sábado, 27 de agosto de 2016

Sobre as leis de bronze da lumpemburguesia

Nildo Ouriques

A lei de bronze como lei moral

Não poucas vezes a consciência ingênua dos homens é governada por leis de bronze. Leis de bronze são consideradas não somente eternas, mas também inflexíveis. Guiados por semelhante crença, eles julgam suficiente a adoção de uma lei qualquer para transformar o mundo ou criar garantias contra as paixões inerentes à vida, sempre avessa à disciplina dos poderes. A experiência ensina que as leis de bronze se assemelham aos postulados morais, razão pela qual a consideração de que "um país não pode gastar mais do que arrecada" equivale ao mandamento sagrado "não matar", "não roubar" ou "não desejar a mulher do próximo". A violação das regras morais tal como o desrespeito às leis de bronze implicam em condenação sumária, castigos severos ou ainda o inferno.


O fascínio que certas leis de bronze exercem na cabeça dos homens e a eficácia que eventualmente podem adquirir na vida social tampouco resistem ao confronto com o real. Neste sentido, as leis de bronze quando exibem sua solidez cumprem funções ideológicas, ou seja, cumprem funções de legitimação de determinada política ou contribuem com o processo de dominação em seu conjunto. Mas jamais serão eternas.


A lei da responsabilidade fiscal é de bronze

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é a principal lei de bronze em uso na sociedade brasileira. Em consequência, a legitimação político-social para o processo de destituição da presidente Dilma apareceu inicialmente sob a forma jurídica de crime de responsabilidade cometido contra a lei fiscal, obrigação de zelo absoluto de todo governante realmente preocupado com a sorte republicana. A imprensa e os políticos da ordem insistem que as "pedaladas fiscais" constituem crime de responsabilidade, a despeito dos pareceres técnicos em favor da presidente Dilma no Senado. A questão não é técnica, obviamente; de resto, sabemos que política e verdade raramente coincidem. A oposição tucana apelou à LRF consciente do golpe certeiro contra a legitimidade da presidente, mas também porque inauguraria nova cruzada moral em favor da valiosa lei de bronze: nenhum governante pode produzir déficits, pois estes seriam, especialmente em tempos de crise, muito nocivos para o Estado e para o bem estar social da população.


Em perspectiva histórica, esta cruzada em favor da austeridade e contra o déficit público atua como espécie de reforma moral em meio à crise. Era preciso – sabe a classe dominante – manufaturar a opinião pública favorável às políticas de austeridade iniciadas por Dilma e agora em fase avançada de consolidação com Temer. Neste tempo turbulento, toda economia de recursos é necessária, razão pela qual os já minguados programas sociais, antes motivo de orgulho dos petistas, representam luxo porque, como acredita o homem comum, "a vida não está fácil para ninguém". A maior parte das pessoas julga que a crise afeta a todos negativamente e nem nos piores pesadelos podem supor a crise como aquela oportunidade extraordinária para os capitalistas acumularem fortunas e/ou criarem condições para conquistar maior riqueza e poder.

Portanto, a destituição da presidente Dilma cumpre objetivos imediatos e estratégicos. No curto prazo, justifica a supressão de muitos direitos dos trabalhadores. No longo, impulsionado pela força da reforma moral, abre-se tempo de experimentação burguesa contra a ampliação do horizonte político nacional, exatamente quando aos olhos de milhões de pessoas o sistema político se revela miserável, intragável. Enfim, a reforma moral em curso limita toda política no país à enfadonha administração competente da crise no momento em que milhões recusam com asco o fazer político burguês.


Na exaustão do sistema político emerge a figura e evidencia-se a função de Temer. Nada mais afeito à crise que um político com o perfil do golpista. Temer é perfeito porque "chegou lá" pelas mãos generosas do pragmatismo petista, aquele mesmo pragmatismo considerado até bem pouco tempo não grave limitação política ou submissão à correlação de forças supostamente desfavorável para avançar em direção de reformas radicais em favor do povo, mas, ao contrário, um pragmatismo então considerado pedra angular da astúcia e da inteligência lulista, pretensamente capaz de agradar proletários e burgueses em favor de alguns trocados para as classes subalternas.


