sábado, 14 de janeiro de 2017

Brasil: prisões ou campos de concentração?

Pastoral Carcerária: “se colocassem cães e gatos nos presídios, tratados como as pessoas o são, teríamos milhões nas ruas”

O padre Valdir Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária no Brasil, é uma das pessoas que mais conhecem o sistema prisional do país. São anos de escuta aos presos, presas, seus familiares, funcionários e autoridades. Ele não tem dúvida: “O sistema prisional brasileiro está estruturado para torturar e matar –para mais nada.” E completa: “se colocassem cães e gatos nos presídios brasileiros, tratados como as pessoas são tratadas atualmente, teríamos milhões nas ruas e mobilização mundial contra o Brasil.” Ele concedeu entrevista ao blog Caminho pra Casa na tarde desta segunda (10) pouco antes de embarcar para a região Norte.


Desde 2012 a autoridades carcerárias e os governos estaduais e federal são informados pela Pastoral sobre o barril de pólvora que são as prisões, em todo o país, com relatórios específicos sobre a região Norte, sem qualquer ação. “Há massacres em todo o país, e eles acontecem em grandes números, como vimos agora, ou em conta-gotas.“ Para ele, a declaração do ex-secretário nacional da Juventude (“Tinha que fazer uma chacina por semana”) foi a mais “autêntica” e “sincera”: “É o que o governo deseja, de fato. Ele caiu, mas foi o porta-voz do governo”.


Padre Valdir contesta a estatística oficial que posiciona o Brasil com a 4ª maior população carcerária; diz que ela está defasada e que o país já passou a Rússia. Dos quatro países com maior população aprisionada –EUA e China, além do Brasil e Rússia- apenas em um o número de presos cresce, exatamente o Brasil; nos demais, há diminuição ano a ano.


São mais de 6.500 agentes da Pastoral em todo o Brasil, atuando diuturnamente nos presídios e delegacias e testemunhando situações desde a violência física até a ausência de sabonete, papel higiênico –e absorvente íntimo para as mulheres. O que faz a Pastoral? “Nossa missão é em primeiro lugar evangelizar: uma ação na qual o anúncio de Cristo só existe se estamos implicados na vida digna das pessoas encarceradas. (…) Não podemos esquecer que nosso Mestre foi também um preso, e um preso torturado.“ Para ele, o Papa Francisco “é um profeta” também no tema carcerário.


Caminho pra Casa – Como a Pastoral Carcerária avalia os massacres do início de 2017, com 64 mortos em Manaus (AM), entre 1 e 8 de janeiro e mais 33 mortes em Boa Vista (RR) , no dia 6?


Padre Valdir Silveira – Os massacres não foram uma surpresa. Desde 2012 a Pastoral Carcerária faz relatórios, encaminhados às autoridades, sobre a situação limite dos presídios no país, com destaque para os do Norte, tanto no Amazonas [aqui] como em Roraima [aqui]. O governo sabia do que podia acontecer. Há rebeliões em todo o país. Vimos o massacre de Pedrinhas (PI), que aconteceu em três ondas sucessivas, entre 2010 e 2013, com 97 mortes no total.


Há massacres em todo o país, e eles acontecem em grandes números, como vimos agora, ou em conta-gotas. Mesmo nestes casos, do massacre continuado em aparente pequena escala, que sequer é notícia, os números quando consolidados são terríveis. E olhe que os levantamentos são todos precários, sempre subestimados. Aos presos pobres não é dado o direito nem mesmo de figurar em estatísticas.


Veja estes números, são chocantes: só no primeiro semestre de 2014, o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen) informou 565 mortes no sistema prisional, sendo mais ou menos metade delas classificada como intencionais, violentas –portanto, algo como 280. Isso apenas no primeiro semestre de 2014! E quer saber mais? Sem que os estados de São Paulo e Rio apresentassem seus dados! O governo de São Paulo, que tem um terço da população carcerária nacional, ignorou o levantamento federal! Em 2016 o governo Alckmin informou mais de 400 mortos no sistema penitenciário no Estado –e garantiu que apenas 17 teriam sido mortes violentas. Dá pra acreditar?


O sistema prisional brasileiro está estruturado para torturar e matar –para mais nada.


A Pastoral Carcerária ao lado de uma série de outras organizações tem denunciado há anos a política de encarceramento em massa. O Brasil é o país que mais encarcera no mundo atualmente. Essa população toda é torturada nos presídios?


Bem, em primeiro lugar, quanto aos números. Divulga-se que o Brasil teria a 4ª maior população carcerária do mundo atrás de Estados Unidos, com mais de dois milhões de presos, China, com mais de 1,6 milhão, e Rússia, com 644 mil. Mas essas estatísticas referem-se a 2014. Na época, o Brasil tinha 622 mil presos, segundo o próprio Ministério da Justiça [aqui], sem contar as pessoas presas em delegacias. Mas hoje isso não é mais verdade, pois quantidade de presos está caindo ano a ano nos EUA, China e Rússia, enquanto cresce a taxas superiores a 7% no Brasil –o que deve se acelerar ainda mais, se as políticas de encarceramento continuarem se aprofundando. O fato é que o Brasil já passou a Rússia: somos a terceira população carcerária do planeta!


