sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A nova etapa da Lava Jato e a dificuldade da esquerda para lutar contra os arbítrios jurídicos


Miguel do Rosário

A quinta-feira amanhece quente em todo Brasil, como esperado.  A imprensa amanhece cheia de novos arbítrios, como esperado.

A rotina do golpe não apresenta mais surpresas, a não ser que haverá nova surpresa, novo arbítrio e novo golpe, todos os dias.

A Lava Jato iniciou uma nova fase, a Operação Eficiência, cheia de prisões preventivas (incluindo aí de Eike Batista) e conduções coercitivas desnecessárias.

A esquerda sumiu do mapa. Mas como ela pode lutar contra o arbítrio jurídico?


Ela – a esquerda – aprendeu a lutar a batalha política. Venceu muitas eleições. Quando a direita descobriu, todavia, que a fórmula do sucesso é manter a luta na esfera jurídica, a esquerda ficou completamente desorientada. Até porque é muito fácil manipular a esquerda. Prenda-se um rico aqui, mande-se investigar um adversário político, e pronto: a esquerda, acostumada à luta partidária, onde o adversário é o mau, é aquele que deve ser destruído, como irá agir?



Num de seus maiores clássicos, o 18 de Brumário, Marx tentou explicar isso à esquerda, mas é complicado mesmo: como o grande capital é capaz de se voltar contra a sua própria classe, contra a própria burguesia e contra seus próprios representantes políticos e empresários, como fez Luis Napoleão, para angariar apoio popular, ganhar eleições e, em seguida, consolidar o domínio do… grande capital.



É assim a Lava Jato: ela destrói as grandes empresas nacionais de construção civil, destrói seus negócios no Brasil e no exterior e o passo seguinte é a Petrobrás contratar apenas… empresas estrangeiras, mesmo que estas estejam envolvidas em grandes esquemas internacionais de corrupção. O grande capital terá conseguido, enfim, dominar o mercado brasileiro de construção civil, às custas de milhões de desempregados, redução dos investimentos em infra-estrutura, devastação política, aniquilamento ou controle das instituições políticas e financeiras que ainda eram governadas pelo princípio da soberania popular, como o BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa e o próprio governo federal.



O grande capital terá ampliado, assim, o seu domínio sobre uma das maiores economias do mundo.



Como o próprio procurador-geral da república definiu brilhantemente, durante sua participação em Davos, onde foi mostrar quem manda no Brasil: a Lava Jato é pró-mercado…



Na luta jurídica, o objetivo não é destruir o adversário e sim fazer prevalecer alguns princípios.



Por exemplo, alegar presunção de inocência em favor de um adversário é o que se pode esperar de mais oposto à lógica da luta partidária.



Aécio, Cunha, Sergio Cabral, Eike Batista? Presunção da inocência para eles? Não me faça rir, diz o lutador partidário.



A diferença mais profunda, porém, entre as lutas política e jurídica, é que a jurídica, ao contrário da luta política, é ferozmente contramajoritária, porque entende que os preconceitos mais arraigados, mais violentos, estão justamente na consciência popular.



A esquerda, por sua vez, aprendeu a ganhar os votos do pobre porque defende políticas públicas boas para ele, mas não tem instrumentos, não na política, para mudar preconceitos jurídicos atávicos, como aqueles relativos, por exemplo, à cultura do linchamento, pela qual o adversário deve “pagar” pelo que fez. Isso vale tanto para o adversário partidário como para o de classe.



Em seu livro As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt analisa, melancolicamente, as dificuldades e a indiferença dos partidos políticos de esquerda, da França do final do século XIX, com os arbítrios evidentes que se levantaram, numa maquinação jurídica do Estado muito semelhante ao que vemos na Lava Jato (assim como foi parecido com a Ação Penal 470), contra Alfred Dreyfus. Dreyfus era um militar judeu muito rico, arrogante, que sempre gostou de ostentar suas riquezas. Como a esquerda francesa, mergulhada até o pescoço na luta de classes, poderia defendê-lo? Arendt, porém, é implacável em sua condenação à essa postura da esquerda, porque, na época em que escreveu seu livro, já sabia muito bem quais seriam as consequências, para toda a humanidade.



Arendt detecta, em seu estudo, que as lideranças de esquerda eram simpáticas à causa, quer dizer, queriam defender Dreyfus, mas, assim como hoje a esquerda em relação à Lava Jato (a esquerda hoje quer criticar, sabe que tem algo de errado, mas não sabe como agir), não sabiam como aquilo poderia lhes gerar algum benefício político. Quando Clemenceau, famosa liderança da esquerda francesa, resolve comprar, embora tardiamente, a luta em defesa de Dreyfus, perde as eleições seguintes. No entanto, essa mesma liderança, Clemenceau, alguns anos depois, quando a onda na opinião pública virou, se tornou o mais poderoso político francês do primeiro quarto do século XX, ocupando o cargo de primeiro-ministro duas vezes entre 1906 e 1920. A coragem de Clemenceau, embora aparentemente não lhe tenha gerado lucro político num primeiro momento, granjeou-lhe um sólido prestígio, que durou toda a sua vida.



Se o PT tivesse assumido uma postura mais corajosa e assertiva desde o início das conspirações midiático-judiciais, lá em 2005, talvez estivesse hoje, mais de dez anos depois, numa situação muito mais confortável.



