Em setembro de 1988, 388 reitores provenientes de toda a Europa e além, firmaram a Magna Charta Universitatum. A partir de então, aquele texto se tornou o ponto de referência essencial acerca dos valores e dos princípios fundamentais da instituição universitária.
A despeito dos mass media, frequentemente críticos do papel da universidade em um mundo em que a Web parece perto de suplantar as velhas instituições de formação, creio que a função da universidade é hoje mais relevante do que nunca.
Vivemos um momento histórico em que, não obstante a já longa vida da União Europeia como instituição, em muitos países da Europa há quem duvide que a criação da unidade econômica por meio de uma moeda única seja suficiente para desenvolver e sustentar a ideia de uma identidade europeia.
Gostaria de lembrar que a ideia mesma de uma possível identidade europeia nasceu em 1088, com a fundação da primeira universidade do mundo ocidental, a Universidade de Bolonha. Naquela época, a Europa era somente uma expressão geográfica que designava a porção central do universo conhecido, seguramente mais destacada do que as ainda místicas terras da Ásia e da África. A Europa de então, porém, não portava valores políticos ou culturais. Havia o Sacro Império Romano, encarnado por Federico Barbarossa; havia a Igreja de Roma, havia os reinos da França e da Inglaterra, em feroz competição entre eles, e os pequenos reinos da Espanha, em luta contra o domínio árabe; as primeiras Repúblicas marítimas e as primeiras comunas na Itália, e o primeiro núcleo da Liga Hanseática: todos divididos por interesses e idiomas diversos e unidos somente por um língua veicular, o latim medieval, que todavia era falado exclusivamente pelos eruditos.
Foi precisamente sobre aquela plataforma cultural que nasceram as universidades, único caso de migração pacífica de estudiosos e estudantes: os clérigos itinerantes, que se deslocavam de ateneu em ateneu, de nação em nação, de tal modo que nos séculos vindouros encontraremos Erasmo, Copérnico, Goffredo de Vinsauf, Paracelso e Dürer em Bolonha, e Buonaventura e Tomás de Aquino em Paris. Todos falavam a mesma língua, os problemas debatidos pelos averroístas em Bolonha eram os mesmos discutidos na Faculdade das Artes em Paris, e Marcilio de Padova dissertava com Guilherme de Ockam e Giovanni de Jundun sobre questões políticas de importância capital para o Império germânico.
As universidades formaram assim o primeiro núcleo de uma futura identidade europeia; a Europa das universidades deixou de ser somente uma expressão geográfica para se tornar uma comunidade cultural.
Chegando aos nossos dias, e pensando na globalização (fruto inegável de numerosos desenvolvimentos políticos, militares, científicos e tecnológicos), não devemos esquecer que foi através das redes universitárias que Fermi e seus colegas italianos fizeram com que os resultados de suas pesquisas chegassem aos Estados Unidos, assim como Einstein reuniu as experiências científicas europeias e americanas das três universidades de Berna, Berlim e Princeton.
Creio que estas breves recordações são suficientes para que se responda à questão “por que as universidades?”. Nos últimos novecentos anos, elas têm sido a matriz de uma identidade internacional e artífices dos capítulos mais criativos na história da cultura ocidental.
Podem ainda ter um papel no mundo globalizado de hoje?
Antes de responder permito-me fazer uma citação bíblica.
No primeiro livro dos Reis, capítulo 19, quando Elias se encontrava na caverna do Monte Horebe e foi então chamado à presença do Senhor, “veio um vento fortíssimo que separou os montes e esmigalhou as rochas”; mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terremoto houve um fogo, mas o Senhor não estava nele. Não se pode encontrar Deus no rumor; Deus somente se manifesta no silêncio. Deus não está nos mass media, jamais está nas primeiras páginas dos jornais, jamais está na televisão ou na Broadway. Deus está onde não há agitação.
Esta máxima também vale para quem não crê em Deus mas pensa que em alguma parte exista uma Verdade a ser descoberta, um Valor a ser criado. Não se podem encontrar verdade e criatividade em um terremoto, somente em uma pesquisa silenciosa.
No tumulto do mundo atual, os únicos locais de silêncio, ao lado das sedes de meditação religiosa, são as universidades. Elas ainda fazem parte daqueles poucos lugares em que é possível um confronto racional entre diversas visões do mundo. Espera-se que nós, universitários, combatamos – sem fazer uso de armas mortais – a interminável luta pelo progresso do saber e da pietas. [Para lembrar: o romano ideal deveria possuir três traços típicos: a virtus, um conjunto de qualidades morais; a fides, fidelidade e respeito; e a pietas, um conjunto de regras de conduta e obediência. A pietas sintetizaria as demais. N. do T.]
Não sou ingênuo a ponto de esquecer que o conhecimento não traz automaticamente paz e misericórdia: a história nos mostrou como as pessoas podem amar Brahms ou Goethe e ao mesmo tempo serem capazes de organizar campos de extermínio. Mas essas mesmas pessoas, antes de consumarem a sua solução final, tiveram de perseguir as universidades, uma a uma, subjugar todas as mentes críticas: a universidade sempre representa um perigo para qualquer gênero de ditadura.
