Falar em ditadura militar esconde a participação de civis no golpe e no regime instalado em 1964, afirma o historiador Daniel Aarão Reis.
Bernardo Mello Franco
Aos 24 anos, ele integrava o comando da Dissidência Universitária da Guanabara, que idealizou o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick para libertar presos políticos.
Aos 68 anos, considera que a luta armada fracassou por falta de apoio popular. O professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) acaba de lançar "Ditadura e Democracia no Brasil" (Zahar).
Folha - Por que Jango caiu?
Daniel Aarão Reis - O golpe se instalou com o discurso de defesa da democracia, que estaria sendo ameaçada pelas reformas do governo Jango e pelo comunismo. Havia muito medo, nas classes médias e mesmo em segmentos populares, de que o Brasil estivesse caminhando para uma revolução social.
Lideranças da elite, eclesiásticas, empresariais e políticas, ficaram ao lado dos militares. O golpe foi dado por uma frente muito heterogênea. Havia ali de um tudo, como dizia Guimarães Rosa. Por isso, se tivesse enfrentado uma resistência, essa frente poderia se desmilinguir.
O golpe era evitável?
As esquerdas tinham uma força considerável, poderiam ter lutado. Depois de 1964, construiu-se uma visão de que a vitória da direita era inevitável. É o que a gente chama, em história, de profetas do passado. "O que aconteceu tinha mesmo que acontecer." Não é bem assim.
A fuga do Jango foi importante, mas não faço dele um bode expiatório. A esquerda tinha outras lideranças, que não quiseram lutar. Parte delas tinha medo do povo. Me pergunto se o medo da revolução social não influenciou.
O sr. costuma falar em ditadura civil-militar. Por quê?
O termo ditadura militar era legítimo na luta política, mas é inócuo para compreender a história. Ele joga um manto sobre todos os civis que apoiaram a ditadura. Ao insistir que a ditadura era militar, põe na obscuridade as conexões civis que ela teve ao longo do tempo. A mídia jogou um papel importantíssimo. Os jornais quase unanimemente apoiaram o golpe.
O que se quer, ao resgatar essas conexões civis, não é sair por aí fazendo caça às bruxas. É entender por que essa gente toda entrou na aventura da ditadura. Por muito tempo, falei isso quase sozinho. Na história, devemos nos afastar do militantismo.
Como avalia a luta armada, da qual participou?
Quando a ditadura se instalou, prevaleceu na esquerda a ideia de que o país havia chegado a um impasse. Como não havia alternativas, responderíamos com a guerrilha. A luta armada parecia muito viável. As experiências vitoriosas em Cuba (1959) e na Argélia (1962) enchiam de ânimo aquela geração.
O que nós esquecemos de fazer foi consultar o povo. E o povo brasileiro não estava disposto a tomar o caminho da luta armada. A tortura funcionou, é claro, mas o que nos asfixiou foi a falta de apoio popular, que é o oxigênio de qualquer guerrilha.
Como foi sua prisão?
Passei 50 dias muito duros na tortura do DOI-Codi. Dali fui para a Ilha Grande e, três meses e meio depois da prisão, fui colocado na lista dos 40 presos trocados pelo embaixador alemão.
A prisão é uma experiência-limite. Muito dolorosa, muito infame. A tortura é um inferno. É feita para destruir você, e não só fisicamente. O objetivo é destruir a alma do prisioneiro. É uma vergonha que as Forças Armadas até hoje escondam esse episódio que mancha sua história.
Até hoje, elas omitem, escondem e falsificam a história. Enquanto grande parte das lideranças de esquerda faz autocrítica e reconhece problemas, as Forças Armadas continuam na retranca.
Fui anistiado pelo Ministério da Justiça, e quem me torturou diz que não houve tortura no Brasil. É uma coisa esquizofrênica. Uma parte do Estado pede desculpas por ter me torturado. Outra parte, a que me torturou, diz que aquilo não existiu.
Qual é sua opinião sobre a Comissão da Verdade?
