Remoções como estão sendo feitas parecem 'apartheid', diz especialista
Kzure-Cerquera alerta que cidade vem negando história e que intervenções urbanísticas são amadoras
Cláudia Freitas
As questões que envolvem as remoções nas comunidades do Rio de Janeiro pelo poder público municipal, que também estiveram em pauta nesta sexta-feira (11) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), são avaliadas pelo arquiteto e urbanista Humberto Kzure-Cerquera, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como partes de um processo maior de delimitação de territórios, que há séculos vem definindo as fronteiras em todo o mundo às custas de conflitos que deixam marcas profundas e irreparáveis. Um dos exemplos citado por ele é o próprio surgimento do espaço-favela, que, por sua vez, deu margem para a segregação do pobre na sociedade e aos processos irregulares de ocupação urbana.
Kzure-Cerquera ressalta a importância do programa Morar Carioca para a melhoria e integração das comunidades do Rio de Janeiro e a responsabilidade da prefeitura na manutenção desse processo. O especialista aponta as metas necessárias para um projeto habitacional na cidade, ressaltando quando as remoções são inevitáveis e como elas devem ser aplicadas pelo poder público, para não se transformarem em objeto de marginalização das comunidades carentes. Para ele, as remoções devem ser usadas como mecanismos de proteção da vida humana, mas elas estão acontecendo com uma carga grande de preconceitos sobre os espaços vulneráveis e pauperizados, além de atender interesses políticos e econômicos. "E isso é uma forma de 'apartheid'", considera o especialista.
E quando o assunto é identidade histórica do Rio de Janeiro, Kzure-Cerquera faz um grave alerta, de que a cidade vem negando o seu passado e paisagem cultural, dando espaço à arquiteturas medíocres associadas às intervenções urbanísticas "amadoras" e "impróprias ao tecido urbano". Veja na íntegra a entrevista que Humberto Kzure-Cerquera concedeu ao Jornal do Brasil.
Jornal do Brasil - Qual a sua a avaliação sobre o projeto de habitação Morar Carioca?
Kzure-Cerquera - O biólogo norte-americano Jared Diamond, autor do aclamado livro Armas, germes e aço: os destinos das sociedades modernas, vencedor do Prêmio Pulitzer, afirmou nesses escritos de maneira convincente que “foi a história das interações entre os povos distintos que deu forma ao mundo moderno, por meio de conquistas, epidemias e genocídios”. Historicamente, esses fatos remetem à própria história de ocupação e delimitação de inúmeros territórios, que definiu fronteiras a partir de confrontos que para Diamond “produziram consequências que ainda não desapareceram depois de muitos séculos, e que continuam ativas em algumas das mais problemáticas áreas do mundo atual” vistos, por exemplo, na formação do espaço-favela.
Secularmente, os territórios favelizados estão associados à disputa e a apropriação desigual da terra, resultado das próprias disfunções urbanas que limitaram as oportunidades para os mais pobres. Consequentemente, esses processos de segregação física e espacial favoreceram o surgimento de tecidos urbanos excluídos e desequilibrados sob a perspectiva social, cultural, econômica e ambiental, e onde estão impressos a informalidade e irregularidade do uso e ocupação do solo.
No Rio de Janeiro o déficit de bens e serviços básicos nas periferias e nos assentamentos precários revela a urgência de investimentos da esfera pública em alternativas para a urbanização desses espaços, de modo a integrá-los plenamente à cidade. Em meados da década de 1990, o programa Favela-Bairro surgiu como uma alternativa para diminuir os abismos sociais, mas os avanços à época se restringiram, majoritariamente, à implantação de infraestrutura. Hoje, porém, o Programa Morar Carioca apresentou-se como uma ação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro para ampliar as políticas de inclusão dos assentamentos precários ao tecido urbano legalizado, inclusive no que tange à melhoria habitacional. Ressalte-se, ainda, que o Morar Carioca definiu como meta a urbanização das favelas da cidade até 2020, para beneficiar mais de um milhão de pessoas que vivem em áreas de risco físico e social.
A proposta do Morar Carioca criou expectativas para arquitetos, urbanistas e outros profissionais das áreas social, ambiental e da engenharia em torno dos avanços na questão de integração plena das comunidades informais e melhorias habitacionais. Espera-se, com isso, de que o Programa mantenha a essência para o qual foi criado. Isso vai exigir da Prefeitura uma tomada de decisão quanto à perspectiva de integrar as favelas à cidade.
