Jornadas de trabalho de 24 horas ininterruptas, revistas íntimas na entrada de empresas, redução de salários e até a prisão de sindicalistas acusados de receber vantagens para aprovar medidas contrárias aos interesses dos trabalhadores.
Essas são algumas das consequências de acordos já celebrados entre sindicatos e empregadores no Brasil. Problemas que podem se multiplicar se for aprovada uma das principais mudanças defendidas pelo governo Michel Temer na reforma trabalhista.
O “negociado sobre o legislado”, como é conhecida a medida, consiste em deixar as negociações coletivas prevalecerem sobre o que está escrito na lei trabalhista. A medida já era defendida no documento “Uma ponte para o futuro” – espécie de programa de governo lançado pelo PMDB em outubro do ano passado, quando o impeachment de Dilma Rousseff já era uma possibilidade concreta. E pode virar lei graças a dois projetos que tramitam na Câmara dos Deputados: o projeto de Lei (PL) 4193/12, do deputado Irajá Abreu (PSD–TO), e o PL 4962/2016, de Júlio Lopes (PP–RJ).
Mais trabalho e menos salário
O desrespeito à jornada máxima de oito horas diárias e 44 horas semanais é uma das infrações mais comuns em acordos coletivos feitos nos últimos anos Atualmente, muitos são anulados pela Justiça justamente por contrariarem a legislação trabalhista. Mas o Judiciário tende a ficar de mão atadas com a prevalecia do negociado sobre o legislado.
Sindicatos e empregadores já podem negociar a compensação de horas, desde que isso não aumente a carga horária total, segundo a Constituição. Ou seja, os acertos podem prever o aumento da jornada em determinados dias, mediante a diminuição em outros. Mas a negociação entre empresas e sindicatos nem sempre respeita esse que é um dos direitos mais básicos da lei trabalhista.
Em Itatiba, interior de São Paulo, a prefeitura municipal “inovou” ao estabelecer com o sindicado dos servidores municipais um acordo coletivo prevendo jornadas de 24 horas seguidas para os bombeiros da cidade, acompanhadas por 48 horas de descanso. Assim, na melhor das hipóteses, trabalha-se 48 horas por semana. No pior cenário, a jornada chega a durar 72 horas por semana – muito além do limite de 44 horas semanais. O caso chegou ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), que, em 2014, confirmou que o acordo era ilegal.
Em 2013, o tribunal também se posicionou contra um acordo que permitia a redução do intervalo entre um dia e outro de trabalho para os funcionários de uma indústria no Porto de Vila do Conde, Pará. Acordo feito entre a companhia e o sindicato dos portuários, o descanso era de apenas seis horas. Arranjo que oferecia risco a saúde e segurança dos funcionários, segundo o Ministério Público do Trabalho, que pediu a anulação do acordo. Segundo a lei, o intervalo entre jornadas deve ser, no mínimo, de 11 horas.
A diminuição de salários é outra disputa comum nos tribunais. A prática é inconstitucional, salvo se negociada em acordos sindicais que, segundo decisões anteriores da Justiça, precisam oferecer contrapartidas para justificar a redução. Foi justamente a falta delas que levou o TST a anular um acordo do gênero em outubro de 2016. Ele previa uma diminuição de 12% no salário dos empregados de uma indústria instalada no Rio de Janeiro.
No Ceará, uma convenção coletiva assinada pelo Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Laticínios chegou ao ponto de endossar a realização de revistas íntimas nos funcionários. “A pretexto de resguardar o empregado contra revista íntima efetuada por pessoa do sexo oposto, a convenção terminou por autorizar as empresas a realizarem tal revista (por empregado do mesmo sexo), procedimento proibido por lei”, alertou a procuradora regional do Trabalho Evanna Soares na ação que conseguiu a anulação da cláusula. Revistas íntimas são aquelas em que os trabalhadores têm o próprio corpo vistoriado, em alguns casos até mesmo sendo obrigados a tirar suas roupas. A prática já foi considerada ilegal em diversos julgamentos do TST.