Ademais, Temer é a quintessência burlesca do bacharel oitocentista, misto de discurso e gesto antiquado, mas disponível à política de modernização de todas as frações do capital e disposto a seguir com enorme convicção para o lixo da história com direito à aposentadoria de presidente sem culpa no cartório. Ele próprio talvez não saiba, mas ao menos suspeita que ao tocar no teto, tocou também no fundo.

A república rentista e a lumpemburguesia

A popularidade insistentemente baixa de Temer e a estética retrô que insinua não o tornam menos perigoso ou uma ameaça somente evidente após o golpe, quando rompeu com seus companheiros petistas de aventura. Um homem disposto a tomar qualquer medida contra os trabalhadores e depois retirar-se à vida privada, como ele próprio já anunciou, é um homem pronto para aceitar qualquer negócio. A propósito, as recentes denúncias de corrupção contra ele apenas elucidam sua disponibilidade histórica para aceitar qualquer negócio.


A beligerância de Temer resulta, portanto, em algo mais valioso que sua disposição manifesta para as transações tenebrosas: reside no "comando" de um governo controlado sem inibições pelos banqueiros com apoio das demais frações do capital (comerciantes, industriais e latifundiários). Nas circunstâncias atuais, a única fração de classe capaz de dirigir o país é, de fato, a fração financeira, pois a regressão da burguesia industrial é enorme e sua consciência de classe em nada se assemelha ao comportamento clássico da burguesia industrial inglesa do século 18, quando comandou a revolução industrial em favor dos seus interesses. Diante da lumpemburguesia brasileira, somente a fração financeira possui clara capacidade de colocar as condições gerais do funcionamento da economia mundial em seu proveito, dividindo de maneira desigual o botim. Adeus desenvolvimentismo!


Nunca será ocioso recordar a importância do "ajuste" praticado por Dilma para sedimentar as condições necessárias ao golpe agora denunciado pela ex-presidente. Ela estabeleceu o fim de seu mandato ao julgar possível a manutenção das regras do jogo - superlucros para o capital e passividade dos sindicatos e dos movimentos sociais - realizando a política da direita em matéria econômica em "troca" dos minguados programas sociais dos governos petistas. No fundo, não logrou mais do que a digestão moral da pobreza, porque, como agora podemos ver, o efeito dos programas sociais inéditos na história do país se derrete feito gelo ao sol.

A força da crise solapou sem demora a ilusão. A direita aproveitou o momento e retomou a iniciativa política no terreno parlamentar, na imprensa e, de maneira surpreendente, nas ruas. Os trabalhadores e suas organizações apenas despertam da anestesia que supunha possível o fim do abismo social nos marcos do capitalismo. A reforma moral está em curso e seu nervo mais importante é a LRF, cujo objetivo evidente é a perenização do princípio da austeridade contra o povo. Somente assim podemos entender as leis contra os direitos trabalhistas, o aperto contra os governos estaduais, o fim do reajuste para o funcionalismo público etc. etc.


No purgatório é possível pecar

A oposição tucana ao governo dispensaria o suposto descuido de Dilma com as contas públicas e, de fato, eles se lançariam à luta por sua destituição sob qualquer argumento. No entanto, foi Dilma quem permitiu a ofensiva quando os impactos sociais do ajuste praticado pela presidente eleita com discurso de corte keynesiano afetaram agudamente os mais pobres, negando a promessa da campanha vitoriosa. O golpe foi fatal contra os trabalhadores e ainda mais corrosivo nas filas da resistência à estratégia golpista.


No entanto, a tragédia se completou somente quando, em sua defesa, a presidente alegou que jamais desrespeitou a LRF e que os atos ou decretos emitidos não violavam a lei de bronze mais valiosa para a burguesia brasileira. Enquanto a escalada oposicionista argumentava contra o "gasto sem caixa" - como se o orçamento de um Estado guardasse alguma semelhança com as finanças pessoais - a presidente alegava que o atraso dos pagamentos pelo Tesouro Nacional aos bancos estatais que financiaram gastos do governo (Bolsa Família, Plano Safra etc.) não gerou déficits. Em sua defesa, a presidente repetiu mil vezes que jamais desrespeitou a LRF e, em consequência, não teria existido crime de responsabilidade.


