quarta-feira, 22 de maio de 2013

Vende-se ( futebol e negócios )





Antes, os uniformes dos times de futebol eram virgens de propaganda, aqueciam a paixão clubística com escudo e número. O resto, era imaginação e entrega. Hoje, os jogadores são totens móveis a serviço dos patrocinadores. A invasão comercial nos esportes é um compêndio didático do funcionamento do capital.


Jacques Gruman

Quando começou, não lembro. Os uniformes dos times de futebol eram virgens de propaganda, aqueciam a paixão clubística com escudo e número. O resto, era imaginação e entrega. Aos poucos, cada pedacinho de tecido começou a ser disputado por marcas de tudo: lojinhas de bairro, multinacionais, estatais. Surgiram os glúteos comerciais. Sacolejam os bumbuns carimbados e se vendem meias, tintas e caixas de leite. A prática se tornou tão generalizada que chegou a mudar até o nome do campeonato paulista deste ano (o nome oficial passou a ser Paulistão Chevrolet). Os jogadores são totens móveis a serviço dos patrocinadores. Nos anos 90, o Palmeiras firmou contrato com a Parmalat, que passou a gerenciar o departamento de futebol. Contratou a rodo, ganhou títulos e, com a valorização dos jogadores, revendeu-os com grandes lucros, desfez o time e encerrou a parceria. Os torcedores, sem saber, aplaudiam um exército de mercenários, que nada tinha a ver com as origens e tradições do ex-Palestra Itália. Venditio ad corpus.


A invasão comercial nos esportes é um compêndio didático do funcionamento do capital. Na história de João e Maria, a velha malvada aprisionava duas crianças, passava a engordá-las para depois comê-las. Na fábula, os pirralhos dão um jeito de escapar, mas na realidade ... É esse o processo: sedução, cativeiro, desvirtuamento. Com desculpas antecipadas pela citação recorrente, veja-se o onipresente Neymar. Craque midiático, acaba de ser apontado por uma revista americana especializada em esportes como o atleta de maior valor comercial do mundo, em todos os esportes. Tem a ver com o desempenho dentro de campo ? Ah, claro que não. Tirando uns lampejos vagalumes, virou bamba na autopromoção capilar e nas boas casas noturnas. O Santos, ora, o Santos é apenas um detalhe. Pouco antes da final do campeonato paulista, o pipoqueiro faltou ao último treino do time, preso por compromisso com um de seus gulosos patrocinadores. Sintomaticamente, a revista americana observa que o valor de mercado pode não equivaler a bons resultados esportivos.

Imagem é tudo. Enquanto Messi se preocupa em jogar bola – e, não à toa, firmou-se como o melhor do mundo -, o Zé Cabelinho administra as badalações e começa a ter sua capacidade questionada até por gente discretíssima, como o ex-técnico da seleção Mano Menezes, que percebe uma clara queda na produção em campo. Fora dele, vende estilo de vida, pérola em numerosas campanhas publicitárias. Estamos, enfim, frente ao homem-mercadoria, sonho de consumo de qualquer capitalista.

Esta ditadura do mercado, sucção mediocrizante, tem grande capilaridade. Alguém já disse que, se Shakespeare fizesse pesquisa de opinião antes de concluir Romeu e Julieta, o final seria outro. Provavelmente, os Capuletos e os Montecchios fariam um arranjo nupcial e o casalzinho apaixonado partiria para uma inesquecível lua de mel. Ganhariam os hormônios, perderia a dramaturgia. Durante a infame era do macartismo nos Estados Unidos, Hollywood produziu uma enxurrada de obras patuscas, refletindo a histeria anticomunista. Filmes como Casei com um comunista ajudavam a criar um clima de pânico, alavancando a carreira de caçadores de bruxas como Ronald Reagan e Richard Nixon. A arte a serviço do “mundo livre”, apelido da “liberdade para as forças de mercado”.

Hoje, Hollywood tem outro alvo. Está de olho gordo no mercado chinês, o que mais cresceu em 2012 (36%) e já é o segundo maior do mundo em faturamento. Um aspecto importante nesta operação é a absoluta indiferença à criação autoral. Enredos são modificados dependendo da vontade dos clientes, atores são convidados apenas para aumentar o apelo junto ao público local. Temas considerados “sensíveis” são evitados. O cinema como veículo de reflexão inexiste. O professor Richard Walter, da Universidade da Califórnia, comentou que “é ultrajante e deplorável. Não consigo imaginar artistas envolvidos nestes filmes tendo prazer em lidar com executivos a serviço de uma noção equivocada de marketing, pisoteando seus trabalhos”. Os critérios chineses nada tem de socialistas. As negociações envolvem não apenas bilheterias, mas lucros de empresas chinesas com as produções. A China será o enigma a ser decifrado neste século (ou nos próximos; os chineses são pacientes). Por um lado, tirou da miséria centenas de milhões de pessoas. Por outro, alimenta um desequilíbrio de renda típico das sociedades capitalistas. A neta de Mao tem uma das maiores fortunas do país. O que diria o grande revolucionário ?

A Mosca da cabeça branca, filme de terror dos anos 50, estrelado por Vincent Price, dava calafrios. Foi refilmado nos anos 80, com resultados igualmente assustadores. Um cientista testa um equipamento para transportar moléculas de seres vivos. O teletransporte permitiria, caso funcionasse, levar um organismo para qualquer lugar, sem usar meios físicos. A experiência termina mal. O cientista acaba assimilando o corpo de uma mosca, que se intromete no equipamento. Vai se transformando, aos poucos, num monstro alado, gosmento. O criador se confunde com a criatura, e ambos são destruídos. Será esse o final dos aprendizes de feiticeiro que confundem arte com faturamento, esporte com marketing, vida com lucro?

Carta Maior

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