sábado, 20 de agosto de 2016

O petismo não foi uma catástrofe, mas mostrou os limites da esquerda tradicional

Moysés Pinto Neto

Os governos petistas não foram uma catástrofe, como uma parte da oposição de esquerda propõe. Avanços foram combinados com retrocessos, gerando um pêndulo que, bem ou mal, nos empurrou um pouco para frente. 

A desastrosa política ambiental ou os avanços aquém do esperado em direitos humanos e enfrentamento do conservadorismo cultural contrastam com a elevação da qualidade de vida dos mais pobres e abertura de espaço político para os movimentos sociais. 

Se a trajetória em relação aos movimentos autonomistas é dúbia, admitindo apenas quem podia cooptar, políticas de inclusão acabaram promovendo mais ou menos involuntariamente o despertar identitário de segmentos subalternos, abalando as estruturas de poder tradicionais. 

Desprezar toda experiência petista por ter adotado a conciliação de classes ou um reformismo fraco é também desconsiderar a diferença entre política e moral, ignorando a dimensão material(ista) que se exige para que certos gestos políticos possam ser postos em prática. Claro que isso pode cair facilmente no cinismo da Realpolitik, confundindo realismo com conformismo e ignorando que sem tentativa de ruptura nunca haverá transformação. Calcular isso é o desafio para uma perspectiva utópica, que precisa romper com o existente a partir do existente, sem a possibilidade (imaginária) de uma revolução que recomeça o mundo do zero, construindo o paraíso na Terra.

Ao mesmo tempo, o petismo demonstrou muito claramente que existe um limite no discurso da esquerda institucional. Ainda hoje os intelectuais que “gritam golpe” comungam uma representação do mundo como um avanço total do neoliberalismo sobre os direitos dos trabalhadores. Em resposta a isso, repetem a nostalgia do Estado de bem-estar social e do trabalho fordista, sem sequer apresentar algum nuance na transformação para formas menos tipicamente disciplinares, menos hierárquicas e mais em rede, menos regradas pelo sequestro do tempo na jornada diária e mais confundidas com a dimensão que o capitalismo designa “lazer”. Negando qualquer potência a isso, repete-se apenas: desregulação, exploração, neoliberalismo. “Quero minha fábrica de volta!” A procura da regulação jurídica leva ao amor pelo Estado-nação, o estadocentrismo. A disputa se dá, portanto, no tabuleiro entre Estado, dos desenvolvimentistas, e mercado, dos neoliberais. A esquerda torna-se, em nítida contradição com suas ideias mais básicas, nacionalista. “O Petróleo é nosso!”, viva nossas estatais, fora imperialistas. A globalização, integração internacional que não para de se aprofundar nos aspectos bons e ruins, torna-se moeda para os liberais. O nacionalismo — um dos principais mecanismos de defesa da política econômica de Dilma ainda hoje — é tão contraditório com a esquerda que a aproxima das políticas de extrema direita hoje na Europa, como o Brexit, além do isolacionismo de Donald Trump.

Se o que difere os economistas “heterodoxos” dos “ortodoxos”, desenvolvimentistas e liberais, é o apego à técnica (entre outras coisas, evidentemente), alegando os primeiros que a economia não poderia ser separada da política e que as planilhas não dariam conta da complexidade do fenômeno, caberia perguntar: qual é a base política para a política econômica pensada pelos desenvolvimentistas hoje em dia? O governo Dilma fundou sua “nova matriz econômica” numa estratégia bifronte que suturava a política externa com a interna. Do ponto de vista interno, tratava-se de adotar o “modelo chinês”, com uma alavancagem do mercado interno por meio de estímulos estatais dirigidos para a infraestrutura e para a indústria nacional, fazendo do crescimento econômico sua principal meta. Esse projeto não é apenas econômico: ela sacrifica como concessão política setores dados como “superestrutura”, como a cultura e os direitos humanos, dirige a educação para um viés tecnocrático (com a proposta de exclusão ou redução das disciplinas humanísticas da formação e investimento em bolsas para áreas estratégia da tecnociência — p.ex. o elogio da engenharia) e pensa o meio ambiente como um estoque de recursos que deve ser submetido às necessidades econômicas, “modernizando” os espaços alheios ao capitalismo (como a floresta, p.ex.). Ao mesmo tempo, do ponto de vista geopolítico firmaria a aliança com Rússia, China, Índia e África do Sul (BRICS), formando um bloco alternativo ao “Império” do Norte promovedor de um escape da alternativa neoliberal. O Estado também estica seus braços fomentando conglomerados econômicos que possam se tornar players no mercado internacional (os supercampeões), atuando no eixo Sul/Sul. Assim, teríamos um complexo de mercado interno aquecido e crescimento econômico combinado com uma geopolítica de confrontação ao neoliberalismo — enfim, o Brasil Grande estava em vias de se formar.