Assim, ambos, governo e oposição, se digladiavam em combate de morte pela mesma causa! Enfim, ainda no momento decisivo da disputa parlamentar, o petismo manteve o pacto com os tucanos na afirmação da "política fiscal responsável" e a renúncia a toda manifestação de heresia na condução da política de Estado.


Qualquer keynesiano de mediana formação saberia que a recessão econômica inaugurada por Dilma (estoque superior a 12 milhões de desempregados) e aprofundada por Temer tornaria a situação fiscal ainda pior, como os números agora confirmam. A política sem heresia, sem risco, o apego ao pragmatismo como ethos político de conciliação de classes, chegava tragicamente ao fim. O petismo descobriu em meio ao pesadelo que o pragmatismo é terreno pantanoso, repleto de riscos, ao contrário do que supunha tanto sua base social quanto seus mais importantes "dirigentes". Ao que tudo indica, a dura lição não implica em correção de rumos.


A lógica do petismo durante toda a crise é meramente eleitoral e, no limite, apenas pretende disputar com tucanos o monopólio da representação da classe dominante sem a qual acreditam ser impossível governar o Brasil. No purgatório, o petismo não promove a necessária autocrítica para ganhar direito à nova vida e considera que não pode romper com as leis mais importantes para a burguesia, mesmo que precisamente esta fidelidade tenha sido a responsável última por sua desmoralização pública.


A crença comum do petucanismo e a esquerda responsável

Quando FHC apresentou ao parlamento a LRF, deputados e senadores do PT votaram contra. Corria o ano de 2000 e Palocci, Marina Silva (sim, Marina votou contra a LRF!), Berzoini, Waldir Pires, Nilmário Miranda e Jaques Wagner votaram pela rejeição do projeto. Não estavam sozinhos. O ex-candidato presidencial e peça de reposição burguesa no jogo eleitoral, o pernambucano Eduardo Campos (PSB), também votou contra, da mesma forma que Aldo Rebelo e Agnelo Queiroz, ambos do PC do B. O mundo dá voltas para a direita, não?


Algum tempo depois - mais precisamente cinco anos - Palocci (após ocupar o posto de ministro da economia) declarou que "nós, naqueles idos de 2000, não demos apoio à lei. Foi uma falha da bancada e eu me incluo nessa falha" (Folha de S. Paulo, 4/5/2007). Na mesma época, o senador Aloísio Mercadante subiu a tribuna da senado (Agência Senado, 4/05/2005) para revelar que o governo Lula era mais zeloso que FHC no manejo das contas públicas: "é inquestionável que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi muito importante para o país". A conversão petista ao credo liberal se fazia completa e os erros de juventude estavam, finalmente, superados.


Enfim, o PT e seus principais líderes - Lula à frente, obviamente - assumiam plenamente a defesa dos postulados essenciais da classe dominante ao adotar a LRF na vã tentativa de conquistar a confiança das classes dominantes, esquecendo que estas não necessitam dos partidos políticos e de líderes populares para manter a situação sob controle. Não devemos, portanto, subestimar a força das leis de bronze. Ainda quando revelam seu poder destrutivo, as leis de bronze podem manter o encanto sobre suas vítimas.


Não somente o PT e sua "base aliada" mantêm fidelidade ao princípio da austeridade, mas setores da esquerda "que não se vendeu ou se rendeu" reivindicam a necessidade de uma "esquerda responsável", cujo lema não poderia ser mais nocivo: o "Estado deve caber dentro do orçamento". Não é pequena a conquista ideológica da classe dominante! A consequência prática do simpático postulado - o Estado deve caber dentro do orçamento - é que o povo deve viver de maneira permanente na austeridade.


