sábado, 12 de abril de 2014

Negri: Deve haver uma maneira de reconhecer a derrota sem sermos derrotados


Do estudo de Espinosa à inspiração na poética de Leopardi, o projeto negriano encontra “o pleno do ser comum” entre o vazio inicial e o nada final

Giuseppe Cocco


É sempre difícil escrever em pouco espaço sobre um autor tão complexo. Ainda mais quando se trata de um amigo e parceiro. Contudo, o que vivenciamos no Brasil desde junho de 2013 torna essa tarefa mais desejável e até urgente. Não cabe aqui apresentar o conjunto do pensamento do Negri, desde sua participação na renovação heterodoxa do marxismo da década de 1960 até o período de seu diálogo com o pós-estruturalismo francês, passando pela autonomia operária da década de 1970, a prisão, o exílio, e novamente a prisão. Mas podemos tentar apresentar alguns pontos que nos parecem particularmente atuais na conjuntura brasileira dos desdobramentos do levante de junho de 2013, o que faremos em três momentos: (1) a persistência do perspectivismo revolucionário; (2) o método da tendência; (3) uma avaliação de algumas das teses de GlobAL, o livro que escrevemos juntos sobre o impacto da globalização (da constituição imperial) na América Latina.

Perspectivismo revolucionário

Em seu primeiro livro dedicado à filosofia de Espinosa, A anomalia selvagem, encontramos uma afirmação que talvez resuma o projeto negriano: “Deve haver uma maneira de reconhecer a derrota sem sermos derrotados”, ou seja, de “aceitar os limites da vontade sem negar a força produtiva do intelecto”. No mesmo período em que o escreveu, e apoiando-se na poética de Giacomo Leopardi, também afirma que “nós viemos do nada e cairemos no vazio. Entre o vazio e o nada, se encontra o pleno do ser comum”. Negri o faz de dentro de uma prisão de segurança máxima: a derrota e o vazio não eram metáforas abstratas nem exercícios literários, mas a condição material na qual se encontrava (e por um longo período).

Trata-se de uma afirmação cheia de implicações. Por um lado, a persistência do perspectivismo da revolução não renuncia à crítica do socialismo real e de sua relação carnal com o stalinismo. Na década de 1970, no período da militância na constelação de coletivos da “autonomia operária”, que chegará a seu auge com o formidável movimento de 1977, Negri radicaliza a crítica a toda forma de “autonomia do político”. Dentro da multiplicação difusa de novas formas de organização autônoma isso se concretizou na experimentação riquíssima de novas formas de horizontalidade. Depois da derrota e da prisão, esse mesmo esforço continuará com a escrita desse livro monumental que é Poder constituinte: a linha que liga Maquiavel, Espinosa e Marx desenha uma metafísica “maldita”, aquela de uma modernidade alternativa à modernidade de Descartes, Hobbes e Hegel.

Do mesmo jeito que Mario Tronti e os operaístas diziam que todo desenvolvimento tinha como fonte a luta operária, Negri passa a dizer que a modernidade que interessa é aquela constituída pelos acontecimentos revolucionários. Por outro lado, a inflexão espinosista lhe permite afirmar que a revolução não é mais um fim, um projeto abstrato, mas uma “tarefa prática; não uma escolha, mas uma necessidade”. “Nós vivenciamos — diz Negri — a época da revolução que já aconteceu.” Isto é: “A revolução é o signo que torna ético o operar”. Ser espinosista não é uma determinação, mas uma condição: não uma utopia, mas a prática da “desutopia”, a proposição realística do universo ético da revolução. Fica claro que na teoria negriana da revolução como poder constituinte não há nenhum voluntarismo e sequer o “otimismo” que alguma leitura preguiçosa e burocrática lhe atribui.


No auge dos movimentos operários da década de 1970, Negri radicalizou sua crítica a toda forma de "autonomia do político"

Tendência

O método marxista para Negri é, antes de mais nada, um método da tendência, ou seja, a procura pela antecipação das metamorfoses em andamento dos processos constitutivos de uma nova ciência, exatamente nos termos de Thomas Kuhn, teórico dos paradigmas científicos, que foi, nas suas próprias palavras, o “Che Guevara da Ciência. A reflexão filosófica é sempre articulada como método histórico, busca pela causalidade e periodização, por meio de uma práxis militante que deve ser considerada como sujeito e como paradigma (ou episteme, como diria Michel Foucault). Método e substância, forma e conteúdo funcionam em conjunto e juntos se transformam.

É com base nesse o método que o marxismo de Negri pôde se renovar como instrumento adequado para a apreensão da transformação do paradigma industrial e sua passagem do regime de acumulação fordista para aquele pós-industrial: cognitivo, financeiro e organizado em redes. O trabalho continua central, mas já é um trabalho totalmente outro: não mais o trabalho material organizado na separação — ditada pelo comando disciplinar do chão de fábrica — entre a mente e a mão, entre concepção (intelectual) e execução (manual), mas o trabalho imaterial, qualificado por suas dimensões lingüísticas, relacionais e afetivas. Esse trabalho mobiliza o tempo de vida como um todo na esfera da circulação, que mistura ao mesmo tempo produção e reprodução. Toda a vida (a vida no sentido amplo, a vida como população) é investida pelo capital e a produção se torna biopolítica, uma bioprodução: o que é mobilizado é o tempo de vida da população como um todo, e o espaço dessa mobilização são as metrópoles, ou seja, as diferentes configurações locais e globais das redes (as finanças são informação e poder, como a moeda é violência e relação).