Afora as ideias que estavam nitidamente mal-pensadas (com destaque para a ridícula leitura da questão ecológica), a estratégia deu totalmente errado. A separação entre rentismo e indústria naufragou diante dos fatos. O nacionalismo não consegue mais mobilizar ninguém. Os mercados são globais e não houve qualquer gesto para a confrontação, mesmo após a crise de 2008, da circulação financista predatória ou algum tipo de regulação mundial em termos de política externa. Ao contrário do aquecimento do mercado interno, que durou pouco tempo, a política de estímulos promoveu desajuste fiscal e enriquecimento das elites, que os absorveram sem promover o investimento desejado. A errância da estratégia, pensada em gabinetes “sem combinar com os russos” (isto é, a suposta burguesia industrial e os trabalhadores), se fez marcante pelo fato que, em vez de assumi-la, Dilma mantinha uma atitude ambivalente com a “contabilidade criativa”, sinalizando para o mercado financeiro a manutenção da política neoliberal anterior. Quem realmente sustentou o crescimento nesse tempo foi a exportação de commodities, tornando o desenvolvimentismo na verdade um simulacro para sua oculta e verdadeira face, o neoextrativismo, a arqui-forma da “dependência”, fundado na modernização dos negócios dos latifundiários e em contraponto à promoção da justiça na distribuição de terra, nos direitos dos índios e na sustentabilidade ecológica. Não por acaso Kátia Abreu se tornou uma das principais ministras de Dilma, sua cota pessoal, dado o valor estratégico do extrativismo para servir de anteparo ao desenvolvimentismo minguado e errático.

A política desenvolvimentista acabou colateralmente funcionando como um arranjo patrimonialista entre financiamento partidário, corrupção, fortalecimento de oligarquias econômicas — vínculos que consolidam o modelo que Sérgio Lazzarini chamou de “capitalismo de laços”. Nisso, o liberal curiosamente encontra-se com o marxista Francisco de Oliveira, ambos demonstrando, antes de tudo isso estourar em investigações criminais, o papel essencial que os fundos de pensão desempenharam no mercado brasileiro desde as privatizações e após. Lazzarini desmitifica uma série de clichês que pairam sobre textos esquerdistas sobre a “invasão do capital internacional” no mercado brasileiro no período recente, mostrando que o capital está quase totalmente ainda vinculado a fundos e empresas brasileiras. Os conglomerados supercampeões, por outro lado, estão respondendo por diversas espécies de crimes de colarinho branco e — como nos mostrou tantas vezes em reportagens essenciais a Revista Piauí — os negócios internacionais são para lá de duvidosos. Do ponto de vista da esquerda, capitalismo de laços não é melhor que neoliberalismo, nem pior.

Mas, repito a pergunta, que condições políticas haveria hoje de Dilma aplicar a política neodesenvolvimentista, considerando que perdeu apoio do mercado financeiro, da indústria e os oligopólios supercampeões estão sendo presos na Lava Jato? Se a economia não existe fora da política, que pacto político poderia sustentar esse arranjo desejado no imaginário petista? Como seria viável aplicar o desenvolvimentismo hoje em dia sem um puro voluntarismo (que, aliás, já foi mais ou menos o que aconteceu e fez dar errado)? Esse impasse entre uma política “de esquerda” inviável — falta base política para isso — e a simples repetição da cartilha neoliberal é que jogou o governo Dilma II para a ingovernabilidade, turbinada ainda pelo estelionato eleitoral (forçando o enfrentamento com Marina Silva por meio do contraste, o PT teve que dobrar a aposta à esquerda nas eleições) que tirou toda credibilidade necessária para o governo. Considerada a deslegitimação alcançada nesse impasse, a direita — composta de diversos setores da sociedade — partiu para a ofensiva e buscou eliminar o oponente no seu momento de maior fragilidade, colocando alguém mais “competente” para gerir o neoliberalismo (acho, no entanto, que a dose foi forte demais: a irregularidade do processo de impeachment dá um pouco mais de fôlego ao PT e traumatiza a estabilidade institucional, suscitando a tese do golpe. A direita pagará um preço caro por essa manobra ilegítima e ilegal). A carta lida ontem por Dilma é um testemunho do impasse na sua incapacidade de oferecer um projeto político de futuro.