Jornal do Brasil - Em qual região do Rio esse projeto pode comprometer mais na identidade urbana/social e memória?
Kzure-Cerquera - As favelas cariocas podem ser compreendidas como verdadeiros recortes espaciais da desigualdade. No entanto, é preciso destacar que esses territórios construíram ao longo dos anos paisagens particulares repletas de identidade e memória particulares, em meio à árdua luta individual e coletiva pela sobrevivência. Sob essa perspectiva, a elaboração de planos e projetos de urbanização em áreas de favelas obriga, necessariamente, compreender a dinâmica sociocultural heterogênea, complexa e estratificada dessas aglomerações urbanas, que revelam as faces da exclusão social, da insegurança e da violência. Contudo, o “novo olhar” sobre esses assentamentos precários da cidade implica no reconhecimento das fronteiras materiais e imateriais como produto intrínseco à cultura urbana, em especial do Rio de Janeiro onde as favelas fazem parte da paisagem da cidade. Interessa, pois, é entender que o espaço-favela tem como desafio a compreensão dos diferentes marcos temporais pela disputa e pela apropriação territorial que, na origem, está diretamente relacionada à má distribuição de terras e de renda, fruto de séculos de domínio das elites políticas e econômicas que sempre alijaram parte expressiva da população dos bens essenciais para reprodução da vida. Neste caso, a consolidação dessas paisagens ocorrerá a partir das melhorias habitacionais, do transporte público, da provisão de equipamentos de cultura e educação e infraestrutura, por exemplo, como parte da urbanização a cargo das políticas públicas municipais.
As favelas cariocas podem ser compreendidas como verdadeiros recortes espaciais da desigualdade
A proliferação de áreas urbanas informais e pauperizadas, que também induzem à formação de “deseconomias” urbanas, intensificam os processos de formação de redes complexas de distribuição territorial da população pobre que redesenha, grosso modo, os baixos níveis de desenvolvimento humano, maneira pela qual a informalidade, tanto econômica quanto físico-espacial, é um dos principais problemas a ser enfrentado. Resta saber, se as mobilizações sociais dos moradores desses assentamentos precários, que ganharam contornos expressivos em prol da urbanização à época do Favela-Bairro, não foram desarticuladas ou desmanteladas pelas representações políticas institucionalizadas nos anos subsequentes. Sabem-se, porém, que a mobilização e a participação dos moradores no processo de elaboração dos projetos de intervenção físico-espacial são de fundamental importância para lograr bons resultados e, ao mesmo tempo, para que as populações beneficiadas ampliem a noção de pertencimento ao seu local de moradia. Mas, nem sempre as condições e as circunstâncias permitem que em alguns lugares do Rio de Janeiro, por questões de segurança não resolvidas ou interesses políticos e econômicos particulares, os projetos de urbanização sejam desenvolvidos e implementados com rapidez e eficácia.
O que se espera do Programa Morar Carioca é a perspectiva de integrar as favelas à cidade, garantir os aspectos de identidade e relações de vizinhança, atender as expectativas dos moradores por equipamentos de uso coletivo, áreas de esportes e lazer qualificadas e, principalmente, a provisão de novas moradias para os habitantes – que são vários – em áreas de risco. Quanto a isso, é preciso sublinhar que não se trata de remoções, mas de relocações necessárias para os moradores sujeitos a sinistros, preferencialmente no mesmo local ou entorno imediato, além da garantia da regularização fundiária dos imóveis para os assentados.
Jornal do Brasil - As construções que estão sendo erguidas pelas empreiteiras contratadas pelo governo nas áreas de remoção estão consoantes com o visual do resto da cidade e preservam a sua história?
Kzure-Cerquera - Inúmeros estudos das ciências sociais buscam incessantemente conceituar a cidade sob a perspectiva material, relacional e representacional, amparados nos atributos conferidos ao tempo e ao espaço. Neste sentido, a urbe é uma construção humana, inacabada e de caráter heterogêneo e contraditório. Sabe-se, porém, que na cidade se configuram e se definem as relações socioespaciais materializadas por intermédio de um tempo histórico-político e cultural. Sublinha-se, porém, que os elementos da forma material da cidade, tal qual se apresentam, vistos frequentemente nas distintas paisagens urbanas, não eximem a urbe de produzir identificações, alianças e conflitos, que se transformam e expõem partes de si mesma. Não se encerram, com isso, em um corpo totalitário. Afinal, os significados e significantes contidos nos modos de vida urbana estão inscritos nos valores identitários e suas particulares representações culturais, como bem destacaram os escritos de Henri Lefebvre, Milton Santos e outros.