Ora, a defesa de uma esquerda responsável limitada a manter a ação estatal nos limites de um orçamento austero rompe com a tradição da economia política, pois, desde o século 17, a ciência gris ensina que o orçamento é produto da riqueza social-estatal e não o inverso. A riqueza, conceito tão elementar quanto esquecido no Brasil, segue crescendo com a mesma força com a qual multiplica a desigualdade social. A burguesia brasileira - comerciantes, industriais, banqueiros, latifundiários - professa em uníssono o respeito à austeridade permanente como se, de fato, a praticassem e, no limite, não pudessem viver sem ela.


No entanto, a história das crises revela que a burguesia necessita tanto da política de austeridade (LRF) quanto da produção de déficits. Na verdade, a produção do déficit é ingrediente decisivo no processo de acumulação de capital desde quando a Inglaterra criou um banco a partir da dívida estatal e produziu o impulso capitalista necessário para se transformar na oficina do mundo. Não fosse o consenso em economia tão rasteiro entre nós, seria ocioso recordar questões tão elementares da história do capitalismo, completamente ignoradas em função do caráter ideológico do "debate" econômico.


Teoria e práxis do rombo fiscal

A história do capitalismo contemporâneo evidencia o caráter ideológico da lei de bronze, pois tanto o princípio da austeridade quanto a produção do déficit depende sempre de interesses concretos. Enfim, a lei deixa de funcionar quando a conveniência burguesa determina; em consequência, as classes dominantes, quando necessário, desprezaram sutil e completamente as leis de bronze com o conhecido recurso do assalto ao Estado. Assim, os déficits supostamente indesejáveis se tornam inevitáveis e a defesa aberta da LRF vai a segundo plano, em função das exigências da conjuntura. A dívida do Estado é, finalmente, o grande negócio para os capitalistas, razão pela qual seu pagamento religioso é também considerado uma lei de bronze: dívidas devem ser honradas em qualquer situação. O pagamento da dívida requer superávits fiscais e comerciais permanentes e, em consequência, a austeridade se transforma em imperativo político-moral.

Os capitalistas aceitam a erupção dos déficits quando a quebradeira de empresas (geralmente monopólios) exige a intervenção do Estado tal como ocorreu em 2007 e 2008 nos Estados Unidos. O governo republicano de George Bush não vacilou em utilizar recursos públicos para salvar a General Motors, o sistema bancário, as seguradoras que estavam em completa bancarrota pela ação de seus executivos. A extensão do fenômeno indica quebra sistêmica, jamais produto da ação "irresponsável de um executivo"; ao contrário, ainda que muitos deles foram processados individualmente, ficou claro que a administração temerária dos grandes monopólios era, na verdade, um modelo exigido pelas regras do jogo. O Estado então aprofundou o déficit para salvar os monopólios sem vacilação alguma e naquele tempo ninguém - na imprensa ou nas organizações patronais - lembrou da doutrina das contas públicas superavitárias.

O Brasil não foge à regra, mas tem lá sua particularidade. O quadro abaixo mostra a evolução do superávit primário, do gasto financeiro e do resultado nominal até 2015, segundo os dados do Banco Central (em bilhões de reais).

Ano primário gasto financeiro resultado nominal


2003 55,6 -144,6 -89,0
2004 72,2 -128,5 -56,3
2005 81,3 -158,1 -76,8
2006 75,9 -161,9 -86,0
2007 88,1 -162,5 -74,5
2008 103,6 -165,5 -61,9
2009 64,8 -171,0 -106,2
2010 101,7 -195,4 -93,7
2011 128,7 -236,7 -108,0
2012 105,0 -213,9 -108,9
2013 91,3 -248,9 -157,5
2014 -32,5 -311,4 -343,9
2015 -111,2 -501,8 -613,0

Até 2013 os sucessivos governos do PT acumularam suculentos superávits fiscais (superávit primário). O gasto social era controlado com mão de ferro, a despeito da propaganda governamental sobre os programas sociais e a ideológica emergência de uma nova classe média num país subdesenvolvido.


