dos participantes por uma vaga como executivo em uma grande corporação. Para isso, eles se submetem aos mais diferentes tipos de provas, rituais de sofrimento defendidos como necessários para que provem serem dignos do cargo.

Luta é, de fato, o termo mais adequado para se referir a essa lógica, não o jogo, como os proponentes desse espetáculo defendem. Nesse caso, a metáfora do jogo é falsa, pois o princípio da empresa que rege os reality shows, assim como o mundo do trabalho contemporâneo, inverte a lógica do jogo, no qual as regras são levadas muito a sério. No princípio da empresa, não há regras, mas há lei: uma lei que institui a proibição da recusa ao sofrimento gratuito, para que o show não pare, ou, nas palavras da autora, “para pôr em movimento o mundo para que não se mova”.

A lei da eliminação ronda constantemente quem está em um reality show, mas também todos aqueles que estão na luta real do trabalho, daí porque “eliminação”, no espetáculo televisivo, corresponde a “exclusão” na vida real, pois, mesmo àqueles mais inseridos e mais adaptados ao mundo do trabalho, resta o custo psíquico de saber que tudo pode escapar a qualquer momento. Eliminação, afirma a autora, tornou-se um ritual ao qual o trabalho se vê constantemente submetido.

É nesse sentido que o livro mostra como os reality shows são processos seletivos televisionados, marcados por uma seleção negativa, ou seja, as pessoas vão sendo eliminadas não porque não são boas o suficiente, mas porque há uma cota de eliminação que precisa ser respeitada. A eliminação é, portanto, o meio e o fim. A obra vai mais longe e mostra como a seleção negativa era o princípio que orientava as seleções em Auschwitz, como revelado por Primo Levi, na obra publicada em 1947, É isto um homem?:

“O essencial para a administração não é que sejam eliminados justamente os mais inúteis e sim que surjam logo vagas numa porcentagem prefixada.”

A mórbida semelhança entre os processos revela outro aspecto perturbador: no caso da seleção negativa, nem mesmo a lógica darwinista parece contar, já que, mesmo que estivessem todos muito bem adaptados, alguém teria que sair. Tudo se passa para que, no final, fiquem apenas o sentimento do mero acaso e o agradecimento à Providência pelo saldo positivo na roleta-russa da vida. Claro que, do lado da ideologia que sustenta tal modelo, as explicações não cessam logo após os processos intermitentes de exclusão: saíram os que não souberam jogar, os que não aguentaram o tranco, o que não tiveram a capacidade de superação; restaram os que souberam ser flexíveis, resilientes, fortes. Mesmo que, na rodada seguinte, um desses vire o fraco da vez. Não é por acaso que resiliência passou a ser o mantra da administração contemporânea.

Que estranha forma de vida resulta desse modo de organização social, guiado pela lógica da eliminação? Que tipos de subjetividades se forjam com base nessa lógica? É aqui, e somente a partir daqui, que seria possível se pensarem os reality shows como reflexos de uma sociedade voyeurista, narcisista, guiada pelo entretenimento, entre outras adjetivações. Mas enveredar por essa via seria muito pouco, diante do quadro complexo que a obra oferece. Tudo isso entra no pacote, mas a essência desse pacote é de outra natureza: em uma forma social em que o estado de alerta precisa ser permanente, só mesmo se desenvolvendo uma “capacidade de se libertar dos constrangimentos psíquicos gerados pela dor e pela compaixão”, o que seria, em outras palavras, a capacidade do distanciamento cínico que produz a indiferença para com o sofrimento próprio e alheio.

Trata-se de um profundo diagnóstico de época, que está além da nossa capacidade de análise, ou melhor, das teorias de que dispomos para tentar explicar esse contexto. Nesse sentido, embora mostre, de maneira acurada, “o que” está acontecendo e o “como”, o livro deixa em aberto o “por quê”. As teorias das quais a autora lança mão para tentar explicar teoricamente esse estado do mundo já não parecem ser suficientes para tanto ou, de outro modo, não foram inteiramente depuradas. Pois se, de um lado, a análise marxiana – central na obra em questão – ainda é fundamental para o entendimento do funcionamento do capitalismo contemporâneo, em especial no que diz respeito ao fetichismo da mercadoria, não há como entender esse novo contexto apenas da perspectiva da “centralidade do trabalho”, tal qual desenvolvida por Marx.

Nesse sentido, o “paradigma do gozo” que a autora menciona, mas descarta rapidamente, bem poderia ser um aliado de força para a compreensão dessa nova forma de operação ideológica, que apela para um comprometimento absoluto do sujeito em sua ação, embora com o devido distanciamento cínico. Pois a hipótese do gozo, em absoluto, diz respeito ao direito ao prazer. Pelo contrário, estamos na zona nebulosa de um apelo a algo que está além do prazer. Daí porque, quando a autora afirma que o imperativo mestre da lei da eliminação é o da sobrevivência em meio à concorrência, é bem no campo do gozo que estamos. E também do novo modelo de capitalismo.

Mas tais digressões só são possíveis com base em uma narrativa refinada. Trata-se de um livro muito bem escrito, que, como bem disse o sociólogo Gabriel Cohn, responsável pela orelha do livro, é digno de um Kafka. Não por acaso, é uma escrita que deixa transparecer certo sentido de urgência, como se a autora precisasse escrever na mesma aceleração da velocidade-tempo que revela e critica, como se, de caso pensado ou não, quisesse colocar-se como parte desse processo narrado. Afinal, a autora deixa entrever e, por vezes, explicita o quanto o mundo acadêmico – cada vez mais conduzido sob a forma de prazos e pontos – também entra nesse cálculo do gozo de uma lei que exige os tais rituais de sofrimento, revelando como nada escapa a essa lógica que engolfa todas as esferas da vida, colonizando até os espaços aparentemente menos aderentes.

E se a autora nos dá exemplos, baseada nos reality shows, de como é possível uma recusa, mesmo que passiva, à lei que põe em movimento esses rituais, no show da vida, é o seu livro, originalmente sua tese de doutorado, que se apresenta como um exemplo perfeito de como se burla a lei, pois ele também apresenta a língua do gesto deslocado daqueles que não se distanciam de sua ação.

Rituais de sofrimento, de Silvia Viana já está disponível em versão eletrônica (ebook), por metade do preço do impresso nas livrarias Travessa e Gato Sabido, entre outras. Leia aqui a orelha do livro, assinada por Gabriel Cohn. Confira, abaixo, o Booktrailer do livro:

Boitempo


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