Hoje, as novas fábricas são as universidades, os escritórios do setor terciário avançado, os museus, os shopping centers, os hospitais. As linhas de montagem são aquelas dos transportes (públicos e privados), as redes de logística e, obviamente, todo o sistema de comunicação, que há mais de três décadas é marcado pela convergência digital (da telefonia, da TV e da computação). A produção acontece assim na circulação, entre as redes e as ruas. “A revolução já aconteceu”, não há mais nenhuma transição, o socialismo acabou: o comum não é mais um fim, mas o ponto de partida sem o qual não há nem produção nem reprodução. Entre as redes e as ruas, a valorização acontece nos clinamens, os desvios que atravessam a chuva dos átomos da filosofia de Epicuro: as singularidades cooperam entre si e produzem pelo e no amor dos encontros. A “chuva dos átomos singulares” só se faz como multidão no desvio, na relação, no encontro, como dizia Althusser. Curiosamente, no entanto, como já escreveu Negri num livrinho militante de 1978 e o repetiu numa de suas cartas sobre “arte e multidão”, por trás de cada átomo se encontra um policial. Não há, portanto, nenhum determinismo positivo na passagem.

O fazer-se da multidão implica a luta política, a renovação constante do processo constituinte, da relação democrática entre fonte e resultado. Dizer que a revolução já ocorreu significa dizer que, assim como a valorização do capital acontece entre as redes e as ruas da terceirização e da empregabilidade, as lutas também se organizam entre as redes e as ruas. É nas metrópoles que a multidão do trabalho luta: sobre o preço e a qualidade dos transportes, ao mesmo tempo em que clama por democracia, reunindo no processo constituinte as reivindicações dos professores ou aquelas dos metroviários, ou, ainda, organizando um novo tipo de greve selvagem que, com seus rolezinhos e rolés, conseguiu fechar vários shopping centers de São Paulo e do Rio de Janeiro, da mesma maneira que as greves articuladas fechavam as fábricas.



A revolução não é mais um fim, um projeto abstrato, mas uma necessidade: "A revolução é o signo que torna ético o operar"

Avaliações

Quando escrevemos GlobAL, um livro sobre a America Latina na era do Império e do biopoder, apreendemos as jovens experiências dos novos governos “progressistas” de uma maneira que fugia das críticas idealistas (esquerdistas), sem contudo cair na apologia do pragmatismo oportunista (do próprio PT). O esquerdismo acusava o governo do PT (Lula) de ter abandonado toda perspectiva de mudança da política econômica; o pragmatismo dentro do partido e do governo transformava esse abandono em um empirismo oportunista, entre a continuidade das políticas neoliberais e a procura por um novo desenvolvimentismo. Nós dizíamos que esse impasse tinha outro conteúdo, ou seja, novas relações de causalidade, e, nesse sentido, o neoliberalismo — por nefasto que fosse e seja — é mais uma consequência do que uma causa. Dizíamos que é a transformação material do capitalismo, em sua passagem para um regime de acumulação pós-industrial, cognitivo, imaterial, que sustenta as políticas neoliberais e não vice-versa.

Pensar que é possível mudar os rumos a partir do governo significa sobrevalorizar o papel do governo e do Estado e subavaliar o peso das dinâmicas materiais (estruturais) e, com isso, as lutas. O que se tratava de apreender não era a falta de vontade do PT e do governo Lula de aplicar um novo modelo, mas a ausência de um modelo alternativo para fazer desse vazio um pleno de inovação, ou seja, aprofundar a crise do neoliberalismo sem com isso voltar às ilusões neo-desenvolvimentistas. Essa fraqueza, dizíamos, não dependia (apenas) dos compromissos e oportunismos que o PT tinha tido que aceitar ou promover, mas dos enigmas das lutas, das mobilizações. Por isso, nem a esquerda “nominalmente” mais radical (como o PSOL) escapava do impasse. O que nos interessava nas políticas de distribuição de renda (pelo Bolsa Família), de democratização do acesso (ao crédito e ao ensino superior) e de combate ao racismo (as cotas raciais) não era a pureza de um novo projeto (e sua improvável “política de Estado”), mas o quanto elas eram atravessadas por processos de mobilização e de produção de subjetividade. O governo e o PT — por limites teóricos e sobretudo pela excessiva burocratização — acabaram enxergando apenas os efeitos eleitorais e economicamente main stream (a emergência da chamada “nova classe média”) dessas transformações.

Assim, já antes de junho podíamos ver, na greve dos professores do Reuni em 2012, nas lutas dos índios contra Belo Monte, nas insurreições dos operários de Jirau, na resistência dos favelados contra as remoções, a ocorrência de novos processos de subjetivação, uma nova produção de subjetividade. Ao passo que a esquerda só a via como resultado dialético do desenvolvimento do capital (oportunisticamente positivo para o PT e ideologicamente negativo para a esquerda de oposição), as mobilizações de junho de 2013 nos mostram a produção de subjetividade como processo constituinte, radicalmente autônomo, entre as redes e as ruas: o único terreno capaz de resolver o enigma do crescimento pela transmutação de todos os valores. Hoje, o perspectivismo revolucionário é aquele da multidão do trabalho imaterial, que se apresenta como poder constituinte e produção de subjetividade, ou seja, de outros valores: no cerne desse novo horizonte de paz, a construção do direito dos pobres de participar da política.

Giuseppe Cocco

é Professor da Escola de Serviço Social da UFRJ. Escreveu, com Antonio Negri, GlobAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Record)


Revista Cult

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