O colunista Jânio de Freitas, em artigo publicado na Folha, escreveu “que o afastamento da presidente se faz em um estado de hipocrisia como jamais houve por aqui. (…) Uma hipocrisia política de dimensões gigantescas, que mantém o Brasil em regressão descomunal, com perdas só recompostas, se o forem, em muito tempo –as econômicas, porque as humanas, jamais.”
Os holofotes do jogo jogado do impeachment – desde o momento no qual um bandido, no comando da Câmara, com a conivência do Supremo, instalou o processo – estão todos voltados para o Congresso e, neste momento, no Senado, como se lá fosse o único palco dessa encenação ridícula. Mas, é preciso reconhecer que, não obstante o fato de termos um Parlamento majoritariamente ocupado por ratazanas, a falta de lideranças com credibilidade, respeito e reconhecimento nos campos político, econômico, social, religioso, artístico e intelectual impossibilitou uma saída democrática para a crise instalada desde 2013.
Sob o ponto de vista sociológico e político, as elites são os principais atores que orientam os rumos dos governos e da sociedade, porque têm grande poder de vocalização de seus interesses e, portanto, extensa capacidade de mobilizar, publicizar e definir a agenda pública.
O papel sociedade civil é central no tensionamento de processos políticos com vistas à ampliação da cidadania e dos direitos. Mas, as elites, queiramos ou não, são fundamentais para induzir o desenvolvimento social, político, econômico e cultural de qualquer sociedade.
O Brasil, apesar de historicamente dirigido por elites muito conservadoras – cujos grupos majoritários dessas elites têm fortes tendências antidemocráticas -, já teve expoentes que, em situações de crise intensa, conseguiram articular grandes concertações em torno de ideias e ideais capazes de produzirem significativos avanços sociais, econômicos, culturais, políticos…
Já tivemos na elite política referências como Ulisses Guimarães, Franco Montouro e Tancredo Neves. Hoje, os líderes bajulados pelas elites são Temer, Cunha, Aécio, Renan, Serra, Bolsonaro, Caiado…
Na cultura, orgulhávamos de personalidades como Guimarães Rosa, Antonio Cândido e Chiquinha Gonzaga. Hoje, as elites batem palma para Reinaldo Azevedo e Alexandre Frota.
Tínhamos elites intelectuais do porte de Paulo Freire, Sérgio Buarque, Euclides da Cunha e Darcy Ribeiro. Hoje, as elites intelectuais cultuadas são Olavo de Carvalho e Lobão.
Já convivemos com economistas do porte de Roberto Campos e Celso Furtado. Hoje, segmentos mais visíveis das elites seguem as dicas econômicas de Rodrigo Constantino e Miriam Leitão. E já tivemos empresários que defendiam uma indústria nacional forte e geradora de riqueza e renda para o Brasil e os brasileiros. Agora, os homens de negócio dessa terra resolveram criar a filosofia empresarial do pato amarelo.
O espaço da liderança religiosa que era ocupado por figuras da estatura de Paulo Evaristo Arns, Helder Câmara e Luciano Mendes de Almeida é protagonizado, agora, por vultos como Malafaia, Cunha, Malta, Macedo e Feliciano.
Lula é a última grande liderança política e social que teve a capacidade de movimentar uma ampla coalizão, num momento de bons ventos da economia – apesar de não ter enfrentado as grandes mazelas nacionais com reformas estruturais, quando presidente. Sonhou, como um operário que sempre fica devendo favores ao patrão, tido um bom cristão, que era possível conciliar o mundo do trabalho, historicamente oprimido, com o mundo das elites, historicamente privilegiado. Para tanto, arriscou a jogar o mesmo jogo das elites políticas tradicionais, historicamente comprometidas com a corrupção, o patrimonialismo, o clientelismo e a apropriação privada do espaço público. Acreditou, inclusive, que jogando o mesmo jogo dos políticos tradicionais seria poupado, com a crença que a justiça e as elites agiriam com isonomia, caso suas estratégias fossem delatadas. Todos sabemos o enredo dessa história…
Não obstante, Lula conseguiu avanços sociais e econômicos reconhecidos internacionalmente. Gostemos ou não, por uma década, sob sua liderança, os brasileiros sonharam com a possibilidade de uma sociedade na qual os interesses de classe poderiam se conciliar. E esse sonho começou a se transformar em pesadelo naquele junho de 2013, quando as ruas foram invadidas por hordas de interesseiros.
Provavelmente, por ter conseguido transformar a realidade social do país, apesar de algumas ações erráticas, Lula é caçado tresloucadamente por uma juristocracia, uma elite jurídica que, aliada aos outros segmentos conservadores das elites sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais sempre determinaram os lugares sociais a partir de seus interesses de classe.
E foi através de uma coalizão de amplos setores dessas elites conservadoras, com a participação descomunal da mídia, que uma engenharia golpista bem-sucedida foi sendo arquitetada, desaguando num processo fajuto de impeachment, cujo resultado qualquer mortal sobre a terra já tem conhecimento.
Os ricos e poderosos e os segmentos rancorosos e privilegiados da classe média – portanto, parte significativa das elites sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas -, são coniventes com o golpe. Creem que o governo que tomou de assalto a República manterá intactos seus privilégios. Não percebem que o golpe à democracia nos coloca na situação de uma sociedade atrasada e que esse retrocesso repercutirá negativamente na vida de todos os segmentos sociais.
Um golpe na democracia não é um jogo de soma zero, no qual uns ganham e outros perdem. Trata-se de uma involução social, política, econômica, cultural e ética que tomos, com intensidades diferentes, amargaremos nos próximos anos. Inclusive a classe média que sentirá, mais cedo ou mais tarde, os reflexos de um governo pouco comprometido com a Nação. Várias medidas anunciadas pelo governo interino sinalizam perdas de direitos que incidirão sobre todos os brasileiros, inclusive a classe média. É questão de tempo…
Portanto, o malsinado caminho do golpe punirá terrivelmente os trabalhadores e os pobres, mas certamente penalizará também os hipócritas que naturalizam e desejam invisibilizar essa violência estúpida à Constituição, ao estado de direito e à democracia, chamada impeachment.
Doutor em Ciências Sociais e professor da PUC Minas.
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