quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O desenvolvimento econômico soviético versus o Ocidental, por Noam Chomsky

Noam Chomsky é reconhecidamente um anarquista, crítico tanto do capitalismo (e principalmente do imperialismo dos EUA) como dos modelos socialistas implementados a partir do século XX em diversas partes do mundo. No entanto, o intelectual estadunidense reconhece os grandes benefícios que o socialismo real levou aos povos do Leste Europeu e principalmente da União Soviética.

Em lembrança das conquistas da URSS, que desapareceu em 25 de dezembro de 1991, há exatos 25 anos, reproduzimos a resposta a uma pergunta sobre o suposto fracasso da experiência socialista soviética, em uma palestra realizada nos anos 90 nos EUA.

[…] O que você acha do sistema econômico soviético, ele funcionou ou fracassou? 

Bem, em uma cultura com traços profundamente totalitários, como a nossa, sempre se faz uma pergunta totalmente idiota a esse respeito: pergunta-se, como é a Rússia economicamente comparada com a Europa Ocidental ou com os Estados Unidos? E a resposta é que ela saiu-se muito mal. Mas uma criança de oito anos entenderia qual é o problema com essa pergunta: essas economias não têm nada semelhante há seiscentos anos – seria preciso retornar ao período pré-colombiano, pois só depois disso é que a Europa Oriental e a Ocidental tiveram alguma coisa mais ou menos semelhante economicamente. A Europa Oriental começou a virar uma espécie de área de serviço tipo Terceiro Mundo para a Europa Ocidental, antes mesmo do tempo de Colombo, fornecendo recursos e matérias-primas para as emergentes indústrias têxtil e metalúrgica do Ocidente. E a Rússia continuou um país de Terceiro Mundo muito pobre, durante séculos [4]. Isto é, havia uns poucos bolsões de desenvolvimento aqui e ali, e também um opulento setor de elites, escritores e assim por diante – mas isso é como em qualquer país do Terceiro Mundo: a literatura latino-americana é uma das mais férteis do mundo, por exemplo, mesmo com seus povos estando entre os mais pobres do mundo. E, se vocês olharem só o desenvolvimento econômico da União Soviética no século XX, ele é extremamente revelador. Por exemplo, a proporção entre os salários da Europa Oriental e os da Ocidental declinou até por volta de 1913, e então começou a subir muito rápido até em torno de 1950, quando mais ou menos se equilibraram. Então, em meados dos anos 1960, conforme a economia soviética foi começando a se estagnar, essa proporção iniciou um pequeno declínio, e então caiu um pouco mais até o final dos anos 1980. Depois de 1989, quando o Império Soviético finalmente foi para o espaço, ela entrou em queda livre – agora está de novo aproximadamente o que era em 1913 [5]. Tudo bem, isso lhes diz algo sobre se o modelo econômico soviético teve sucesso ou não.



Ora, suponham que fizéssemos uma pergunta racional, em vez de perguntar uma insanidade do tipo “como saiu-se a União Soviética, em comparação com a Europa Ocidental?”. Se quisermos avaliar modos alternativos de desenvolvimento econômico – gostem deles ou não –, o que devíamos perguntar é como se saíram sociedades que eram como a União Soviética em 1910, comparadas com ela em 1990? Bem, a História não fornece analogias precisas, mas existem boas escolhas. Então poderíamos comparar a Rússia e o Brasil, digamos, ou Bulgária e Guatemala – essas são comparações razoáveis. O Brasil, por exemplo, devia ser um país super-rico: tem recursos naturais inacreditáveis, não tem inimigos, não foi praticamente destruído por invasões só neste século [i.e., a União Soviética sofreu perdas imensas nas duas Guerras Mundiais e na intervenção ocidental de 1918 em sua Guerra Civil]. De fato, o Brasil está muito mais bem equipado para se desenvolver do que a União Soviética jamais esteve. Tudo bem, comparem só, o Brasil e a Rússia – essa é uma comparação razoável.



Bem, há um bom motivo pelo qual ninguém o faz, e só fazemos comparações idiotas – porque, se compararmos o Brasil e a Rússia ou a Guatemala e a Hungria, chegaríamos a respostas indesejáveis. O Brasil, por exemplo, para talvez 5% ou 10% de sua população, é mesmo como a Europa Ocidental – e para em torno de 80% de sua população é meio como a África Central. De fato, para provavelmente 80% da população brasileira, a Rússia soviética teria parecido um céu. Se um camponês guatemalteco de repente fosse parar na Bulgária, ele provavelmente acharia que tinha ido para o paraíso ou algo do gênero. Então, não façamos essas comparações, só fazemos comparações malucas, que qualquer um que pensasse por um segundo veria que são absurdas. E todo mundo aqui as faz, mesmo: todos os acadêmicos as fazem, os comentaristas do desenvolvimento as fazem, os comentaristas dos jornais as fazem. Mas pensem só por um segundo: se quiserem saber quanto sucesso teve o sistema econômico soviético, comparem a Rússia de 1990 com algum lugar que fosse como ela em 1910. Precisa ser brilhante para perceber?