Em 2014 apareceu o primeiro déficit em mais de uma década; ainda assim, cifra modesta: apenas R$ 32,5 bilhões. Na verdade, ao contrário do que afirma a oposição tucana, o minúsculo déficit não era sequer capaz de fomentar ações do governo para enfrentar um ano eleitoral, no qual, como manda o comportamento republicano vigente, o governo colocaria a máquina a funcionar em favor de seus candidatos. O reduzido déficit, no entanto, não pode ocultar tema relevante: neste ano, ocorreu fantástico crescimento do pagamento de juros, pois enquanto 2013 a orgia financeira consumia 157 bilhões, em 2014 exigiu adicionais 343,9 bilhões! Esta rápida evolução dos gastos com o rentismo financeiro deve-se, em primeiro lugar, à decisão de Dilma em aplicar a ortodoxia neoliberal na condução da política econômica. Os banqueiros pressionaram como alegam petistas? Claro que sim! Mas quando foi diferente? Os banqueiros pressionam há séculos os governos e aproveitam toda crise para assaltar o Estado via dívida pública e empréstimos externos.


A situação já insustentável piorou ainda mais em 2015 com a política ultraneoliberal aplicada por Dilma. O déficit primário, ou seja, o gasto do governo sem a contabilização dos juros, alcançou R$ 111,2 bilhões; mas o déficit nominal, aquela cifra que contabiliza o pagamento de juros, registrou importante acréscimo: saltou para 613 bilhões (501,8 bilhões com o pagamento de juros), quase o dobro do ano anterior.

Neste contexto, podemos entender o giro à direita operado por Dilma quando, de maneira surpreendente para seus desavisados eleitores, adotou sem vacilação o programa defendido por Aécio Neves. Nenhuma surpresa, antecipo, pois a causa fundamental do giro à direita estava escrita nas estrelas. Numa economia dependente, comandada pelo rentismo, somente um estadista poderia convocar o povo e mudar o rumo da economia e do Estado.

Dilma e a cúpula petista - Lula à frente, sempre - decidiram praticar a política do adversário derrotado com a certeza de que não poderiam deixar a burguesia sob hegemonia tucana. Ao adotar o programa liberal, Dilma julgou que mataria dois coelhos com uma cajadada: segundo seus cálculos, a direita estaria com ela na medida de seus interesses e a esquerda julgaria que tudo poderia ser pior com Aécio, aceitando, assim, a dura realidade.

Não se deve esquecer a pressão quase pública de Lula para levar Meirelles ao comando da economia, indicando a "necessidade" da rápida atuação para o insaciável apetite rentista. Enfim, é legitimo considerar que Lula queria mais rapidez no ajuste e todos podem recordar seu breve ativismo no meio sindical ao afirmar que a questão decisiva não era o pântano moral da cúpula petista, mas a crise econômica.

A súbita guinada à direita não decorria, portanto, somente da suposta astúcia e descarado oportunismo político da direção petista. Era, na verdade, uma imposição das condições concretas, das exigências da república rentista e especialmente da fração financeira da burguesia diante da mínima ameaça de interrupção do fluxo financeiro a seu favor em caso de inadimplência do Estado. A redução da capacidade de pagamento permitiu a cena necessária para a mudança de rumo, o fim da breve e precária primavera keynesiana (nova matriz econômica) e a fatal imposição da volta à ortodoxia como se, de fato, os políticos tivessem finalmente recuperado a lucidez que as finanças reclamam.

A crise escancarou outro ritmo. A burguesia queria um ajuste rápido e profundo, sem a parcimônia petista que faria tudo exatamente igual, porém, de maneira "negociada". É claro que o ajuste praticado por Dilma foi violentíssimo! Milhões de desempregados em poucos meses, acelerado processo de decadência e desnacionalização industrial, agravamento da questão fiscal pela recessão, desvalorização da moeda e certa inflação para corroer o poder de compra dos salários. A crise financeira do Estado - diretamente proporcional à força da política de juros praticada pelo governo via Banco Central - era de fato inocultável, mas Dilma não somente vetou a auditoria da dívida como insistiu na natureza fiscal de um problema sob o qual já não tinha controle.

Na cabeça dos keynesianos a política econômica deveria defender a indústria nacional, mas eles parecem ignorar os efeitos destrutivos do Plano Real sobre a burguesia industrial. De fato, a participação da indústria de transformação no PIB era, em 2004, de quase 18% e declinou, em 2015, para 9%. Tal como no poema de Drummond, "burguesia industrial já não há". E agora José?

