quarta-feira, 16 de abril de 2014
A Salvação Pela Arte: Arthur Bispo do Rosário
Artista plástico sergipano reverenciado no seu tempo, Bispo foi imortalizado pela atemporalidade da arte.
A arte enseja desconstruções de concepções para a abertura do desaprendizado instigante de significações, ou seja, a arte contemporânea “não fornece respostas, ela problematiza, inquieta… Há articulações de questionamentos possibilitando pluralidade de leituras’’, evidenciando o que Bispo do Rosário ressoou com suas rupturas estéticas e perturbadoras.
Experimentou-se dentro dos muros de instituições psiquiátricas, principalmente na Colônia Juliano Moreira (diagnosticado como esquizofrênico paranoide), depois de perambular, por dias, pela Igreja da Candelária e Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, proferindo a salvação e julgamento dos vivos e mortos pela sua determinação; começando esse seu primeiro surto após ouvir vozes de anjos o consagrando como Jesus Cristo, numa data bastante simbólica; meia-noite de 24 de dezembro de 1938. Durante cerca de cinco décadas nessas instituições (entre idas e vidas, ficando ininterruptamente por uns 25 anos), Bispo imergiu na arte como forma de resistência à condenação da loucura instituída. ‘’A arte de Arthur Bispo do Rosário é um aspecto de lucidez, parte de uma necessidade’’, como disse o ator João Miguel, que interpretou o artista na peça ‘’O Bispo’’, 2001-04, em São Paulo.
Circunscrito por fissuras, o passado de Arthur Bispo é repleto de especulações, já que era negado por ele mesmo, ‘’Um dia, eu simplesmente apareci pelos braços da Virgem Maria’’, disse certa vez. Não se sabe precisamente o ano do seu nascimento, se foi 1909 ou 1911, mas a especulação majoritária mostra que Bispo necessitou alterar seu ano de nascimento para poder ingressar na Marinha, onde permaneceu, aproximadamente, dos 15 aos 23 anos.
Na Colônia Juliano Moreira, Bispo, por ter aprendido boxe no período em que foi marinheiro, estabeleceu uma cumplicidade com os funcionários da instituição, tornando-se ‘’xerife’’. Com poderes concedidos pela sua argúcia, ele repreendeu e controlou os pacientes que geraram alvoroço. Auxiliando nas tarefas cotidianas. Forjou-se de autoridade, e com isso conquistou o respeito dos funcionários e pacientes.
Quando Bispo tinha 72 anos, em 1982, o crítico de arte Frederico Moraes, organizador da exposição com artistas catalogadas pela sociedade como marginais, já que buscou expor a arte daqueles considerados ‘’inumanos’’, aglutinou o conjunto artístico de Rosário na exposição ‘’À Margem da Vida’’, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, sendo esta a primeira e única exposição com o aval do artista sergipano em vida.
A reinvenção perpassou sua obra, já que o desutilizado, descartado, o que servia só para o lixo, para Bispo, era poesia visual. Ele colocou expressão nos restos, resignificando-os nas criações surgidas de desconstruções; transfigurou objetos. Sem as convenções dos métodos das artes plásticas, Arthur se configurou, pelos eruditos das artes, como artista de vanguarda, por ser inovador de desutilidades, de forma emblemática. Ele foi o ‘’rebelde’’ dos objetos; compulsivo e obsessivo por eles, como uma forma de colecionismo, oferecendo o revesso do concebido originalmente. Bispo criou e recriou suas peças dentro do seu alojamento que mais parecia uma instalação, permeado por explosões divinas, já que se autoproclamou o messias, vendo na sua internação o reconhecimento disso. Alheio a toda estratificação da arte, sua poética era intuitiva. Sendo ‘’uma situação no mínimo instigante: a linguagem que o coloca num patamar de vanguarda é a mesma que está na base da realização artística primordial no processo civilizatório, que ocorre mediante a coleta de conchas, de penas de ave, de pedras e outros recursos rochosos.’’
Sua arte, para ele, não era classificável como arte, pois construiu universos simbólicos por obrigação divina; como salvação. Como poetizou Manoel de Barros:
‘’Arthur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra é ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados, objetos mumificados, fardões de Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus’’
A complexidade da arte de Rosário leva a discussões paradoxais sobre como defini-lo – louco ou gênio? -, configurando-se conceituações simplistas, que não abarcam a dialética. ‘’Os doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam sempre a dois metros do chão’’, como o artista poetizou. Uma marca inextinguível da arte é a distinção e/ou junção do enquadramento de louco e/ou gênio. O mundo artístico, por vezes, recheado dessas figuras instigantes, como o artista francês Antonin Artaud (1896-1948), que articulou o ‘’Teatro da Crueldade’’ – como representação da crueldade da sociedade, do ser humano, em seu âmago -, passando por vários manicômios, durante anos, ficando 9 anos ininterruptamente Para Sigmund Freud, ‘’O artista é aquele que mais se aproxima do inconsciente e dos loucos’’. E sobre o louco disse: ‘’A formação delirante que julgamos ser uma produção patológica é, na verdade, uma tentativa de cura, um processo de reconstrução’’.
A palavra: mar fluindo nas peças ornamentadas de Bispo e seu mundo reconstruído (ou desconstruído). Tecendo palavras cheias de sentido próprio, ou revivendo pela palavra bordada a experiência do seu primeiro surto (o de 1938) altivo em sua arte, como nos mantos, estandartes… Peças que se figuraram como livros. Existiu em Rosário a necessidade de registros. A peça ‘’434 – como é que devo fazer um muro’’ é um pedaço de madeira inventado de palavras; uma miniatura do mundo (era frequente, em Bispo, apequenar o mundo com restos).
O brado retumbante da obra de Bispo é uma miscelânea, na qual se pode identificar uma fenda axial em grande parte de sua arte; a religiosidade. As significações atribuídas a sua vida e, consequentemente, sua arte foram embasadas nesses arcanos da religião, como em sua peça mais famosa, o ‘’Manto da Apresentação’’, uma vestimenta ‘’sagrada’’ para ser envergada pelo artista no infalível Juízo Final. Essa peça é adornada (emaranhada), entre outros aspectos, de nomes bordados, os nomes – pessoas – que seriam salvas (bordou, com certa frequência, nomes em suas peças, como modo de salvar as pessoas que o reconheciam como Jesus). Podendo-se considerar essa peça a sublimação de sua vasta poética. A morte envolveu permanentemente Bispo, mas não de maneira histérica, atormentada, e sim como a via inevitável de conexão genuína com Deus, com toda a benevolência do artista que criou para Deus.
Arthur Bispo do Rosário morreu em 1989, e seu acervo é conservado no Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, localizado onde era a instituição Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.
http://lounge.obviousmag.org
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