Vladimir Safatle
Na semana passada, o colunista desta Folha Vinicius Torres Freire achou por bem tentar desqualificar minha defesa da cobrança do IPVA para embarcações de lazer e esporte, helicópteros e outras aeronaves privadas.
Aproveitando-se de uma imprecisão –que reconheço– a respeito do montante aproximado do valor arrecadado, ele termina por concluir que propostas dessa natureza seriam demagógicas e irrelevantes, pois desproporcionais a respeito da relação entre meios e fins. Melhor seria discutir o "crescimento do PIB", em vez de perder tempo a debater desigualdade econômica.
A meu ver, há uma compulsão de repetição que acomete o liberalismo brasileiro há muito, que consiste em mimetizar discursos pretensamente racionais para justificar os arcaísmos de nossa sociedade. Em vez de reconhecer o caráter insuportável de tais arcaísmos, eles preferem deixar isso de lado, prometendo encarar "coisas mais importantes".
Já no Império, o escritor José de Alencar, que se julgava expoente da elite pensante brasileira, criticava os que lutavam contra a escravidão por não perceberem a pretensa racionalidade econômica por trás de um fenômeno que, a seu ver, não deveria ser apenas julgado moralmente.
Chamar de "demagógica" a indignação por um motoboy pagar IPVA enquanto Eike Batista voa livremente em seu jato sem pagar nada é algo, a meu ver, similar.
Mas, bem, esperar que certas pessoas compreendam a justiça social como valor inegociável e, principalmente, fundamental para a coesão social talvez seja pedir demais. Esperar que essas mesmas pessoas entendam a desigualdade como um problema econômico maior por tirar o sentido do crescimento, já que impede à riqueza se transformar em bem socialmente partilhado, aí é quase esperar que elas andem de cabeça para baixo.
Por fim, lembro que o valor de R$ 8 bilhões que afirmei ser o montante do IPVA para helicópteros e jatos particulares, de fato, não estava correto. Peço desculpas aos leitores e agradeço ao colunista pela indicação. Dos meus muitos defeitos, nunca fez parte a vaidade de esconder erros.
Neste sentido, melhor trabalhar com o valor de R$ 5,8 bilhões, calculado pelo Sindifisco Nacional, resultante do IPVA sobre aviação executiva e embarcações de esporte e lazer, mesmo que possamos ampliar essa base ao agregar todas as 16.342 aeronaves privadas que nunca pagaram o imposto.
Agora, para alguns, R$ 5,8 bilhões dados de presente para os ricos deste país, em vez de usá-los para melhorar serviços públicos, é irrelevante. Para eles, US$ 1,25 bilhão para comprar a refinaria de Pasadena, nos EUA, talvez também o seja.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças.
Folha SP
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