Barbie: medidas inatingíveis |
Mary del Priore
Como médicos, especialistas e jornalistas vêm tratando das transformações do corpo feminino em nossa sociedade? Realizada em setembro de 1996, uma pesquisa Datafolha, cujo título era Beleza a Qualquer Custo, revelava que 50% das mulheres não estavam satisfeitas com seu peso e 55% gostariam de fazer uma cirurgia plástica. O dado contrastante é que 61% delas não praticava exercícios físicos, preferindo cuidar da beleza na base da compra de cosméticos. Barrigas perfeitas, pernas rijas, seios altos, enfim, se possível, “tudo no lugar”… graças a produtos milagrosos! A jornalista Alessandra Blanco informa, ainda, que, de todas as entrevistadas, apenas 2% disseram não se importar e não comprar produtos de beleza. As demais, segundo ela, compram, e muito: 44% das mulheres gastavam mais de 20% do salário com esse tipo de produto. E esse número não fica apenas nas camadas sociais mais elevadas, informa-nos a jornalista. Ao contrário, entre mulheres cujos rendimentos iam até dez salários-mínimos, 54% diziam gastar mais de 20% do salário com cosméticos.
As partes menos apreciadas do corpo feminino, e, portanto, sujeitas à mudança graças ao bisturi seriam barriga (16%), seios (12%) e rosto (9%). Por que isso tudo? “Medo de envelhecer”, confessa uma entrevistada. “A hora que cair tudo, eu subo. Não tenho o menor pudor”, afirma conhecida atriz. Segundo a jornalista, a eterna reclamação masculina de que as mulheres nunca estão satisfeitas com a própria aparência também parece ser verdade. Segundo a Datafolha, 64% gostariam de mudar alguma coisa no cabelo, 50% não estão satisfeitas com o peso atual e 20% gostariam de perder mais de dez quilos. Emagrecer, sim. Fazer ginástica, como propunham os higienistas dos anos 1920, não! A preocupação com a beleza suplanta a com a saúde.
Microcâmaras que entram no corpo, cânulas que sugam gentilmente camadas de gordura entre peles e músculos, transferência de gordura de uma região do corpo para outra, substâncias sintéticas que funcionam como massa de modelar – tudo isso permite à mulher “fazer-se mais bela”. Na ânsia de escapar às transformações que chegam com a idade, ou à fantasia de ter o nariz da Cindy Crawford, ela é capaz de tudo. Demi Moore fez onze operações para obter um corpo escultural e Jane Fonda, apesar de propalar as receitas de um corpo feliz por seu método de ginástica, retirou costelas inferiores para afinar a cintura.
A maior rede nacional de televisão apresentou em horário nobre uma moça de vinte anos que havia começado, ainda adolescente, a se submeter à “prática estética” de cirurgias, já contando com duas dezenas delas. Se ao público o corpo e o rosto não pareciam ter sofrido grandes mudanças, ela, por outro lado, afirmava sentir-se muito mais feliz!
Segundo pesquisa realizada pela Globo Ciência em 1996, 6 mil profissionais brasileiros que atuavam na área realizaram nada menos de 150 mil operações estéticas (o maior índice mundial em relação à população) e o dobro de reparadoras, conforme as estimativas. A previsão para o final de 2000 era de 350 mil. Em 2010, passamos a ser o segundo país em cirurgias perdendo apenas para os Estados Unidos: 629 mil. Em 2013, foram 905.124 mil.O caso parece sinalizar a existência de uma “epidemia nacional de vaidade”, dizem os jornalistas responsáveis pela matéria. Ivo Pitanguy negou o fato: “Não há um culto em relação à cirurgia estética. O que existe é a valorização do corpo, da boa forma física. Nos últimos anos, houve uma maior tendência em se cultuar a imagem. As pessoas procuram fazer ginástica, preferem uma alimentação sadia, com o objetivo de ficarem bem consigo mesmas. E também procuram os caminhos da cirurgia plástica para isso”.
