A questão carcerária, definitivamente, explodiu e não mais se encontra sob qualquer controle oficial. Essa explosão – com retratos horrendos e aterrorizantes – não pode ser surpresa e não possui uma única e grande causa deflagradora. Tudo vem se agravando ao longo de décadas de descasos, de fundamentalismos acusatórios, de equívocos conceituais primários, que vão desde a transformação das forças de segurança em forças de ocupação, como consequência direta dessa irreal e fantasiosa Guerra Contra O Crime, até a teratológica deformação em que cadeias e presídios fazem as vezes de verdadeiros campos de concentração. No final dessa ponta envenenada, a estratégia histérica e indisfarçadamente racista de combate às drogas.
Outros fatores atuaram diretamente nessa explosão social, como a própria dinâmica da economia, que exclui, no molde neoliberal eleito, paulatinamente, as possibilidades de justiça social; passa pela falida educação pública, que sequer consegue alfabetizar nossas crianças e jovens; consolida a existência de um fosso de exclusão econômico-político-cultural e muitas outras razões mais.
A maior das causas da crise carcerária, todavia, o cerne de todos os males, está na superpopulação dos presídios, queiram ou não os punitivistas. Excluir isso como a causa maior da explosão do sistema é negar uma obviedade palmar. Uma das consequências dessa lógica irrealista é reconhecer que desse inferno de amontoados humanos criados em nome da proteção social, uma boa parte ali não deveria estar.
Se é verdade que mais de 40% dos presos estão em regime de prisão processual, é preciso que alguém que tenha um passo além de inteligência emocional reconheça o óbvio: apenas na doutrina, diria, em algumas doutrinas, a prisão é tratada como exceção, na surrada expressão ultima ratio.
No mundo real, prende-se com muito mais facilidade com que se solta; no mundo real, a palavra do policial militar tem presunção praticamente absoluta de veracidade e situações que violam qualquer possibilidade de contraditório são valoradas como prova condenatória, em entendimentos consagrados, chegando-se a ser sumulados, como ocorre no TJRJ.
No mundo real, basta ser preto para não ser usuário de drogas, mas traficante, sempre e sempre e sempre em associação criminosa com outro preto capturado. A disposição do porte para uso próprio causou um ressentimento que ocasionou uma vingança hermenêutica: todos são pequenos traficantes. Prendem-se pessoas viciadas como se traficantes fossem. Todos os dias, aos montes, em levas.
Pequenos furtadores têm fianças inatingíveis a seu nível de miséria, normalmente furtos que jamais teriam êxito, cometidos em supermercados vigiadíssimos, dotados de sistemas sofisticados de câmeras.
Apagando fogo com gasolina, a mídia, sempre ela e na voz dos mesmos velhos fariseus, a exigir justiça!, sinônimo desgastado para a palavra vingança!.
Todas essas pessoas aguardarão presas seus julgamentos, com ínfimas possibilidades de absolvição porque todo o processo é dirigido para a condenação. Fomos historicamente invertendo todas as presunções, que, no passado remoto, eram sempre em favor do réu. Já dou como incontáveis as vezes em que li a seguinte frase, que sepulta toda a dogmática jurídico-penal: “o réu não conseguiu provar sua inocência” … Ou, em uma de suas modalidades mais sutis, “o réu não provou que o policial tivesse motivos para mentir ou que houvesse agido deliberadamente com a intenção de prejudicá-lo”. E vamos por aí afora, num repertório infinito, que tem como base uma única constatação: todos são culpados.
Afirmo sem risco de errar, desses 40% presos preventivamente, se 95% deles poderiam aguardar o julgamento em liberdade. Digo-o sem o menor receio e deles, muitos seriam absolvidos, se fossem ouvidos por juízes isentos, apenas isentos.
O bordão midiático, vazio e ressentido, de que a polícia prende e o judiciário solta, está há tempos superado. Hoje, diríamos que polícia prende e o judiciário tranca, sob o olhar cúmplice de um parceiro que fez da intolerância o remo de seu barco, que é o Ministério Público.
Clichês de sempre, como proteção do interesse público se prestam, aos borbotões, a prender qualquer pessoa.
Em sede de execução penal, é fácil: quando não se quer soltar, basta que se determine a realização de exame criminológico. Este imporá ao preso meses de espera, tudo em torno de algo sem controle de qualidade e valor científico, uma vez que é sujeito a mil variáveis e, na melhor das hipóteses, reduzido a três entrevistas.
No fecho desse ciclo perverso, o bloqueio jurisprudencial que nos atira todos ao poço sombrio, que é o estreitamento a cada dia mais intenso, do habeas corpus. É matéria que todos sabem: o HC não é o caminho para discussão de provas, dentre elas, a de se saber se há ou provas suficientes para mandar um ser humano para o inferno a tornar desesperadora qualquer discussão sobre a conveniência ou legalidade da prisão. Atualmente, o HC sequer é aceito, seja para discutir prova ou não, dado os infinitos obstáculos postos entre o réu e sua liberdade.
Esse nível perverso de presos provisórios poderia jamais ter existido; bastava cumprir-se a lei, atentando-se ao espírito humanista que a norteou, imbuindo-se cada juiz, de todas as instâncias, de um mínimo de compaixão humana. Ou, mais simplesmente, bastando que se lesse um único artigo da Constituição Federal, curiosamente, o primeiro.
Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.
Do Justificando
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