Não raramente, grupos de acadêmicos deram apoio ao colonialismo, ao racismo e à intolerância. Isto não elimina que é precisamente no leito das universidades ocidentais e das academias que o mundo moderno concebeu um novo modo de abordar as culturas e as civilizações, que recebeu o nome de antropologia cultural. Foi graças aos estudos dos antropólogos culturais do século XIX (que por sua vez se remetiam a ideias introduzidas por Montaigne, Locke e pelos filósofos do Iluminismo) que hoje sabemos da existência de outros modelos culturais, autônomos e orgânicos, que são reconhecidos, compreendidos em sua lógica interna e respeitados. A antropologia cultural, substituindo o conceito de raça pelo de cultura, trabalhou em profundidade para que nos tornássemos mais conscientes das demais culturas e do direito que cada cultura tem de sobreviver.
A antropologia cultural não mudou o mundo. Enquanto os antropólogos nos ensinavam a reconhecer e respeitar comportamentos culturais, religiões e costumes étnicos diversos dos nossos, o mundo ocidental fabricava os Protocolos dos Sábios de Sião, ao passo que os primeiros meios de comunicação, por intermédio dos romances populares e dos filmes de Hollywood, difundiam a ideia do Outro como Mau: o indígena feroz, o negro estúpido condenado a um destino de eterna escravidão graças à sua irremediável inferioridade, o chinês com o rabinho de cavalo, etc.
Simultaneamente, porém, os mesmos estereótipos eram desmontados no interior do ambiente universitário.
A universidade ainda é o lugar em que podem proliferar confrontos e discussões, ideias melhores por um mundo melhor, o reforço e a defesa de valores fundantes universais, não ordenados nas estantes de uma biblioteca, mas difundidos e propagados pelos meios os mais distintos.
A universidade é uma Força de Paz! Basta pensar no projeto Erasmus, que prevê a criação de uma nova rede internacional de clérigos itinerantes, os quais frequentemente se casam entre si, preparando assim, ao menos na Europa, uma nova geração de cidadãos bilíngues, imunes às seduções de qualquer tipo de nacionalismo.
Mas permitam-me mencionar, a propósito dos deveres da universidade hoje, duas tarefas que considero urgentes e fundamentais.
Com frequência nos é dito que um dos riscos a que nos expomos e que cresceu com os mass media, especialmente entre as gerações mais jovens, é o de uma crise da memória histórica. Sem memória não há sobrevivência. As sociedades sempre se valeram da memória para conservar sua identidade, desde quando os anciãos das tribos sentavam-se noite após noite embaixo de uma árvore para narrar as ações gloriosas dos antepassados.
Quando, com um ato de censura, cancela-se uma parte da memória social, a sociedade entra em crise de identidade.
Neste sentido, as universidades ainda são locais em que as memórias comuns podem ser inventariadas e conservadas.
A memória não é somente inventário, é também filtro. A memória histórica não é feita somente daquilo que acreditamos ser importante recordar, mas também daquilo que pensamos dever ser esquecido. Uma de suas principais funções é a de operar como uma espécie de peneira.
Uma cultura, enquanto memória histórica, não é somente um depósito de dados: é também o resultado de sua filtragem e das capacidades que temos de descartar tudo o que consideramos inútil ou não indispensável.
A história de uma civilização é feita de milhões de dados que foram sepultados. Frequentemente nos damos conta de que este processo comportou uma perda e de que, para recuperar as informações desaparecidas, são necessários séculos. Nossos antepassados gregos tinham perdido a memória da matemática egípcia e a Idade Média não recordava boa parte da ciência grega. Analogamente, nós hoje nos esquecemos do significado das estátuas da Ilha de Páscoa e muitas das tragédias citadas por Aristóteles na sua Poética perderam-se para sempre.
Apesar disso, exceção feita a estes incidentes indesejáveis, uma cultura precisa eliminar muitas informações. Quais os nomes de todos os soldados que lutaram em Waterloo? O que foi feito de Calpurnia, mulher de Cesar, depois dos Idos de Março? A cultura eliminou estes dados para não sobrecarregar nossa memória histórica.
De resto, este processo de apagamento não age somente na cultura, mas também em nossas vidas pessoais. Jorge Luiz Borges escreveu um belo conto, “Funes o memorioso”, sobre um personagem que se lembrava de tudo: toda folha que tinha visto desde criança, toda palavra ouvida no curso de sua vida, todo sopro de vento que lhe havia roçado a pele, toda frase que lera. E precisamente por causa desta memória total, Funes era um idiota, paralisado pela incapacidade de filtrar e descartar os resultados de suas experiências. Nosso inconsciente funciona porque remove. Se, depois, alguma coisa nos perturba, pedimos a nosso psicanalista que recupere aquilo que removemos por ser excessivamente embaraçante. Mas é importante eliminar todo o resto: a alma é fruto desta memória seletiva; se nossa memória fosse como a de Funes, seríamos animais sem alma, isto é, sem identidade. Nossa identidade não é feita somente das coisas que recordamos, mas também daquilo que conseguimos esquecer.
