Esporte se tornou bandeira de luta do anticolonialista |
Esporte era considerado pelos colonizadores nobre demais para ser praticado por “raças inferiores”, esses povos começaram a virar o jogo
Renato Pompeu
Nesta Copa das Confederações, pela primeira vez realizada no Brasil, agora em junho, não está representado nenhum país árabe e apenas um de predominância muçulmana, a Nigéria. Uma pena, para essas nações e seus patrícios espalhados pelo Ocidente. Os povos árabes colonizados, na África e no Oriente Médio, souberam se afirmar como “futebolísticos”, primeiro jogando bola clandestinamente, depois abertamente. Isso apesar do processo de colonização por que passaram. Tanto os dominados pela Grã-Bretanha, como o Egito, quanto os subordinados à França, como a Argélia, eram considerados inaptos para o futebol.
O esporte era tido como nobre demais para ser praticado por não brancos e mestiços considerados “inferiores”, étnica e intelectualmente, e incapazes de aspirar a uma civilização maior. E, quando passaram a praticá-lo abertamente, acabaram afirmando a própria identidade nacional, religiosa anticolonialista, pan-árabe e mesmo pan-islamita, algumas vezes jogando até contra times das potências colonizadoras. O futebol tornou-se assim uma bandeira de luta do movimento anticolonialista.
Essa reflexão é tema central do livro Sport, Politics and Society in the Arab World (“Esporte, Política e Sociedade no Mundo Árabe”) de autoria do professor Mahfoud Amara, da Universidade de Loughborough, Reino Unido, recém-lançado pela Palgrave MacMillan. Conquistada a independência, o futebol se tornou uma poderosa ferramenta para coroar a política de desenvolvimento econômico e, particularmente, a política de industrialização e de fomento ao mercado interno, o que era efetivado sobretudo através do uso das figuras dos atletas e das transmissões dos jogos pelo rádio e pela televisão, para propagandear a difusão de novos hábitos de consumo, de novos produtos e de novos padrões de comportamento. O jogo, assim, tornava seus torcedores pessoas cada vez mais em dia com a civilização contemporânea.
O esporte era usado como fator de fomento do nacionalismo de cada novo Estado-Nação que surgia nas fronteiras bastante artificiais herdadas das potências colonialistas – lembrando que as noções de nação iraquiana, nação tunisina etc. eram uma grande novidade para os povos árabes, acostumados milenarmente a se considerar um povo só. Servia também como indutor de um sentimento de pan-arabismo, com as fracassadas tentativas de formar uma seleção representativa da República Árabe Unida, a efêmera RAU, que tentou unificar Egito e Síria. E mais: o futebol foi usado ainda para impulsionar o próprio pan-islamismo, pois as centenas de milhões de torcedores islâmicos, em todo o planeta, se uniam a cada quatro anos para torcer unanimemente para os poucos países muçulmanos que chegavam a disputar as fases finais da Copa do Mundo.
O pan-arabismo e o pan-islamismo foram suficientemente fortes para expulsar, futebolisticamente, Israel do Oriente Médio, pois até hoje a seleção do Estado judeu disputa não as eliminatórias da Copa na Ásia, onde se situa geograficamente, mas a da Europa, de onde são oriundos os judeus escapados do Holocausto que fundaram, na Palestina, sob mandato britânico, primeiro o seu Lar Nacional Judaico e desde 1948 o Estado de Israel.
Outra consequência importante é que o futebol foi e tem sido um poderoso fator de estímulo a uma consciência de pertencimento a uma nação palestina. Tal consciência, como todas as consciências étnicas, dentro da milenar tradição árabe e da secular tradição islâmica, tinha sido antes muito tênue. Os turcos, que são otomanos, e os egípcios, que são camitas arabizados, jamais sentiram estranheza por ser governados por albaneses indo-europeus, como o líder Kemal Ataturk e o rei Faruk, pois afinal todos se sentiam igualmente islâmicos.
Os palestinos, antigamente, usavam esse nome, pois se julgavam acima de tudo árabes e logo em seguida islâmicos; com a herança das artificiais fronteiras colonialistas, a revolta contra a partilha da Palestina e, depois, contra a ocupação israelense, mais a bandeira do futebol, é que levaram à plena consolidação de uma consciência nacional, identificada com os antigos filisteus. (“Palestina” é a pronúncia romana do nome semita “falastin”, que até hoje, em árabe, designa tanto os palestinos como os antigos filisteus, com a lembrança ominosa dos primeiros choques, milênios atrás, entre os judeus e os filisteus.)
A importância do futebol na resistência palestina pode ser ainda avaliada pelo fato de que as autoridades israelenses sistematicamente prendem alguns dos principais craques da Palestina e chegaram a mandar bombardear campos de futebol nos territórios ocupados. Além disso, na própria Israel a contratação por um dos principais clubes israelenses de um jogador tchetcheno muçulmano desencadeou protestos inflamados e tumultuados da parte de torcedores direitistas. Os campos de futebol, assim, no Oriente Médio e em outros lugares, são campos de batalha.
Nos países árabes recém-saídos da colonização que tentaram regimes militares laicos e estatizantes, no chamado “socialismo árabe”, como Argélia e Egito, o futebol em geral e a seleção nacional em particular passaram a simbolizar e a estimular o sonho do nacional-desenvolvimentismo. Com o fim do “socialismo argelino”, em 1988, a partir da explosão da rebelião fundamentalista islâmica, o futebol entrou na Argélia no ritmo “normal” mercantilizado imposto pelo neoliberalismo em todo o planeta.
No Egito e no Iraque, no entanto, se manteve o espírito laico e modernizador entre grande parte das torcidas, como mostram, em território egípcio, as constantes manifestações pró-democracia em plenos estádios e o recente massacre por motivos políticos no estádio de Port Sak. No Iraque é notório o sentimento de civilismo e de civismo pró maiores liberdades democráticas dos jogadores da seleção nacional. Assim está o futebol no reino das Arábias.
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