Uma comissão digna desse nome deveria ter o poder para vasculhar os porões das Forças Armadas. Apesar das limitações, ela tem condições de fazer um relatório esclarecedor sobre o comprometimento com a tortura como política de Estado. É importante abrir um debate nacional sobre a tortura como método. Ela não começou, e não acabou, com a ditadura.
Controvérsia
Daniel Aarão Reis - O golpe se instalou com o discurso de defesa da democracia, que estaria sendo ameaçada pelas reformas do governo Jango e pelo comunismo. Havia muito medo, nas classes médias e mesmo em segmentos populares, de que o Brasil estivesse caminhando para uma revolução social.
Lideranças da elite, eclesiásticas, empresariais e políticas, ficaram ao lado dos militares. O golpe foi dado por uma frente muito heterogênea. Havia ali de um tudo, como dizia Guimarães Rosa. Por isso, se tivesse enfrentado uma resistência, essa frente poderia se desmilinguir.
O golpe era evitável?
As esquerdas tinham uma força considerável, poderiam ter lutado. Depois de 1964, construiu-se uma visão de que a vitória da direita era inevitável. É o que a gente chama, em história, de profetas do passado. "O que aconteceu tinha mesmo que acontecer." Não é bem assim.
A fuga do Jango foi importante, mas não faço dele um bode expiatório. A esquerda tinha outras lideranças, que não quiseram lutar. Parte delas tinha medo do povo. Me pergunto se o medo da revolução social não influenciou.
O sr. costuma falar em ditadura civil-militar. Por quê?
O termo ditadura militar era legítimo na luta política, mas é inócuo para compreender a história. Ele joga um manto sobre todos os civis que apoiaram a ditadura. Ao insistir que a ditadura era militar, põe na obscuridade as conexões civis que ela teve ao longo do tempo. A mídia jogou um papel importantíssimo. Os jornais quase unanimemente apoiaram o golpe.
O que se quer, ao resgatar essas conexões civis, não é sair por aí fazendo caça às bruxas. É entender por que essa gente toda entrou na aventura da ditadura. Por muito tempo, falei isso quase sozinho. Na história, devemos nos afastar do militantismo.
Como avalia a luta armada, da qual participou?
Quando a ditadura se instalou, prevaleceu na esquerda a ideia de que o país havia chegado a um impasse. Como não havia alternativas, responderíamos com a guerrilha. A luta armada parecia muito viável. As experiências vitoriosas em Cuba (1959) e na Argélia (1962) enchiam de ânimo aquela geração.
O que nós esquecemos de fazer foi consultar o povo. E o povo brasileiro não estava disposto a tomar o caminho da luta armada. A tortura funcionou, é claro, mas o que nos asfixiou foi a falta de apoio popular, que é o oxigênio de qualquer guerrilha.
Como foi sua prisão?
Passei 50 dias muito duros na tortura do DOI-Codi. Dali fui para a Ilha Grande e, três meses e meio depois da prisão, fui colocado na lista dos 40 presos trocados pelo embaixador alemão.
A prisão é uma experiência-limite. Muito dolorosa, muito infame. A tortura é um inferno. É feita para destruir você, e não só fisicamente. O objetivo é destruir a alma do prisioneiro. É uma vergonha que as Forças Armadas até hoje escondam esse episódio que mancha sua história.
Até hoje, elas omitem, escondem e falsificam a história. Enquanto grande parte das lideranças de esquerda faz autocrítica e reconhece problemas, as Forças Armadas continuam na retranca.
Fui anistiado pelo Ministério da Justiça, e quem me torturou diz que não houve tortura no Brasil. É uma coisa esquizofrênica. Uma parte do Estado pede desculpas por ter me torturado. Outra parte, a que me torturou, diz que aquilo não existiu.
Qual é sua opinião sobre a Comissão da Verdade?
Uma comissão digna desse nome deveria ter o poder para vasculhar os porões das Forças Armadas. Apesar das limitações, ela tem condições de fazer um relatório esclarecedor sobre o comprometimento com a tortura como política de Estado. É importante abrir um debate nacional sobre a tortura como método. Ela não começou, e não acabou, com a ditadura.
Controvérsia
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