terça-feira, 23 de agosto de 2016

A (in) Justiça no varejo

Nas audiências de tráfico de drogas, o roteiro é quase sempre o mesmo

Theuan Carvalho Gomes da Silva

Audiências criminais de acusados presos por tráficos de drogas acontecem aos milhares nos fóruns criminais deste nosso país que apostou tudo na estúpida guerra às drogas. Quem já participou de uma audiência dessas poderia dizer que participou de todas. A sensação é de verdadeiro déjà vu. O roteiro é quase sempre o mesmo. Os papéis parecem ter sido mal distribuídos, pois juiz e promotor se comportam de maneira muito semelhante. Os personagens já são bastante conhecidos. Réu: preto, pobre, periférico, baixa escolaridade e que não passa dos 30 anos. Magistrados e promotores: oriundos da classe média alta, na maioria homens e brancos, entre seus 40 e 50 anos. Se for no interior, o advogado, provavelmente, será dativo, que não é especialista na matéria criminal, mas que está inscrito no convênio entre Defensoria e OAB, e pega uns casos de vez em quando. Esses são os ingredientes necessários para o rito especial kafkiano da lei de drogas.



A narrativa começa com a viatura policial num bairro periférico. O testemunho de policiais militares é cheio de caquetes

Réu preventivamente preso há meses – quando não há mais de ano – mesmo tendo a decisão que decretou a preventiva sido genérica, (in)fundada na abstrata gravidade do delito e (re)aplicada, ipsis litteris, em todos os casos de tráfico daquela vara. O acusado conhece o seu defensor 10 minutos antes da audiência, na carceragem do fórum mesmo, sempre com a escolta do lado. Nessa entrevista “reservada”, tudo que o acusado consegue dizer para ajudar sua defesa é: “Doutor, sou inocente, foi forjado, doutor, tenho filha, sou trabalhador, eles me bateram, doutor, pelo amor de deus me tira daqui!”.



Audiência de instrução, debates e julgamento instalada. A escolta traz o réu preso e algemado, e dois brutamontes ficam dentro da sala de audiência “garantindo a segurança”. Na ata de audiência já constava justificativa para uso das algemas, mesmo sem a defesa se manifestar sobre. A sala está em silêncio e todos parecem estar lendo algo muito importante. Ninguém explica para o réu o que realmente está acontecendo ou vai acontecer. Ele fica na ponta da mesa, atônito, tentando desvendar as fórmulas do rito, que para ele não faz o menor sentido. Tudo que o réu consegue entender da disposição dinâmica da sala de audiência é que aquele sentado na cadeira mais alta só pode ser o juiz, e que não levantou os olhos uma única vez desde que chegara. Reconhece também o defensor, que há pouco estivera na carceragem. Do lado oposto da defesa, há outro homem de terno. De repente, o meirinho abre a porta. Entra o policial militar que o prendeu e se senta olhando para o juiz, após dar um aceno respeitoso para o tal outro homem de terno, que a essa altura compreende que só pode ser o promotor.



A narrativa começa com a viatura policial num bairro periférico. O testemunho de policiais militares é cheio de caquetes. Quem já viu algumas audiências de tráfico é capaz até de remedar inconscientemente a testemunha de acusação. “Eu e meu colega de farda estávamos em patrulhamento rotineiro quando, de repente, avistamos o réu em atitude suspeita; após a abordagem, logramos êxito em encontrar com o meliante a droga apresentada no DP. Depois ele franqueou nossa entrada até a casa dele, que era duas ruas ali pra cima, bem na entradinha da favela, onde a gente também logrou encontrar um caderninho com uns nomes e telefones, que tava escondido na gaveta da sala”.



Pronto. Nessa hora o juiz já parou de prestar atenção na audiência, entrou no piloto automático e já abriu o modelo da sentença. Condenatória, claro. Em algumas situações, a “livre convicção” se forma mais rápido do que imaginamos. Afinal, esse é só mais um dos muitos casos de tráfico de drogas. Nada muito difícil de se “resolver”. A pauta está cheia e, provavelmente, aquela audiência é idêntica a quatro ou cinco audiências anteriores presididas pelo mesmo juiz naquela tarde. Todas com condenação, claro.



O promotor faz algumas perguntas, quase sempre lendo ali na hora o boletim de ocorrência e o depoimento prestado na delegacia para ver se o policial não esqueceu de dizer algo, e assim conseguir lembra-lo daquele detalhe mais sórdido: “Boa tarde, senhor policial. Consta do B.O de folhas tais que o senhor, além de ter encontrado 45g de maconha no bolso direito da bermuda do réu, também encontrou 57 reais no seu bolso esquerdo, não é isso?”. O policial responde: “Positivo, doutor, foi isso mesmo. Era 57 reais em notas picadas, uma de 50, outra de 5 e outra de 2.” O promotor arremata perguntando: “Ali onde o réu foi preso é conhecido como ponto de droga?”. Ao que o policial responde: “Ah... ali tem muita droga sim, doutor”. Pronto. Com a confirmação do policial a prova da mercancia está perfeita e o promotor se dá por satisfeito com o clássico e vitorioso: “Nada mais, Excelência!”.