Como essas pessoas são tratadas? Aproximar-se da realidade desta imensa população é sempre uma tristeza e causa de indignação. Lançamos em 2016 um estudo intitulado “Tortura em Tempos de Encarceramento em Massa”, com apoio Oak Foundation e do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Para que você tenha ideia, uma coisa elementar, básica, do cotidiano das pessoas: são milhares e milhares de presos e presas que simplesmente não recebem o kit higiene. As pessoas não recebem sabonete nem papel higiênico! Dá para imaginar o que significa para uma mulher não receber absorvente íntimo? Em São Paulo, Estado em tese mais desenvolvido do país, de 11 unidades onde abordamos o tema, apenas em quatro os presos informaram que o material higiênico era reposto mensalmente. Você consegue se imaginar vivendo assim?


É possível que as pessoas fiquem amontoadas em lugares sem luz e ventilação, com fezes e urina, esgoto correndo ao lado ou às vezes dentro das celas, num ambiente de violência constante e sem poderem denunciar, com medo de represálias?


O antigo coordenador nacional da Pastoral Carcerária, o saudoso padre Francisco Reardon (o padre Chico), que morreu em 1999, costumava chamar as penitenciárias brasileiras e os distritos policiais de “corações do inferno”. É o que são.


Nós todos, agentes da Pastoral Carcerária, que em alguns casos vamos diariamente aos presídios e cadeias do Brasil, lembramos usualmente da frase do padre Chico. Ele se perguntava e nos questionava: “É possível morrer-se em Auschwitz, depois de Auschwitz?” A resposta é sempre a mesma: sim! Os nossos presídios são extensões do que aconteceu nos campos de concentração. As torturas e os maus tratos são as práticas corriqueiras das casas de punição e castigos, que chamamos de presídios. Enquanto houver presídios e cadeias feitos campos de torturas e de maus tratos, Auschwitz continuará sendo uma triste realidade –no Brasil inteiro.


Houve três frases emblemáticas da postura do governo Temer e um do governo do Amazonas em relação aos massacres: “Um acidente” (Temer); “Não tinha nenhum santo” (governador do Amazonas); “Está tudo sob controle” (ministro da Justiça); “Tinha que fazer uma chacina por semana” (secretário nacional da Juventude da Presidência, que se demitiu a seguir). O que o senhor pode dizer sobre essa postura?


A fala do secretário da Juventude foi a mais autêntica. E sincera. É o que o governo deseja, de fato. Ele caiu, mas foi o porta-voz do governo.


E o apoio de largas fatias da sociedade a este discurso e essa política?


Se a população soubesse o inferno que é a vida num presídio… Vez por outra vazam informações sobre supostos “privilégios”, como aconteceu até nesse episódio de Manaus. Mas são desinformações. O que a gente vive no dia a dia da Pastoral Carcerária é encontrar com parentes e amigos de pessoas que por um motivo ou outro foram presas e que tinham o discurso do “prende-arrebenta-mata”. Não há uma sequer que mantenha esse discurso. Todo mundo fica chocado e muda de posição, imediatamente.


Eu lhe garanto: se colocassem cães e gatos nos presídios brasileiros, tratados como as pessoas são tratadas atualmente, teríamos milhões nas ruas e mobilização mundial contra o Brasil.


Mas é preciso por outro lado encarar um fato: quem apoia o massacre é herdeiro ou continuador daqueles que apoiaram no passado o extermínio dos indígenas e a escravidão dos negros.


Qual a importância da posição do Papa, que condenou o massacre e pediu condições dignas de vida para presos e presas? [aqui]


O Papa Francisco é um grande profeta. Inclusive neste tema carcerário. Ele recorrentemente coloca-se e a todos nós uma pergunta crucial, quando visita presos: “Porque eles estão presos e não eu, que sou um pecador?” [aqui] É uma questão para todos nós.


E a CNBB?


A nota da CNBB em relação aos massacres foi firme, contundente [aqui] e a ação dos bispos contra a privatização dos presídios e pelo desencarceramento no Congresso Nacional tem sido fundamental.


Quantas pessoas atuam na Pastoral e como vocês avaliam a relação dos cristãos, especialmente os católicos, com a questão carcerária?


Somos 6.500 pessoas organizadas pela Pastoral Carcerária em todo o país. Temos ação em quase todo o Brasil, mas ela ainda é muito frágil em alguns lugares, como no Tocantins.


Nossa missão é em primeiro lugar evangelizar: uma ação na qual o anúncio de Cristo só existe se estamos implicados na vida digna das pessoas encarceradas. Estamos sempre inspirados pelo samaritano: se não cuidamos das feridas, não anunciamos Cristo.


Por isso, entristece-nos muito ver pessoas que se dizem cristãs e apoiam os massacres ou dão de ombros com a situação dos encarcerados e encarceradas. Não podemos esquecer que nosso Mestre foi também um preso, e um preso torturado.


É hora de gritar alto e denunciar tudo aquilo que agride a vida desta população, que somada a seus familiares, são milhões de pessoas em enorme sofrimento. Seus erros eventuais não justificam tratamento que nega sua humanidade, assim como daqueles que os amam. Devemos denunciar o sistema carcerário, o Estado que prende os pobres para que eles sejam moídos, torturados e mortos.


[por Mauro Lopes]

Outras Palavras


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