Vale lembrar que do final do século XIX aos dias atuais, a compreensão sobre a cidade se tornou cada vez mais complexa. A paisagem urbana adquiriu novos contornos e intensificou-se seu sistema de representações – políticas, econômicas, socioculturais, ambientais. Christine Boyer, que se dedicas aos estudos urbanos contemporâneos, descreve uma série de modelos visuais e mentais pela qual o ambiente urbano foi identificado, figurado e planejado. Segundo ela, podem ser distinguidos três ‘mapas’ principais: a cidade como obra de arte (cidade tradicional); a cidade como panorama (cidade moderna); e a cidade como espetáculo (cidade contemporânea e global), para a qual o filósofo francês Guy Debord já alertava em 1968, ao escrever A Sociedade do espetáculo, sobre “a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo” como aspectos da sociedade modernizada.
A cidade contemporânea, por sua vez, molda e concentra fenômenos sócio-espaciais investidos de imponderabilidades, mutações que operam territorialmente e incertezas que instigam o pensamento científico. Para muitos analistas do mundo global, a cidade tornou-se a base fértil para o espetáculo do consumo, em que a admissão de um estágio de inadequação espacial obriga a otimizá-la em uma perspectiva de futuro que nega suas matrizes do passado. E torna também espetáculo a qualidade ambiental urbana, contrariando, segundo os estudos históricos de Françoise Choay, as preocupações propaladas pelos sanitaristas (ou pré-urbanistas) das últimas décadas do século XIX, quando já se expressava uma concepção de cidade saudável.
Nesse panorama, o Rio de Janeiro de hoje vem assustadoramente negando seu passado e sua paisagem cultural para dar lugar a arquiteturas medíocres e de gosto duvidoso em associação com intervenções urbanísticas amadoras e, às vezes, impróprias ao tecido urbano. Somam-se a isso a má qualidade da construção civil que, em pleno desenvolvimento tecnológico, retrocedeu e priorizou quantidade em detrimento da qualidade.
Jornal do Brasil - Qual a sua avaliação das remoções que estão acontecendo nas comunidades e das formas das quais elas estão sendo feitas pelo governo?
Kzure-Cerquera - Primeiramente, é preciso compreender que em projetos de urbanização muitas vezes faz-se necessário a relocação de famílias que se encontram assentadas em áreas de risco. Trata-se, portanto, de mecanismos utilizados para proteção da vida humana. As remoções, por sua vez, acontecem com uma carga expressiva de preconceitos sobre os espaços vulneráveis e pauperizados, para atender interesses políticos e econômicos. Historicamente, o Rio de Janeiro pratica a remoção como parte de um processo opressor de “higienização” que afasta os mais pobres dos principais espaços econômicos da cidade, para dar lugar aos investimentos imobiliários dos que detêm a hegemonia política e econômica. E isso é uma forma de “apartheid”! Como então construir uma sociedade inclusiva, se as práticas de apropriação territorial ainda são movidas pela arrogância e a intolerância? Os processos atuais de urbanização, sob a perspectiva da cidade real, precisam admitir as fragmentações e articulações socioespaciais acumuladas no tempo que representam a tônica contemporânea, onde são definidas as novas redes de produção e comunicação. Igualmente, identificam-se novos modos de vida urbana, que abrangem contradições entre o maior equilíbrio ambiental e a equidade social.
Jornal do Brasil Essas novas moradias atendem à população de forma eficiente, levando em conta os hábitos do carioca? E quanto à paisagem, elas combinam com a "estética" da cidade ou podem produzir um novo modelo de moradia?
Kzure-Cerquera - Não! Não possuem qualidade no design e nem nos aspectos de conforto ambiental. E a paisagem da cidade torna-se cada vez descaracterizada, para não dizer “feia”.
Jornal do Brasil - No Morro da Providência e na Zona Portuária, por exemplo, como o senhor interpreta essas intervenções com relação à história cultural e memória do Rio de Janeiro?
Kzure-Cerquera - As discussões contemporâneas em torno dos aspectos geográficos e socioculturais que redirecionam as análises e a compreensão da “nova face” das favelas cariocas e que, ao mesmo tempo, induzem novos procedimentos técnicos para a urbanização desses assentamentos. Quanto a essa questão, parte-se do pressuposto de que esses ambientes, cujos resultados decorreram da ação humana em encontrar alternativas de moradia sobre o espaço natural – também é o caso do Morro da Providência –, e às vezes ambientalmente fragilizado, têm hoje uma paisagem urbana e social que fixou bens materiais e imateriais. Neste sentido, a paisagem da favela carioca está relacionada ao permanente processo de construção e transformação físico-espacial que move as relações entre objeto e sujeito. Com isso, essa paisagem, como sublinhava Milton Santos, pode ser entendida como reflexo e condicionante das práticas sociais na formação das territorialidades e, assim, preservar os valores identitários construídos historicamente.