E no entanto uma cultura não se limita a sugerir aos indivíduos que esqueçam aquilo que deveria ser rejeitado como inútil; frequentemente esconde aquilo que eles deveriam recordar. Este é o papel da censura, que assume muitas formas, até a da damnatio memoriae. Uma cultura, porém, pode censurar não só por apagamento e reticência, mas também por excesso de informação. Sempre sustentei que havia pouca diferença entre o Pravda stalinista e a edição dominical do New York Times: o Pravda censurava as informações indesejáveis, o Sunday Times, por sua vez, com suas 600 páginas que seguramente continham All the News that’s Fit to print, todas as notícias que vale a pena imprimir, mas que com idêntica segurança não eram lidas por inteiro por ninguém, sequer no arco de uma semana. Corremos o risco de permanecer submersos pelo excesso de informação. A diferença entre o silêncio e o rumor excessivo é de fato mínima.
Inegavelmente, no que diz respeito ao Sunday Times, o leitor bem informado tem condições de selecionar as informações pertinentes e de jogar no cesto os suplementos que não lhe interessam, por exemplo, aqueles sobre o mercado imobiliário, os esportes, casa e jardim, ou até mesmo o caderno literário. Mas o que está acontecendo hoje com este excesso de informações que é a Internet? O risco é de que nos tornemos como o cérebro de Funes. Até agora a sociedade filtrava por nós os conteúdos através dos livros-texto e das enciclopédias; com a Web, todos os conhecimentos e todas as informações possíveis, inclusive as menos úteis, estão ali à nossa disposição.
Tentem perguntar à Web sobre um tema, por exemplo a Shoah, o Holocausto. Não existe qualquer critério que nos diga, numa primeira aproximação, se um site é obra de historiadores responsáveis ou de um grupo filonazista. E se uma pessoa culta consegue compreender de que gênero de site se trata, como se arranjam os menos informados que, pela primeira vez, buscam na Web algumas noções básicas sobre o evento? A incapacidade de filtrar comporta a impossibilidade de discernir.
Somente as universidades (e mais em geral as instituições de formação) podem nos ensinar como selecionar. É preciso inventar, e difundir, uma nova arte da depuração. Caso contrário, sem uma Enciclopédia Unificada das Ciências, todos terão direito de organizar sua própria enciclopédia: teremos a Enciclopédia New Age, a Enciclopédia Nazista, a Enciclopédia Astrológica, etc. Com tal fragmentação do conhecimento, os sete bilhões de habitantes do planeta poderão produzir outros tantos métodos de seleção ideológica e sete bilhões de línguas diversas, intraduzíveis entre si. A Web poderia se converter numa Torre de Babel, na qual se falariam não setenta, mas sete bilhões de línguas individuais.
A presença das universidades pode ser uma garantia para os inúmeros jovens (e menos jovens) que estão em busca de uma enciclopédia confiável. Criar uma Enciclopédia Comum não equivale a impor um pensamento único. É um terreno compartilhado sobre o qual verificar e comparar toda diferença portadora de riqueza. A universidade é o único lugar em que se pode aplicar corretamente uma abordagem unificada da diversidade.
Mas as universidades são também um modo de oferecer um excesso de filtragem. As culturas (ou pelo menos a nossa cultura ocidental, com sua perspectiva filológica) têm interesse em recuperar dados cuja perda nos parece ser uma desventura. Por isso temos necessidade do trabalho de especialistas, historiadores ou arqueólogos: pedimos a eles que ressuscitem conceitos e experiências que caíram acidentalmente na obscuridade. Com este ato, a memória coletiva pode fazer com que floresçam novamente os dados perdidos e pode sistematizá-los de novo, senão em uma Enciclopédia Comum, pelo menos em uma enciclopédia setorial.
Deste modo, uma cultura madura escolhe pôr algumas informações em estado de latência. As informações excessivas são, por assim dizer, congeladas de modo a que, conforme a necessidade, os experts possam reaquecê-las em um ideal forno de micro-ondas e fazer com que retornem, com o objetivo, por exemplo, de decifrar um antigo documento recém-descoberto.
Os locais de latência são assimiláveis ao modelo da biblioteca ou do arquivo, indispensáveis containers de uma sabedoria que pode ser revisitada, mesmo que não tenha sido frequentada por séculos. As universidades, portanto, não são somente lugares de filtragem indispensável, mas também, com suas bibliotecas e seus arquivos, locais que custodiam as indispensáveis informações latentes.
Gostaria de terminar com a derradeira razão pela qual o papel das universidades ainda é fundamental, sobretudo em um mundo que se torna sempre mais virtual: as universidades estão entre os poucos lugares em que as pessoas ainda se encontram face a face, em que jovens e estudiosos podem compreender quanto o progresso do saber necessita de identidades humanas reais, e não virtuais. [Tradução de Marco A. Nogueira]
Blog do Marco Aurélio Nogueira
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