Esse ponto me joga de volta aos primeiros parágrafos. O ponto de curvatura à esquerda não pode mais ser o desenvolvimentismo e o pacto de classes mediado pela liderança estatal. A nostalgia do fordismo não faz mais sentido no contexto atual, e muito menos ainda o nacionalismo encardido dos que acham que o problema brasileiro está restrito ao câmbio e à mídia malvada. No vácuo do desenvolvimentismo estadólatra, cresce o pensamento liberal entre a juventude e boa parte da sociedade. Ele ocupa a lacuna da falta de um projeto consistente que não se paute apenas pela “resistência”, que é apenas negativa, reativa, nem pela suposta superioridade moral (agora esfarelada pela corrupção) que a esquerda carregaria. Para o senso comum, não adianta apenas ironizar ou criticar a perspectiva do outro sem que se apresente alternativas consistentes. Ignora-se que, mesmo diante de um ciclo mundial de manifestações pós-2011, Syriza e Podemos, formas institucionais apoiadas no ciclo, não conseguem decolar, as esquerdas “progressistas” na América Latina estão em franco declínio (com a situação calamitosa da Venezuela e a vitória de Macri na Argentina) e há uma ameaça sinistra de ascensão de extrema-direita na Europa e nos Estados Unidos. Há uma gigantesca ilusão quando dissociamos o processo brasileiro do resto do mundo, ainda mais em um contexto de conectividade em que estamos colocados.

A esquerda não conseguirá reagir diante disso se não repensar seus dogmas. Talvez a própria ideia de “esquerda” não precise sobreviver. Mas precisamos visualizar as figuras que emergem para além do estadocentrismo e seu pacto econômico, o fordismo. O fordismo morreu. O Estado-nação tornou-se apenas uma máquina policial. O nacionalismo é um traço cultural reacionário. A Terra encontra-se sob o abalo de um novo ciclo, o Antropoceno, no qual as atividades humanas ameaçam o equilíbrio que possibilitou a emergência da vida. O fosso divisório entre as classes abastece-se de tecnologia e torna-se cada vez mais impessoal e preciso da vigilância e no controle. As redes de trabalho estendem-se 24 horas por dia, 7 dias por semana. A experiência está se empobrecendo cada vez mais pela sua redução ao consumo. Ao mesmo tempo, emergem novas/velhas formas de trocas econômicas — como a dádiva, o compartilhamento e a colaboração — a partir da ponta da tecnologia do Vale do Silício. A variedade cultural é tomada a sério. Cada vez mais aglutinam-se pessoas buscando construir outras experiências de alimentação, moradia, festa, espaço urbano. A violência racial, de gênero e contra a comunidade LGBTTQ deixa de ser tomada como natural.

Visualizar nesse setor que não é nem Estado nem mercado (denominei sociedade em outro post) as potencialidades para um novo projeto precisa ser feito para ontem na esquerda. Livrar-se dos velhos ícones e chavões se impõe. Esqueça-se o neoliberalismo, a estadolatria, a paixão pelo chão de fábrica, até o marxismo — talvez. Precisamos de ideias menos tímidas, mas não é voltando atrás ou para dentro da esquerda (acreditando que a ortodoxia no final tinha razão, pois jamais uma ortodoxia tem razão) que isso irá se resolver. Voltar à ousadia dos anos 60/70, quando livros como Eros e a Civilização e O Anti-Édipo pensavam radicalmente em transformações civilizacionais libertárias. É preciso que saibamos pensar para além do instituído por dentro dele, ou seja, de alguma maneira precisamos fazer o que o PT não conseguiu fazer por falta de imaginação política (ou falta de ouvidos): esquecer o desenvolvimentismo/fordismo e aproveitar os momentos em que há abertura para um extravasamento das condições atuais para além do Estado e do capitalismo. Desvincular, para tanto, radicalismo e sectarismo (que moraliza a política) e ser capaz de estrategicamente aproveitar a força viva de transgressão do instituído na sociedade sem formar bolhas do pensamento (como o atual pensamento petista e da esquerda em geral). Para romper com o aceleracionismo capitalista, será necessário repensar de cabo a rabo os dispositivos identitários da esquerda, virando as coisas de cabeça para baixo sem medo intelectual, com a mesma coragem da verdade que levou tantos intelectuais a rupturas altamente policiadas nos anos 60/70. Mergulhar no virtual, sem aceitar a chantagem polarizada da atualidade. Enfrentar o colapso ecológico no sentido mais amplo de Félix Guattari — envolvendo meio ambiente, relações sociais, subjetividade humana — exige virar a página, de vez, do século XX.

Não é pequena nossa tarefa.

.oOo.

Moysés Pinto Neto é doutor em filosofia.

SUL 21


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