Alimentação sadia? Tudo indica que esse é um erro da avaliação de Pitanguy. A revista Época publicou avassaladora matéria cujo título é “O triunfo do hambúrguer”. O que deveria ser uma preferência juvenil, ou seja, cachorro-quente, batata frita, sorvetes e chocolates, é hoje o cardápio de 30% de integrantes das classes A e B. A obesidade ameaça, adverte a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição. As transformações na alimentação são certamente responsáveis por mudanças na saúde e na forma física. Consumimos, cada vez mais, uma alimentação calórica, responsável por terríveis quadros de hipertensão, diabetes e colesterol alto, segundo adverte o diretor da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Marcos Vinícius Malaquias.
No campo da beleza, a alimentação também faz suas vítimas. Em 2012, realizaram-se cerca de 1.788 cirurgias plásticas por dia, das quais quase 30% são lipoaspirações, segundo o Ibope. Encontros como as Jornadas Cariocas de Cirurgia Plástica colocam em cena prós e contras dos diferentes tipos de cirurgia estética. Há polêmicas sobre a eficácia dos implantes de silicone nas nádegas, por exemplo, que, segundo alguns cirurgiões, não funciona nos glúteos volumosos da mulher brasileira: “A cirurgia só é indicada para mulheres totalmente sem nádegas ou de nádegas caídas ou flácidas, mas os resultados não têm sido satisfatórios. Ainda há riscos de compressão dos nervos que vão para as pernas”, adverte o cirurgião plástico Paulo Roberto Leal . Já seu colega José Aurino Cavalcanti Saraiva afirma ser essa uma “cirurgia campeã”. “Do ano passado para cá”, comenta, “aumentou bastante a procura. Hoje se equipara à procura por implantes de mama”. Sua cliente Isabel, empresária, garante: “Fiz e foi ótimo. Nos 15 primeiros dias senti um pouco de incômodo e o bumbum pesado e, durante dias precisei dormir de bruços. Mas já no sexto dia viajei de carro durante três horas, sem problemas!”.
Outra questão: a lipoaspiração, que faz vinte anos. A intervenção aumentou 129% nos últimos quatro anos. Um dos temas mais debatidos é a quantidade de gordura que deve ser retirada de cada paciente. Alguns médicos criticam colegas que fazem megalipoaspirações, retirando de dez a quinze litros de gordura do paciente. A clínica Santé, em São Paulo, faz rotina dessas cirurgias e está sendo intimada pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica a dar explicações. Não à toa, multiplicam-se os casos como o de Roberta Woo, leitora da revista Plástica e Você, que pergunta à coluna do doutor Ewaldo Bolívar: “Eu fiz lipoaspiração na barriga há um ano e ficou cheia de ondas. Dá para consertar isso?”.
O cirurgião plástico Farid Hakme aponta os hábitos alimentares das brasileiras como responsáveis pelo aumento da demanda de cirurgias e lipoaspirações ou lipoesculturas. Some-se a isso, explica o médico, a miscigenação, característica de nossa cultura, capaz de somar um nariz levantino com um posterior africano. “A combinação nem sempre harmoniosa dos traços promove desproporcionalidades”, que podem ser eliminadas graças à “multiplástica”, ou seja, uma cirurgia que corrige, ao mesmo tempo, diversas imperfeições anatômicas, paga em suaves prestações. Hakme é dos poucos a dizer com todas as letras que beleza não pode ser um “apanágio dos endinheirados”. De fato. As revistas femininas e a mídia em geral, ao referirem-se às benesses da plástica, fazem-no sempre tendo como interlocutoras as mulheres que pertencem às camadas altas da população. É como se, na outra ponta, feiura e pobreza se misturassem num rótulo único. O efeito não pode ser mais perverso. Além de todas as clivagens econômicas e sociais que existem no Brasil, haveria essa outra: a da estética.