O defensor arrisca algumas perguntas para o policial, do tipo: “Boa tarde, senhor policial. O senhor sabe dizer se tinha mais alguém na casa do acusado quando ele foi preso?”. Policial: “Ah doutor, sabe como que é, ali na favela é todo mundo meio junto, um monte de barraco emendado, mas onde a gente foi não tinha mais ninguém não”. O defensor muda o alvo: “O laudo do IML aponta que o réu após ter sido preso em flagrante apresentava algumas escoriações na maçã direita do rosto, o senhor sabe como isso aconteceu?”. O policial, um pouco apreensivo, diz apressadamente: “Doutor, ele resistiu à prisão, não queria entrar na viatura de jeito nenhum. Daí na hora do empurra-empurra pode ser que ele tenha batido a cabeça em algum canto. Acontece mesmo...”.



Na lei de drogas, o interrogatório não é o último ato, mas é possível requerer sua inversão, que não costuma ter residência, afinal, a pauta precisa fluir e não dá para ficar discutindo pormenores constitucionais uma hora dessas. Após meses, essa é a primeira vez que o réu vai poder contar sua história para o juiz, porque naquela vara ainda não havia audiência de custódia.



O juiz, sem olhar para o réu, quase roboticamente, pergunta: “Senhor fulano, o senhor tem o direito de permanecer calado, e isso não poderá ser usado contra sua pessoa, mas esse é o momento que você tem para dizer o que aconteceu. Você prefere falar ou ficar em silêncio?”. O réu de cabeça baixa, algemado, camiseta branca, calça cáqui e chinelo havaiana, vê o homem que o mantém preso há meses pela primeira vez, cabelos grisalhos, terno impecável, gravata de seda e semblante inquisitivo. Depois de já ter ouvido complacente a versão dos policiais, depois de já ter esperado meses contando os segundos pelo seu “dia na corte”, o acusado diz com o resto de suas esperanças: “Vou falar sim, meretíssimo”.



Após contar que a droga tinha sido forjada, que tinha filha e que nunca teve passagem – a não ser um termo circunstanciado pelo art. 28 há mais de 5 anos –, o acusado diz para o juiz que apanhou e teve sua casa revirada pelos policiais. Algo inédito acontece. Pela primeira vez o juiz olha para o réu, e diz: “O senhor está dizendo que os policiais inventaram tudo, então? Por que eles fariam isso? Eles já te conheciam? Eles tinham alguma coisa contra você?”. O réu se dá conta que aquele homem já tinha sua opinião (con)formada, e que ali não havia a menor chance, e assim bem baixinho diz: “Não, Excelência, não me conheciam”. O Juiz indaga finalmente se as partes ainda têm perguntas, ao que ouve um sincronizado: “Não, Excelência”.



O promotor já se levanta com os autos na mão em direção ao computador da escrevente. Ali mesmo conecta o pendrive com a insígnia do MP e abre o modelo com título “AF, art. 33”. Após mudar o nome das partes, o número do processo e adaptar os fatos, o promotor copia e cola as alegações finais na ata da audiência. O advogado também já está com seu pendrive preparado, e assim que o promotor se levanta é a vez da defesa, que conecta o seu pendrive e copia e cola suas alegações finais na ata da audiência.



“Em quanto tempo eu saio, doutor?”



A sentença do juiz, que já tinha sido feita, é editada para refutar o argumento da falta de provas, já que o testemunho policial é firme e não tem porque ser desacreditado. Para isso, o magistrado cita jurisprudência de algum tribunal extinto do início da década de 90, que corrobora a tese da prova tarifada. Afinal, todos sabem que policiais não têm porque mentir. A pena é fixada em 5 anos, regime fechado, já que “o réu não faz jus” aos benefícios da causa de diminuição do §4º do art. 33, uma vez que não confessou e “ostenta maus antecedentes”. Além disso, o crime é hediondo e exige maior reprovação social, o que justifica o regime fechado.



O réu demora a entender o que está acontecendo. Aquele levanta e senta de trás do computador da escrevente é o seu julgamento. Ao final de tudo, o defensor senta ao seu lado na ponta da mesa com cópia da sentença. O réu já sabe que foi condenado e pergunta: “em quanto tempo eu saio, doutor?”. O advogado responde: “Olha, se o tribunal mantiver a condenação e não reformar a pena, você vai precisar cumprir 2 anos no fechado. Depois mais 1 ano e 2 meses no semiaberto e já vai poder pedir para montar seu aberto.”



Mal o réu termina de assinar a ata de audiência, a escolta, pelo braço, já começa a conduzi-lo para fora da sala. O advogado se levanta e tenta acompanhar o réu até o corredor para lhe dizer que vai lhe visitar na cadeia, e que qualquer coisa é só mandar um “pipa” (carta). A escolta acelera os passos no corredor, com nítido objetivo de se desvencilhar do advogado, que fica para trás. Passados 5 minutos, começa mais uma audiência naquela sala. Mais um Josef K. será julgado.



Theuan Carvalho Gomes da Silva é Mestrando em direito pela UNESP. Pós-graduando em direitos humanos pela USP. Pesquisador do NEPAL/UNESP. Associado ao IBCCRIM e ao IDDD. Advogado criminalista. contato@theuan.com.br.



Jusitificando

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