Não somos pacifistas, mas tampouco fazemos apologia da violência. Diante do ocorrido no processo de desocupação negociada em dois dos mais de dez prédios da UFPE, uma reflexão e um balanço crítico é extremamente necessário aos militantes, ativistas e todos os que se opõem ao avanço da avalanche privatizadora e destruidora dos direitos sociais e humanos no Brasil, intensificada a partir do golpe parlamentar, jurídico, midiático e empresarial com a subida de Michel Temer ao governo federal.
É de conhecimento público, especialmente após o bombardeio da mídia comercial, que as condições encontradas no CFCH e no CAC após a desocupação foram extremamente adversas. Os prédios foram os únicos a serem entregues em condições piores do que estavam no momento da ocupação. Um fato “curioso”, caso observemos a conjuntura das outras ocupações da universidade e até do restante do país. Não cabe a nós aqui estabelecer uma lista inquisitória sobre o ocorrido, mas buscar analisar o fato.
Não há ganhos à militância e ao movimento estudantil com as depredações (quebra de vidros, móveis e furtos de livros e equipamentos) de salas de professores, coordenações, secretarias e de grupos de estudos e pesquisas, ainda que precisemos perceber que houve um certo direcionamento nelas, expressando uma orientação para a revolta, já que não foram depredadas todas ou a maioria das salas do CFCH (ou CAC). Os locais, a intensidade e a forma como que cada depredação aconteceu em cada um dos diferentes locais específicos deixa pistas de contra quem e contra o quê se estava reagindo, ainda que de maneira ineficiente e problemática.
É preciso compreender os motivos que levam estudantes em carências e sofrimentos na universidade, diretos e difusos, a se comportar como o fizeram. Especialmente quando vivenciam vários períodos em contato com mentes e condutas violentas e assediadoras. As “micro-hierarquias” das relações de poder cotidianas, inextricavelmente ligadas às “macro-hierarquias” sociais, também se expressam nas salas de aula, nas filas de um insuficiente Restaurante Universitário, nos cortes de bolsas e da assistência estudantil, nos processos administrativos e monitoramento dos estudantes, nas reuniões colegiadas e nas demandas à reitoria. A violência simbólica (associada a outras não tão simbólicas) é tão mais eficiente quanto menos precisa recorrer direta e explicitamente à violência física. É tão mais eficiente quanto mais utiliza dessa mesma violência física seletiva e cirurgicamente organizada, procurando chamar o mínimo de atenção, mas existindo real e efetivamente contra os que excedem os limites do aceitável para uma estrutura restritiva e privatizadora de direitos.
Todavia, no contexto das ocupações, um movimento coletivo e de classe, o tipo de reação com depredações como as que vimos só traz prejuízos, de várias ordens. A ofensiva da mídia comercial e institucional e das organizações de direita é imediata, e contra elas não há chances de uma contraofensiva de mesma proporção que, sem concordar em nada com as depredações, busque entender o ocorrido e ao mesmo tempo não o universalize, nem reduza unilateralmente o movimento global das ocupações a ele. Nossos canais têm alcance ínfimo quando comparados à mídia corporativa. A contraofensiva ainda fica mais prejudicada por não haver justificativas plausíveis para o ocorrido. Não é uma ação tática progressiva, não ajuda na mobilização das bases estudantis e não ajuda no combate ideológico das ocupações como espaços legítimos e avançados de luta. Ao contrário, só colabora em jogar gasolina em corpos vulneráreis diante das ações da Polícia Federal. Como convencer estudantes a se somar na nossa luta em 2017 se as depredações e furtos aparecem para muitos (ou a maioria) como o único “balanço das ocupações”? Um balanço geral das ocupações, seus acertos e erros, suas conquistas, vitórias e seus limites, contribuirá para essa tarefa. É urgente e necessário que este documento seja elaborado pelo Ocupa UFPE.