Corrupção nos acordos sindicais
Em casos mais graves, paira sob acordos considerados prejudiciais aos trabalhadores a sombra de acusações criminais. Um exemplo ocorreu em 2008, quando a Polícia Civil de São Paulo prendeu em flagrante dois dirigentes sindicais e uma advogada ligados ao Sindicato dos Rodoviários de Campinas. Monitorados por um mês através de gravações sigilosas, eles foram acusados de solicitar propina de R$ 100 mil do plano de saúde aprovado na convenção coletiva da categoria. “Os investigados deixaram claro que, se fosse paga a quantia, eles militariam em prol dos interesses da empresa, até aumentando os valores do convênio médico”, afirmou à época o promotor de Justiça Luiz Alberto Bevilacqua.
De acordo com o Ministério Público de São Paulo, a ação judicial relacionada ao caso segue tramitando na 1ª instância, em segredo de Justiça. Procurado, o Sindicato dos Rodoviários de Campinas não se manifestou.
Há até mesmo acordos coletivos que são cancelados por terem sido aprovados sem o aval dos trabalhadores da categoria. É o caso de uma convenção firmada entre o sindicato dos vigilantes (Sindivigilante) e as empresas de segurança privada do Rio Grande do Norte. “O sindicato não realizou a convocação dos trabalhadores para a discussão. O que se viu foi a criação de uma convenção coletiva sem a participação deles, sem a realização de uma única assembleia ou reunião”, afirmou em 2012 a procuradora Regional do Trabalho Ileana Neiva. A convenção foi anulada naquele ano pelo Tribunal Regional do Trabalho no estado.
Em 2009, outro caso semelhante envolveu os funcionários das empresas de transporte coletivo no Ceará. Segundo o Ministério Público do Trabalho, embora existissem cerca de 15 mil trabalhadores no setor, somente 43 participaram da assembleia que aprovou a convenção coletiva – sendo que a maioria eram membros da diretoria da entidade. Um acórdão do Tribunal Superior do Trabalho, no entanto, reverteu a decisão de instâncias inferiores que anulavam o documento. O Tribunal entendeu que ele representava a vontade da categoria, “ainda que se pudesse questionar a observância rigorosa dos requisitos e formalidades para aprovação da convenção.”
“Existe um grande número de ilegalidades que são cometidas nesses acordos”, avalia o presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Carlos Fernando da Silva Filho. Para ele, a proposta do governo que prevê nova lei privilegiando o negociado sobre o legislado será uma forma de legalizar essas situações, ignorando que a precariedade de representações sindicais “é uma realidade para muitas e muitas categorias do país”.
Reforma via judiciário
Enquanto a mudança na lei não vem, decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) indicam que abrir mais espaço para as negociações coletivas é uma tendência na mais alta corte do país. Em setembro, numa decisão do ministro Teori Zavascki, o STF reverteu acórdão do TST que condenava uma empresa por deixar de pagar horas in itnere – o tempo gasto pelo empregado em transporte fornecido pelo empregador até local de trabalho de difícil acesso. A postura da empresa baseou-se num acordo firmado com o sindicato. No ano passado, o ministro Roberto Barroso já tinha validado um acordo coletivo em outro caso semelhante, no qual um banco havia feito acordo prevendo quitar dívidas com trabalhadores que não entrassem na Justiça após o pagamento.
Para Valdete Severo, juíza do Trabalho na 4ª Região, decisões como estas vão impactar a forma como casos semelhantes serão julgados a partir de agora pela Justiça do Trabalho. Ela ressalta ainda que o STF tem colocado em pauta para julgamento, precisamente agora, diversos processos que abordam temas relacionados à reforma trabalhista encampada pelo governo. “Me parece difícil sustentar que isso não seja uma vontade de promover uma reforma trabalhista por meio do STF”, avalia a magistrada.
Altamiro Borges
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