Posto isso, entende-se que o Morro da Providência, bem como outras favelas do Rio de Janeiro, construiu espaços de sociabilidade que permitem identificar uma paisagem complexa e multifacetada repleta de fragmentos e contradições. Mas, consolidadas por sua própria memória. Identifica-se, pois, as formas visíveis desse universo particular a partir dos elementos que o compõem e o estruturam espacialmente, em uma articulação entre unidade, coerência ou concepção racional do meio ambiente e na ideia de intervenção humana – controle das forças que (re) modelam o espaço físico e social, de acordo com o que escreveu Denis Cosgrove em seus estudos geográficos.
Em uma perspectiva das abordagens culturais, convém lembrar que a paisagem apresenta uma dimensão histórica e uma dimensão espacial, visto que sua materialização se dá sobre a ocupação de parcelas da superfície terrestre – seja em áreas legalizadas ou informais como ocorre nas favelas. Mas, nos assentamentos precários também é possível identificar uma paisagem “portadora de significados, expressando valores, crenças, mitos e utopias: tem assim uma dimensão simbólica” como sublinham os geógrafos Roberto Lobato Correa e Zeny Rosendhal, capaz de localizar, aproximar e traduzir as relações do indivíduo com os espaços urbanos de domínio institucionalizado pelas esferas políticas, jurídicas e econômicas.
Ricos e pobres ocuparam irregularmente várias encostas do Rio de Janeiro e, com isso, redefiniram uma nova paisagem urbana
Nas favelas, entre fragmentações e colisões territoriais, há também o caráter de espaço percebido, que o articula à esfera das sensações, que permitem compreender os vínculos emocionais que ligam as pessoas ao lugar onde vivem. Para tanto, faz-se mister considerar os fatos sociais em uma perspectiva pessoal, individual que o Morro da Providência também construiu ao longo de sua história.
Jornal do Brasil - Como resolver o problema de deslizamentos em áreas de risco de uma forma sem interferir drasticamente na paisagem do Rio?
Kzure-Cerquera - Ricos e pobres ocuparam irregularmente várias encostas do Rio de Janeiro e, com isso, redefiniram uma nova paisagem urbana. Assim, os problemas dos deslizamentos somente poderão ser resolvidos tecnicamente. E, com isso, infelizmente as alterações na paisagem são inevitáveis. Mas, podem ser novas expressões ambientais qualificadas, inclusive esteticamente.
Jornal do Brasil - Publicamos uma reportagem, no ano passado, sobre remoções em comunidades e as suas consequências na saúde do carioca. E quais são as consequências urbanísticas desse projeto do governo para a cidade?
Kzure-Cerquera - Um dos desafios para os Planejadores Urbanos em pensar e propor projetos de intervenção urbana nos dias de hoje implica em ater-se ao conjunto de proposições conectadas à dinâmica plural da cidade contemporânea. A sociedade torna-se cada vez mais heterogênea e, por isso mesmo, cabe destacar as redes de produção que incorporam as novas tecnologias e pressupõem a definição de metas que garantam a sustentabilidade socioeconômica, ambiental e cultural numa determinada intervenção. Isto implica afirmar, a necessidade dos projetos urbanos contemplarem mecanismos capazes de possibilitar à ampliação das redes de produção e infraestrutura, como pressuposto para a modernização estrutural e, consequentemente, a inclusão social.
Em um projeto de urbanização, complexo e contraditório, tem-se por um lado à necessidade da compreensão físico-espacial, que implica no atendimento às demandas por serviços e infraestrutura, e, por outro, a identificação dos diferentes interesses individuais e coletivos internos e externos a uma determinada comunidade. Significa dizer, que o trabalho dos técnicos de planejamento urbano não se resume apenas em solucionar os problemas previamente diagnosticados, mas fazer a mediação entre a esfera pública e a população envolvida. Neste sentido, é preciso incorporar as dimensões socioculturais, política, econômica, jurídica e ambiental que estão postas no ambiente construído, como parte integrante das bases de projeto que torna a cidade saudável.
Jornal do Brasil
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