Reprovamos tais danos e furtos do patrimônio público por percebermos que eles acarretam prejuízos graves à comunidade universitária – patrimônio popular em última instância, ainda que muitas vezes privatizado por alguns – e trazem apenas benefício individual para algumas pessoas. Ou seja, os depredadores, entendendo reagir a uma violência real e na maioria das vezes difusa e institucional, acabaram reproduzindo o que criticam. Ironia das ironias: de um suposto coletivismo a um individualismo dito autonomista (mas afetivamente ligado ao liberal).
Tais atos não ajudam – na verdade, prejudicam – a construção de uma militância efetiva, radical, independente e de base. O dinheiro público que tanto pressionamos, durante as reuniões com a direção e a reitoria, para que fosse utilizado na melhoria da infraestrutura dos Centros mais desfavorecidos, agora deverá ser utilizado para tapar os buracos deixados.
Ainda haveria mais a analisar: as mensagens e justificativas para as depredações, que ficaram gravadas nas paredes, ou na pele do CFCH: “Por aqui passou a revolta popular!”, “Stalin matou pouco!”, e por aí vai. As orientações ideológicas extremamente heterogêneas dos estudantes, suas diferentes experiências sociais, suas vinculações políticas diversas etc., podem nos ajudar em algo aqui, aliado a certo “espírito do tempo”. As derrotas sociais multidimensionais efetivas e em progressão do trabalho contra o capital, a vitória do cinismo sobre a transparência (ou o casamento inseparável entre segredo e democracia liberal), a descrença generalizada na política institucional, o oportunismo eleitoral do espetáculo que tem como contra-face e complemento um sectarismo auto-proclamatório estéril, alimentam um individualismo niilista existencial evidente e parecem ser aspectos desse “espírito do tempo”. Com o declínio das “grandes utopias”, e o esgotamento dos “reformismos sem reformas” e da política das conciliações manipulatórias, que tem no Brasil o PT como grande representante (ainda que não o único), para muitos restam as mudanças moleculares cotidianas muitas vezes alçadas a redenções políticas espetaculares com um viés “artístico” ou “estético”, mas fugazes. Como se as ocupações fossem o momento decisivo e final da vitória definitiva da liberdade plena. Além de várias outras vertentes políticas, subsistem e convivem, não sem problemas e com um impacto não completamente desprezível, espécies de um autonomismo individualista e dogmático e um neo-stalinismo retrógrado e violento, parecendo indicar que nossa luta emancipatória ainda está mesmo em estágios fundamentalmente incipientes. Uma síntese política entre autodiscipina militante e democracia ativa parece difícil de conquistar e é um dos desafios estratégicos de nossa época.
Mas há também uma riqueza real e potencial em muitas das experiências esboçadas nas ocupações: rigor no combate às pequenas relações de desigualdade de gênero, raça, classe e sexo; autogestão dos espaços; liberação sexual e dos corpos; mensagens e expressões artísticas e políticas, como muitas das pichações no térreo do prédio do CFCH; deliberações coletivas e busca de uma divisão de trabalho não hierárquica, etc. Apenas as avaliações superficiais podem condenar e reduzir os estudantes a vândalos e criminosos ou celebrar as depredações mencionadas como manifestações progressivas.
Ainda, gostaríamos de ressaltar que as ocupações trouxeram ganhos reais ao movimento estudantil e à comunidade universitária, como a criação de grupos de trabalho paritários (com igual participação de professores, estudantes e técnicos) sobre orçamento, novo estatuto universitário, assistência estudantil e transparências nas contas da UFPE. As práticas supracitadas de depredações não se coadunam com a práxis de quem luta pelo fortalecimento de uma universidade pública, gratuita, de qualidade e, sobretudo, popular.
2017 se apresenta como um ano que nos cobrará ainda mais, e teremos que responder à altura aos ataques neoliberais do Estado. Entretanto, teremos que saber como responder. Avante na luta contra a retirada de direitos, pela unidade das esquerdas socialistas e combativas e pela democratização das universidades públicas.
Blog Síntese
Nenhum comentário:
Postar um comentário