Não está na força da burguesia, mas precisamente em seu raquitismo industrial, a origem do protagonismo da FIESP na Avenida Paulista nas manifestações de massa contra um governo acuado moralmente e decidido a recompor o pacto de classe sem ativismo sindical e popular. Os economistas keynesianos estavam roucos de tanto gritar desde a UNICAMP por "outra política econômica" centrada no "fortalecimento do emprego e renda", mas sofriam a mesma solidão do Planalto: quais forças sociais os apoiavam?

A falta de realismo apareceu na tentativa tão desesperada quanto ingênua do "compromisso pelo desenvolvimento", no qual a CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST e CSB pelos trabalhadores e a CNI, Anfavea, Abimaq, Abit entre outras entidades patronais defendiam o "melhor dos mundos possíveis" onde - alimentados por imensa ilusão de classe - garantir o desenvolvimento do país. Era beco sem saída, a vida comprovou. Não é fácil tentar pacto com a lumpemburguesia.

Um golpe de classe?


A burguesia brasileira, sempre dirigida pelo capital financeiro, não vacilou diante da oportunidade. Uma vez instalado o governo, Temer colocou Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn, dois falcões da rapina financeira, no comando dos postos mais importantes da república. Com velocidade invejável, os dois trataram de convencer a opinião pública de que o rombo das contas públicas era muito pior do que mentiam os petistas. Na exata medida em que incluíam no cálculo todo tipo de dívidas com o claro objetivo de inflacionar a conta final, estavam conscientes que a profundidade do ajuste seria proporcional ao volume do déficit. A mágica cifra de 170 bilhões de reais recompunha parcialmente a necessidade de seguir financiando o rombo na exata medida em que alimentava ainda mais o rentismo e, de quebra, permitia ligeira margem de manobra para o governo gastar por conta alguns bilhões para as necessidades da "base aliada" num ano de eleições municipais.


Os dias atuais revelam, portanto, o crescimento do déficit e a austeridade caminhando juntas. Déficits para financiar frações do capital e austeridade sobre o povo. A ideologia do sacrifício, tal como no cristianismo dominante, acompanha a ideologia da austeridade como se após este período de ajuste - duro, porém necessário - todos seríamos agraciados com uma política de renda e emprego novamente. No entanto, as classes dominantes não escondem o jogo e o governo anuncia que o vale de lágrimas não será passageiro: nada de frouxidão ou excessos nos próximos 20 anos!

Keynes na periferia

Com a LRF o liberalismo de direita julgou que tinha assegurado um valioso instrumento contra os governantes, especialmente importante contra o "populismo", considerado inclinação natural dos latino-americanos na irresponsabilidade com os assuntos de Estado. No entanto, o sono tranquilo durou pouco porque as exigências da vida são mais fortes.


Em 2007/2008, a crise abalou os países centrais, com epicentro nos Estados Unidos e exigiu que o Estado - sim, aquele mesmo ogro filantrópico da consagrada expressão de Octavio Paz - abandonasse a antiga ladainha da "não intervenção na economia" e aos olhos atônitos do discípulo liberal concedesse aparente razão ao keynesiano intervencionista.


Nos Estados Unidos os déficits são permanentes, ainda que em 2015 tenha sido o mais baixo em 8 anos, segundo dados do Departamento do Tesouro. A cifra tocou os 439 bilhões de dólares, quantia 9% inferior a 2014. As fontes indicam que é o mais baixo desde 2007, quando a crise eclodiu com força nos países centrais. Ninguém com duas moléculas de realismo defendeu nos Estados Unidos um "orçamento equilibrado" e o fim do "déficit" para arrumar a economia. Lá, a teoria é outra. Existe, obviamente, a ideologia do combate aos déficits, mas foi esclarecedor observar como Bush, um republicano avesso aos subsídios keynesianos, tirou o cheque e cobriu rombos bilionários dos grandes monopólios em 2007 e 2008, quando a General Motors, os bancos e as seguradores foram à bancarrota após a orgia da liberalização... É grande a diferença entre a burguesia dos países centrais e a lumpemburguesia dos países latino-americanos!


