sexta-feira, 23 de junho de 2017

Massacres administrativos e o funcionário cumpridor de ordem.

O Julgamento, a banalidade do mal e o totalitarismo.

Arendt explica o caso Eichmann como um novo fenômeno no século XX. Para a autora, não se trata simplesmente de considerar que Eichmann era dantesco ou monstruoso, mas que, a exemplo de muitos indivíduos, banalizava o mal, agindo de forma indiferente mesmo ao praticar crimes hediondos. Eichmann, embora partícipe de crimes abomináveis, é visto por ela como um homem simples, banal e medíocre. Quando ela esteve pessoalmente no julgamento, ao observar o réu diretamente, sentiu-se incomodada ao perceber que ele foi mantido em uma cabine de vidro e que esta tinha como objetivo “protegê-lo dos judeus”, afinal, ele era acusado pela morte de milhões deles.

Eichmann era o tipo de burocrata que não sujava as mãos com o sangue de suas vítimas, pois era um homem de gabinete que cometia “massacres administrativos” (ARENDT, 2013, p. 317). Assinava documentos e batia carimbos em sua escrivaninha e, ao
fazê-lo, milhões de seres humanos eram transportados sob seu comando. Foi considerado responsável pela operação de toda a logística de transportes que conduziu inúmeras pessoas aos campos de concentração e evacuação forçada em lugares que foram ocupados e administrados pelos nazistas, antes e após a tomada do poder em 1933.

Embora fosse somente um cumpridor de ordens nessa estrutura ampla, isso não o isentava dos atos cometidos, nem quer dizer que ele fosse um tolo. “Ele não era burro”, afirmou a autora (ARENDT, 2013, p. 311). Segundo Ferraz, Eichmann “sabia bem o que fazia, o que o caracterizava era um vazio de pensamento que não quer dizer tolo, mas que o tornou o grande criminoso que acabou sendo” (FERRAZ, 1983, p. 09). “Foi pura irreflexão – algo de maneira nenhuma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar um dos
grandes criminosos desta época” (ARENDT, 2013, p. 311).

Eichmann obedecia às ordens com muita lealdade e presteza, no desempenho de suas atribuições. Ao exercê-las não era capaz de refletir sobre a amplitude das ordens recebidas, sendo este um dos aspectos mais impactantes deste julgamento. Era somente um funcionário de seu governo e não da pior espécie do totalitarismo nazista como a maioria, ou seja, não era do tipo que sentia prazer em ver jorrar sangue de vítimas indefesas. Segundo Ferraz, “Eichmann nunca tocou em uma arma” (FERRAZ, 1983, p. 10).

Era o tipo de burocrata que acreditava no valor das ordens que recebia e se orgulhava em realizar o seu trabalho bem feito.

Ainda que ficasse comprovado que o réu jamais usara uma arma de fogo contra qualquer judeu, além da incansável alegação de inocência com base no cumprimento de ordens, Arendt observa o quanto eram contraditórias algumas de suas falas ao longo das sessões de seu julgamento:

Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não judeu – nunca matei nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para matar fosse um judeu fosse um não judeu; simplesmente não fiz isso”; ou como confirmaria depois [...] não deixou nenhuma dúvida de que teria matado o próprio pai se houvesse recebido uma ordem nesse sentido. [...] A acusação deixava implícito que ele não só agira conscientemente, coisa que ele não negava, como também agira por motivos baixos e plenamente consciente da natureza criminosa de seus feitos. (ARENDT, 2013, p. 33 e 37).



Ao expor o que pensava sobre Eichmann, Arendt desvela um fenômeno que passa a ser debatido com intensidade: aquele que perpetua o mal não precisa ser forçosamente um indivíduo sádico, genocida, monstruoso ou perverso – não é apenas isso que distingue a barbárie ou a prática do mal. Para ela, o ato de se exterminar pessoas “pode se tornar somente um assunto administrativo nas estruturas da burocracia que domina o fazer
moderno” (GRESPAN, 2013, p. 155). Tratava-se do simples cumprimento de ordens por um homem medíocre que as executava com zelo meramente profissional; haja vista que ele “sequer nutria ódio pelos judeus ou era um antissemita fanático pelos ideais de seu partido” (ARENDT, 2013, p. 37 e 269). Inclusive, Eichmann “comentou que foi ajudado por uma família judia influente” quando esteve desempregado, antes de se filiar ao partido nazista (ARENDT, 2013, p. 41). Ou seja, era de uma absoluta indiferença pelas vítimas e obediência cega às leis.

É exatamente por não ter motivos especiais que “um mal dessa natureza pode se espraiar indefinidamente como um fungo sobre a superfície e devastar o mundo” (CORREIA, 2007, p. 52). É esse fenômeno que Arendt denomina a banalidade do mal, como define Lafer:

O exercício da gratuidade do mal ativo, que leva a atos monstruosos cometidos por pessoas ordinárias, é, avalia Hannah Arendt, fruto de thoughlessness, uma incapacidade de pensar dos que os perpetram. Esta incapacidade corre o risco de generalizar-se e é extrema (por isso é perigosa), mas não profunda (por isso é
banal). Tem, no entanto, o potencial de irradiar-se como um fungo rasteiro e nefasto, que pode espalhar-se pelo mundo, destruindo-o [...]. (LAFER, 2013, p. 33).

Para a autora, Eichmann era um homem comum dentro da lógica do nazismo, “um novo indivíduo “normal” dentro da nova “norma social” (GRESPAN, 2013, p. 168). Era uma lógica moral nova e também inimaginável antes; seus crimes não somente eram bem planejados e terrivelmente organizados, mas desconhecidos e seguiam uma lógica de conduta social própria e diferenciada.

O regime de governo nazista inverteu a ordem e os valores morais em sua sociedade e ofereceu como matéria prima homens como Eichmann: “O mal se converteu em norma, estava generalizado e banalizado” e sua figura pequena era a banalidade do mal em pessoa em pleno século XX (GRESPAN, 2013, p. 169). A expressão banalidade do mal não significa que a prática do mal pelos nazistas era vista por Arendt como banal, mas, sim, que era vista pelos nazistas como banal. O conceito de banalidade do mal de Arendt não afirma sobre uma suposta essência do mal, “não é uma questão ontológica uma vez que não se apreende uma essência do mal, mas sim uma questão no plano da ética e da política” (SOUKI, 2006, p. 99 e 100). A banalidade do mal não está necessariamente em um plano metafísico, ela é parte do meio político, histórico, é uma condição humana. O “problema do mal sai, verdadeiramente, dos âmbitos teológico, sociológico, psicológico e passa a ser focado na sua dimensão política” (SOUKI, 2006, p. 100). Torna-se um fenômeno humano “fruto do não exercício da liberdade” que se aproxima do homem na medida em que ocorre um vazio no pensamento associado a algum estado de crise moral como foi o totalitarismo (SOUKI, 2006, p. 67).

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A Banalidade do Mal e o Julgamento de Eichmann

Fabiano Miranda do N. Tizzo

Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 4, n. 1, jan./abr. 2017

Em:

file:///C:/Users/jo%C3%A3o%20otavio/Downloads/107-564-2-PB.pdf


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