O sangue derramado nas rebeliões escorre pelas mãos de inúmeros promotores e juízes de todo o país
Leonardo Isaac Yarochewsky
“quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.
– Tobias Barreto
Após 17 horas de rebelião no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim), em Manaus, a Secretaria de Segurança Pública informou que entrou no presídio às 7h (9h no horário de Brasília) desta segunda-feira (2). Segundo o secretário de segurança pública do Estado, Sérgio Fontes, ao menos 60 detentos foram mortos. Além da rebelião, 87 presos fugiram de outra unidade prisional horas antes. O número de mortos ainda não é definitivo já que a revista e contagem dos presos no Compaj ainda não foi concluída.
Segundo o secretário de Segurança Pública, a rebelião, uma das maiores da história do país, ocorreu em razão da guerra entre facções rivais pelo controle de tráfico de entorpecentes em Manaus. A facção conhecida como FDN (Família do Norte) teria atacado membros do PCC (Primeiro Comando da Capital). Segundo informações da Seap (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária), o regime fechado do Compaj tem capacidade para 454 presos e abrigava 1.224. Um excedente de 770 presos. O regime semiaberto do mesmo presídio onde ocorreu a rebelião, com capacidade para 138 presos, contava com 602 antes dos assassinatos. Neste setor, o excedente era de 464 presos.
Em 1985 – há mais de três décadas – Arminda Bergamini Miotto já alertava sobre o problema da superpopulação carcerária nas grandes penitenciarias, como um dos fatores de incremento da reincidência. Segundo a autora: “Nas penitenciárias de grande porte, geralmente situadas na região da capital para onde convergem todos os condenados da respectiva Unidade da Federação, lotando-as e superlotando-as, as circunstâncias fazem com que a situação seja essa, ainda que a administração entenda que deva ser diferente e deseje que possa sê-lo. Sem falar no que, ademais, costuma acontecer numa penitenciaria de grande porte, provavelmente superlotada, aí está uma relevante explicação para o tão grande número de reincidentes entre os egressos”.
Maria Lúcia Karam, igualmente, observa que grande parte dos “homicídios brutais, entre os próprios presos, nasce da convivência forçada, que faz com que qualquer incidente, qualquer divergência, qualquer desentendimento, qualquer antipatia, qualquer dificuldade de relacionamento, assumam proporções insuportáveis. O desgaste da convivência entre pessoas, que, eventualmente, não se entendam, aqui é inevitável. As pessoas que não se ajustam, os inimigos são obrigados a se ver todos os dias, a ocupar o mesmo espaço, o que, evidentemente, acirra os ânimos, eleva a tensão, exacerba os sentimentos de ódio, levando, muitas vezes, a que um preso mate outro, por motivos aparentemente sem importância”.
As autoridades, salvo as honrosas exceções, por sua vez, sempre procuram atribuir a responsabilidade pelas rebeliões e pelas mortes ocorridas nas penitenciárias brasileiras aos próprios presos. A sociedade, cada vez mais intolerante e influenciada por políticos fascistas, exalta o número de mortos e brada que “bandido bom é bandido morto”.
O Brasil, com quase 700 mil presos, está entre os quatro países do Planeta com a maior população carcerária em números absolutos. Deste total, cerca de 250 mil presos são provisórios, ou seja, presos que ainda não foram condenados definitivamente, mas que a “justiça” insiste em manter preso sem qualquer fundamentação jurídica e legal, transformando a prisão preventiva de caráter excepcional em regra.
Os tribunais de todo o país, inclusive os superiores, embalados nos braços do populismo penal e da mídia criminológica, vêm demudando a prisão preventiva, inadequadamente, em antecipação da tutela penal.
Sim, os juízes, desembargadores e ministros fecham os olhos para a violência que é o sistema penal. Sistema penal repressor, estigmatizante e seletivo. Sistema penal que destrói os mais vulneráveis da sociedade. Sistema penal desumano e degradante.
O sangue derramado nas rebeliões escorre pelas mãos de inúmeros promotores e juízes de todo o país. Promotores e juízes que dão as costas para o sistema penal, que lavam as mãos nas águas do punitivismo penal.
Não é menos grave o fato de que nas penitenciárias brasileiras encontram-se várias pessoas condenadas por crimes de bagatela ou por tráfico de drogas, em razão da equivocada aplicação da lei de drogas que, também, não distingue como deveria o referido crime. Segundo os dados do INFOPEN – junho de 2014 – o tráfico de drogas, 27% dos crimes informados, é o de maior incidência, seguido pelo roubo, com 21%. No que diz respeito ao “tráfico”, a maioria destas pessoas condenadas ou presas provisoriamente, na verdade, não passam de meros usuários ou pequenos “traficantes” que muitas vezes sem intenção de lucro ou de meio para sua subsistência cedem pequena quantidade de droga a terceiros. Só aí, são cerca de 40 mil pessoas que poderiam estar cumprindo suas penas fora da prisão.
Como dissemos em nosso “Da Reincidência Criminal”, “a privação de liberdade é a consequência mais visível da pena de prisão. Contudo, outros sofrimentos, algumas vezes obscuros, infligem ao preso um sofrimento até maior: a falta de privacidade; a privação de ar, de sol, de luz, de espaço em celas superlotadas; os castigos físicos (torturas); a falta de higiene; a violência e os atentados sexuais cometidos pelos próprios companheiros de infortúnio; a humilhação imposta inclusive aos familiares dos presos; o uso de drogas como meio de fuga, etc.”.
Não é necessário percorrer as penitenciárias brasileiras para tomar conhecimento da tragédia há muito anunciada. O sistema penal é perverso e vil. A superlotação já é considerada “normal”, enquanto isso, o STF mitiga a presunção de inocência e juízes continuam a decretar prisões preventivas a rodo, a negar sua substituição por outras medidas cautelares e, alguns, querem até mesmo o fim da salutar audiência de custódia.
A prisão é o meio criminógeno por excelência, é “um universo alienante”, “um sofrimento estéril”, diria Louk Hulsman. Os males da prisão e suas contradições já foram proclamados em todo o mundo, como já foi por diversas vezes salientado, a prisão muda o delinquente para pior. Na prisão os homens e mulheres passam por um processo de prisionização, são despersonalizados e dessocializados.
O sistema punitivo tornou-se uma máquina de produzir a criminalidade e está longe de trazer alguma espécie de paz social, verdadeiro paradoxo, um sistema seletivo, estigmatizante, que avilta e degrada, potencialmente capaz de transformar seus destinatários em seres mais violentos, mais perversos, como o próprio sistema. Uma realidade muito distante da sociedade que o recebe sem a mínima chance de reintegração social. As condutas que definimos como criminosas são um fenômeno social inevitável, fruto de uma sociedade injusta e desigual. O sistema de justiça punitiva, comprovadamente, não educa nem reintegra, pelo contrário, avilta e degrada.
Basta! Chega de mentiras e hipocrisias. Desde sempre se ouve falar dos problemas penitenciários e de supostas soluções. Basta! Não é mais possível que seres humanos sejam tratados como são os presos no Brasil. Basta! De censos, estatísticas, números, cálculos etc., eles não são mais necessários para demonstrar o que é do conhecimento de todos, o que é evidente, o que é doloroso, mas que alguns insistem em negar ou em manter.
Basta de fingir que vivemos em um Estado democrático de direito.
Feliz Ano Novo! Para quem?
Carcerária.org
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