Num breve texto de 1925 (Am I a liberal?), Keynes declarou a impossibilidade de assumir o Labour Party na Inglaterra porque este representava uma classe antagônica à sua origem social. Esperto, na mesma medida em que evitou o trabalhismo britânico, Keynes simulou distância do conservadorismo e adiantou-se na defesa do que chamou "Justiça e o bom senso". Neste contexto, alegou que "... the class war will find me on the side of the educated bourgeoisie" (a luta de classes me encontrará sempre ao lado da burguesia educada), bordão abre-alas para certo ativismo keynesiano de corte progressista.


Agora, os keynesianos - Luiz Gonzaga Belluzzo talvez seja o mais visível deles - se dizem "heterodoxos" e de certa maneira a autodefinição serve como caminho fácil para ocultar - por conveniência ou ignorância - as raízes ortodoxas de seu mestre mais famoso. Tal comportamento evita o tema da conversão, tão decisivo na fé quanto na ciência. Enfim, Keynes nem sempre foi um keynesiano, tal como o reconhecemos agora. Ao keynesianismo brasileiro lhe falta dentes para morder e, de fato, eles assumiram há tempos a ideia ortodoxa, segundo a qual os "fundamentos da economia" devem ser sólidos e não convém brincar com política fiscal (déficits fiscais).


Por esta razão toleraram durante uma década a LRF, pois, apesar dela, conseguiam vender suas ilusões por meio de governos petistas com reduzidos programas sociais e a feliz suposição de uma "nova matriz econômica". O pacto de classe funcionou e os programas sociais permitiram aos "heterodoxos" fazer de conta que os custos do processo dependiam da superexploração dos trabalhadores sem a qual nada funciona.


Durante todos estes anos, os keynesianos silenciaram sobre a guerra de classes, ao contrário de seu mestre mais ilustre. O famoso tripé - política monetária austera, câmbio flutuante e taxa de juros elevada -, considerada expressão da racionalidade científica representa, na verdade, os interesses das distintas frações de classe racionalizadas pelo economista. A ideologia dos economistas não raro é produto de deficiências teóricas graves, mas é decisivo entender o limite do keynesianismo nacional também como manifestação da ausente base material, ou seja, a inexistência de uma burguesia industrial ascendente. Temos exatamente o oposto!


Aquela tirada de Keynes segundo a qual "a luta de classes me encontrará sempre ao lado da burguesia educada" é até simpática em termos literários, mas rigorosamente falsa no solo histórico latino-americano. Aqui, uma burguesia educada - que, de fato, tampouco existiu nos países centrais! - seria um luxo não fosse apenas um desejo irrealizável do bom mocismo político brasileiro e seu corolário, a colaboração de classes em prejuízo dos trabalhadores.


André Singer, ex-porta voz de Lula, manifestou como ninguém a "descoberta" nas vésperas da votação contra a presidente: segundo o professor da USP, era muito significativo que a luta de classes tivesse voltado à cena "trazida pela direita e pelo capital". Arrematou atônito: "Isso é surpreendente. Por que essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou na ruptura e no enfrentamento?"


Nas condições do capitalismo dependente latino-americano, a crise evidenciou a margem de manobra reduzida para os pactos róseos que a maior parte do sindicalismo e dos economistas heterodoxos defendeu. A realidade atropelou todas as ilusões. Não sabemos por quanto tempo estas mesmas ilusões podem ainda comandar as esperanças ingênuas dos homens. Não oculto certo otimismo neste difícil momento, pois, diante da ofensiva do capital, os trabalhadores podem entender que nada devem esperar da lumpemburguesia brasileira e, em consequência, nada têm a perder. Exceto, é claro, aqueles velhos grilhões que os mantêm atados ao sistema que os explora e oprime.

PS: agradeço a Mauricio Mulinari os dados da tabela e também as permanentes conversas que temos mantido nos últimos anos.



Correio da Cidadania



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