Wander Lourenço*
Por lidar com o espólio de João Guimarães Rosa há algumas décadas, mais precisamente desde o início da graduação em Letras nos fins da década de oitenta e até a aprovação da pesquisa de pós-doutoramento pelo Departamento de Estudos Comparatistas da Universidade clássica de Lisboa, em 2014, creio que já posso habilitar-me a conduzir o leitor pelo Grande sertão: veredas e outras estórias do autor nascido em Cordisburgo, em 1908. Por falar em Grande sertão, com exatidão afirma-se que a tenebrosa obra literária seja a maior responsável pelo afastamento dos leitores da obra roseana, de maneira que, por esta razão, aconselho que se deva lê-lo apenas após se passar por uma espécie de ritual de iniciação através dos registros de menor fôlego como, por exemplo, Desenredo e A terceira margem do rio.
Ao embrenhar-se por um território movediço localizado ao norte das Minas Gerais, o leitor-aprendiz se pautará por recepcionar elementos de concepção artística, que se abeiram da mais autêntica criação humana de cunho ficcional, por intermédio de um manancial de fabulações, neologismos e alusões de metalinguagem, que se constrói a partir do ingresso ao magnífico espaço de invenção criado por Guimarães Rosa. A título de curiosidade, sobre o registro A terceira margem do rio, ao ser indagado por Antônio Callado como concebera a saga de um homem que, sem justificativa, solitariamente, se resolve por habitar uma canoa construída para tal intento, Rosa respondera que não sabia o que dizer, mas que, ao término da escrita, resignou-se a rezar...
Depois de interpretar as duas primeiras sugestões, procure avançar na leitura dos contos Fita verde no cabelo, Sôroco, sua mãe e sua filha, Famigerado e Substância, para estar apto a enfrentar O burrinho pedrês, A volta do marido pródigo, Sarapalha, Duelo e, sobretudo, A hora e a vez de Augusto Matraga, obras literárias pertencentes ao seu livro de estreia intitulado Sagarana (1946). Neste período, o leitor já se portará com alguma intimidade com o mágico universo de João Rosa, de modo a prosseguir a travessia com Corpo de baile que, com a exceção da narrativa que retrata o mais afamado personagem extraído do cenário interiorano dos Gerais, Manuelzão, aborda o percurso do menino Miguilim, desde a infância às agruras da vida adulta. Cabe ressaltar que se deve descartar a introdução pela experiência cinematográfica, porque assim como ocorrera com o próprio Grande sertão: veredas, Noites do sertão, A terceira margem do rio e Primeiras estórias, a primeira parte do livro Corpo de baile foi muito mal adaptado com o título de Mutum.
Em retorno ao Grande sertão, obra máxima da prosa de ficção pátria juntamente com Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, obras capitais assinadas por Machado de Assis, o leitor se autorizará a percorrer o monólogo narrado pelo jagunço-orador Riobaldo-Tatarana, para início de conversa sem se ater a observar as perspectivas autorais em diálogo com a tradição ficcional desde A Ilíada e a Odisseia, de Homero a Fausto, de Goethe, e Doutor Fausto, de Thomas Mann, em diálogo com A divina comédia, de Dante Alighiere, Guerra e paz, de Tolstói, e Em busca do tempo perdido, de Proust. Destarte, a arquitetura da narração exigirá um preparo intelectual que abarca a história da ficção ocidental, capitaneada por James Joyce, Kafka, Virgínia Woolf e Faulkner, em consonância com o desbravamento d’Os sertões, de Euclides da Cunha; e Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freire.
Enfim, ainda que indispensáveis à compreensão do Grande sertão: veredas, o leitor que não se aventurar ao discurso barroquizante do fazendeiro-narrador à luz de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, até poderá abrir mão do prévio conhecimento da trajetória de uma literatura universal, mesmo ao risco de não desfrutar da essência de Guimarães Rosa. Para isto, ao menos precisará se concentrar no fascínio de um mestre revolucionário que reinventa a tradição da narrativa sob a égide da geografia mineira, às margens de um gesto criador da mais significativa amplitude humana, a se sublinhar pela simplicidade de uma frase-refrão, que resume a travessia do jagunço-narrador Riobaldo, encurralado pelo pacto com o Demo e a paixão proibida por Diadorim: “Viver é negócio perigoso”.
*Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF e pós-doutorando da Universidade de Lisboa, é professor universitário e autor de diversos livros, entre os quais, ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - Wanderlourenco@uol.com.br
Jornal do Brasil
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