De fato, o Banco Mundial forneceu sua própria análise do sucesso do modelo de desenvolvimento soviético. O Banco Mundial não é uma organização radical, como vocês com certeza têm consciência, mas em 1990 ele descreveu a Rússia e a China como “sociedades de relativo sucesso, que se desenvolveram libertando-se do mercado internacional”, embora tenham finalmente entrado em apuros e sendo obrigadas a voltar ao rebanho [6]. Mas “de relativo sucesso” – e, se comparadas com os países a que se assemelhavam antes de suas revoluções, de muito sucesso.



Na verdade, era exatamente isso que os EUA temiam na Guerra Fria, para início de conversa, caso queiram saber a verdade – que o desenvolvimento econômico soviético simplesmente parecesse bom demais para os países pobres do Terceiro Mundo, sendo assim um modelo que quisessem seguir. […] Então, se vocês lerem os arquivos do governo, agora liberados – dos quais há hoje muitos disponíveis –, verão que a principal preocupação dos maiores estrategistas ocidentais, já em plenos anos 1960, era que o exemplo do desenvolvimento soviético estava ameaçando desmontar todo o sistema mundial americano, porque a Rússia estava de fato indo tão bem. Por exemplo, sujeitos como John Foster Dulles [secretário de Estado norte-americano] e Harold Macmillan [primeiro-ministro britânico] estavam se borrando de medo com o sucesso desenvolvimentista da Rússia – e era um sucesso [8]. Isto é, notem que hoje em dia ninguém se refere à Rússia como um país “do Terceiro Mundo”, é chamada de país “de desenvolvimento deficiente” ou algo desse gênero – em outras palavras, ela realmente se desenvolveu, embora, em última análise, não tenha dado certo, e agora podemos ir em frente e começar a reintegrá-la de volta ao Terceiro Mundo tradicional.



[…] As chamadas “reformas econômicas” que andamos instituindo nos países do antigo bloco soviético foram uma absoluta catástrofe para a maior parte de suas populações – mas investidores ocidentais e uma elite clássica de super-ricos do Terceiro Mundo estão fazendo fortunas imensas, em parte pilhando boa parte da “ajuda” que é mandada para lá, de vários modos [9]. De fato, o UNICEF [Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância] divulgou um pequeno estudo, pouco tempo atrás, avaliando só o simples custo humano, como mortes, do que eles chamam de “reformas capitalistas” na Rússia, na Polônia e nos demais (e, aliás, eles aprovaram as reformas) – e, para a Rússia, calcularam que houve cerca de meio milhão de mortes extras em um ano, só como resultado dessas reformas. A Polônia é um país menor, portanto o número foi menor, mas os resultados foram proporcionais por toda a região. Na República Tcheca, a porcentagem da população vivendo na pobreza passou de 5,7% em 1989 para 18,2% em 1992; na Polônia, os números são algo como de 20% para 40%. Então, se vocês caminharem agora pelas ruas de Varsóvia, é claro, vão encontrar um monte de coisas muito legais nas vitrines das lojas – mas é o mesmo em qualquer país do Terceiro Mundo: um monte de riqueza, muito exiguamente concentrada; e pobreza, fome, morte e imensa desigualdade para a vasta maioria [10].



[…]



Então, o fato de que a Rússia safou-se da tradicional área de serviço ocidental terceiro-mundista e estava se desenvolvendo em um rumo independente era realmente uma das principais motivações por trás da Guerra Fria. Isto é, a conversa típica que sempre se escuta a respeito disso é de que estávamos nos apondo ao terror de Stalin – mas isso é uma total conversa fiada. Em primeiro lugar, não deveríamos poder sequer repetir essa conversa, sem um senso de auto-ironia, dados os nossos antecedentes. Nós nos opomos ao terror de mais alguém? Opomo-nos ao terror da Indonésia em Timor Leste? Opomo-nos ao terror na Guatemala e em El Salvador? Opomo-nos ao que fizemos no Vitnã do Sul? Não, nós apoiamos o terror o tempo todo – na verdade, nós o pomos no poder.



*Extraído do Capítulo 5 (“Dominando o Mundo”) do livro Para entender o poder – o melhor de Noam Chomsky, editado por Peter R. Mitchell e John Schoeffel (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, pp. 194-198).



**As notas de rodapé sinalizadas no texto referem-se às notas originais do livro, que podem ser acessadas em: http://understandingpower.com/files/AllChaps.pdf entre as páginas 163 e 168 do arquivo em PDF.

Fonte: Diário Liberdade

PCB.org


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