E assim, eu já testemunhei colegas da esquerda defendendo punições a qualquer custo, mesmo conscientes da ilegalidade do processo, dos empreiteiros acusados pela Lava Jato, com o argumento de que eles seriam “uns filhos da puta que exploram o povo há muitos séculos”. Não percebem que este ódio de classe, que já é, por si, um tanto vulgar (além de hipócrita), está sendo manipulado contra eles mesmos, contra a democracia, contra o povo brasileiro?



Na luta jurídica, contudo, não há esse maniqueísmo vulgar. Ninguém deve ser condenado por razões políticas, muito menos por razões de classe, e sim porque a justiça encontrou provas de sua participação individual num crime específico. E mesmo assim, mesmo que essas provas existam, jamais a pena do indivíduo deve incluir o peso de uma culpa histórica e social, como tem feito o esquema golpista, desde o mensalão.



Por exemplo, qual o sentido em condenar o almirante Otto, pai da energia nuclear brasileira, a 43 anos de prisão?



Num debate do qual eu participei no ano passado, um professor de ciência política me disse, à socapa, quando conversávamos sobre o caso do cientista, algo como “me desculpe, mas Otto roubou”.



Primeiramente, não acredito nisso. Não vi provas suficientes de que Otto tenha “roubado”. A acusação da Lava Jato é contra suas consultorias, que teriam somado alguns milhões ao longo de muitos anos. Não achei suficiente, até porque é natural que um especialista em energia nuclear preste consultorias sobre… energia nuclear, e ganhe bem. O nosso ministro da Justiça também ganhou muito dinheiro com consultoria, mais que o doutor Otto, não precisou sequer provar nada, e o STF arquivou o processo…



Em segundo lugar, condenar um velho de quase oitenta anos a quarenta anos de prisão?



Que país do mundo condena o seu cientista nuclear mais importante a 43 anos de prisão? Só mesmo o Brasil da Lava Jato.



A esquerda brasileira contava, até então, que a elite liberal, por uma questão de bom senso, tivesse essa função, através da mídia, de conter os instintos mais violentos do povo. E inclua-se, aí, nesse povo, todo mundo, incluindo classe média e ricos, que não são mais sofisticados que ninguém em se tratando de cultura jurídica.



Mas a elite liberal foi a primeira a ser neutralizada culturalmente pela grande mídia e pela Lava Jato.



E assim a Lava Jato, que alguém disse que comeria Aécio em primeiro lugar, vai antes comendo todo mundo, porque sabe muito bem dosar o “timing” de suas operações.



A Lava Jato manipula o próprio PT, e a esquerda em geral, desde o início da operação. E quando eu falo Lava Jato, entenda-se a inteligência que a governa, que não é, evidentemente, a do Powerpoint, e sim a da Globo, que controla a narrativa.



Quando aumentam, nos setores progressistas, as críticas à operação, a Lava Jato divulga uma delação contra alguém do outro lado, seja um tucano, seja alguém ligado ao governo Temer. Ou seja, sacrifica algum cordeiro gordo de seu próprio rebanho, fazendo a esquerda acreditar que, se aprender a falar direitinho o idioma do adversário, poderá vencê-lo nesse terreno.



E assim, vemos deputados do PT tentando atacar seus adversários dizendo que eles são “investigados pela Lava Jato”, como se isso significasse alguma coisa. Ora, seguindo essa lógica, Lula é o “comandante máximo” da corrupção no Brasil…



Eu fico, primeiramente, irritado com isso, mas depois tenho até compaixão, porque entendo as dificuldades políticas de um parlamentar, que passou a vida inteira lutando na esfera partidária, de repente mudar a chave de seu discurso, e aprender as técnicas marciais da luta jurídica.



Veja o caso dessa nova etapa da Lava Jato: para que novas conduções coercitivas? Para que novas prisões preventivas? A realidade já mostrou, com as tragédias que ocorreram nas últimas semanas, que o sistema prisional brasileiro explodiu, justamente pelo abuso de prisões preventivas e provisórias, ou seja, sem condenação. Não cabe mais gente. E o que faz a Lava Jato? Aposta mais ainda na prisão preventiva, que é aquela determinada antes mesmo que o indivíduo possa se defender, antes mesmo, muitas vezes, que ele sequer saiba do que está sendo acusado.



A esquerda poderia pôr seus think tanks para lhe ajudar nessa luta, mas ela não tem think tanks… A fundação Perseu Abramo, do PT, publica apenas boletins chorosos sobre a criminalização dos movimentos sociais, sem avançar nenhuma reflexão minimamente sofisticada sobre a questão jurídica. As centrais sindicais, igualmente sem investir em inteligência, repetem chavões…



Semana passada, eu participei de um debate com um deputado famoso da esquerda carioca. Havia só gente de esquerda. Em determinado momento, comentou-se sobre a prisão de Sergio Cabral. O deputado mencionou, com orgulho, que o ex-governador não estava recebendo nenhuma regalia. Até aí tudo bem. Mas aí ele falou o que seria uma dessas “regalias”: Cabral teria pedido uma tela anti-mosquito para sua cela. O Estado não deu. O deputado falou aquilo como se fosse muito positivo que o Estado recusasse, a um ser humano, uma proteção básica contra mosquitos, num país tropical, em pleno verão, na época em que vivemos o auge de graves epidemias de dengue, febre amarela, zika, etc?



Que espécie de barbárie está tomando conta do Brasil?


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[Arpeggio – coluna política diária]

Ocafezinho




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