Entrevistada, a fotógrafa Isabel Pedrosa deu sua versão das dificuldades encontradas pelos bons profissionais ao ter que clicar uma siliconada para revistas tipo Playboy ou outras do gênero:
“Será que o leitor percebe que o que está vendo, admirando em fotos de mulher nua em revistas como a Playboy, não é o que o fotógrafo vê quando está diante daquela modelo? Será que dá para perceber que tudo é uma grande ilusão? Que não há mulher perfeita no mundo? Alguns fotógrafos contam que muitas vezes, quando olham a mulher nua a ser fotografada, pensam: “Ih! Agora dancei mesmo!”. Tentam compensar todos os “defeitos” daquele corpo com truques de iluminação, foques e desfoques de lentes, filtros e toda a tecnologia ao alcance. Mas o milagre efetivamente ocorre no computador. Onde todas as “falhas” são minuciosamente corrigidas. Não há uma foto sequer, publicada nesse tipo de revista, que não tenha sido retocada, aliás, brilhantemente na maioria das vezes. Não importa se a mulher é uma garota, uma balzaquiana ou uma cinquentona: sempre há alguma “imperfeição” que é apagada. Me pergunto como essas mulheres, (e seus maridos / namorados/amantes) depois de se verem transformadas pelos programas do computador, se sentem? Ficará a frustração de não serem daquele jeito [...] A pergunta é: até que ponto as revistas vendem a fotografia de mulher nua como algo real, verídico. Até que ponto os leitores compram a revista pensando em que aquilo que estão vendo não tem nenhuma interferência humana (outra que não a dos médicos, bem entendido!). E até que ponto essas imagens de perfeição impossível não interfere nos relacionamentos homem/mulher. E não minam a autoestima feminina?”
Alimentação equivocada, falta de exercício e mestiçagens biológicas somam-se a outro dado da pós-modernidade para consagrar a obsessão pelo corpo perfeito: a magreza. As carnudas estrelas dos anos 1950, como Marilyn Monroe, Sophia Loren ou Anita Ekberg, foram substituídas, nos 1960, por criaturas esquálidas. O modelo? Certa Twiggy, uma inglesa sardenta e seus epígonos: Kate Moss, Claudia Schiffer, entre outras. Nossa época lipofóbica deixou para trás o padrão de estética burguês que associava riqueza e gordura. A estigmatização de gordas é produto do fosso cada vez mais profundo entre identidade social e identidade virtual.
A alimentação em quantidade foi substituída pela de qualidade, esta promessa de saúde e beleza. Nessa lógica, o corpo precisa refletir o controle narcísico dos apetites, das pulsões, das fraquezas. Ai daquelas que não se controlam frente ao prato de batatas fritas! Vencidas pela gula, as gordas são consideradas fracassadas, inspirando, segundo pesquisadores, imagens ligadas a “piedade” e “pena”. Tornar-se um saco de ossos parece o ideal da mulher contemporânea, que habita um mundo onde milhares morrem de fome. Regimes obsessivos associados à estética do corpo multiplicam-se em revistas femininas, que lhes consagram números inteiros com terríveis títulos do tipo: “Última chance antes do verão!”. O espelho retruca: “nunca magra o bastante!”.
A retórica sobre a magreza não pode ser mais repressiva. O resultado dessa onda é que os casos de bulimia e anorexia nervosa não param de se multiplicar entre jovens europeias As chamadas desordens alimentares vêm mobilizando médicos de toda parte. Eles não hesitam em afirmar que a magreza é, hoje, uma questão sociocultural. A pressão de se tornar fisicamente perfeita caminha, lado a lado, com o ideal de conseguir chegar ao corpo ideal, em forma, saudável. Mesmo que à custa de atropelar calorias necessárias para uma vida equilibrada. “Jantares? Só quando convidada e mesmo assim deixou de ser um dos meus programas prediletos, pois vivo numa dieta rigorosa [...] como já disse, comer há muito deixou de ser um prazer e sim a satisfação pura e simples de uma necessidade vital. Alimento-me muito mais dos elogios que recebo”, explica uma mulher.
Historia Hoje
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