Há quem sustente que o nosso sistema processual penal pode ser substituído por um negócio jurídico contratual.
Isto não ocorria nem na Roma antiga.
Estou convencido de que o acordo de cooperação premiada dos executivos da JBS é absolutamente incompatível com o nosso Estado Democrático de Direito, prometido na Constituição Federal.
Acabo de ouvir um procurador da república dizer, na televisão, ser contra o exame desta delação pelo plenário do S.T.F. Disse o dr. Rodrigo de Grandis que se trata de um contrato entre o Ministério Público e os delatores, motivo pelo qual o poder judiciário não pode desconsiderá-lo, vez que estaria perdendo a sua imparcialidade.
O mencionado membro do Ministério Público Federal disse que a delação “é lei entre as partes” (sic), não cabendo qualquer ingerência do Poder Judiciário. (Estas insólitas afirmações foram ditas no programa “Painel”, da Globo News).
Desde o século XIX, através de doutrina de origem francesa, se passou a admitir a intervenção judicial até mesmo nos contratos civis, onde se negociam direitos disponíveis … Vale dizer, nem mesmo no Direito Privado, os negócios jurídicos são “leis entre as partes”.
Aliás, as próprias leis formais são objeto de interpretações e modificações, sendo controladas pelo poder judiciário em termos de sua constitucionalidade.
Acho que alguns membros do Ministério Público estão desconsiderando o que é essencial ao nosso sistema jurídico, qual seja, a existência de mecanismos de controle. O controle é uma das “palavras- chave” do Estado do Direito. Nele, ninguém pode ter poder ilimitado.
Pelo citado procurador da república, o nosso sistema processual penal pode ser substituído por “contratos” entre um membro do Ministério Público e um criminoso confesso !!! Trata-se da prevalência do negociado sobre o legislado.
Nem mesmo a um controle da legalidade o Ministério Público Federal julga estar sujeito !!! Tal controle de legalidade, nos casos da competência dos órgãos colegiados, não deve apenas ser efetuado monocraticamente pelo relator, mas sim pelo próprio colegiado, pelo órgão que seria o competente para o julgamento do mérito do eventual processo penal.
Importante notar que, pelo disposto no parágrafo 8, art. 4, da lei 12.850/13, o juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.
Caberia, a meu ver, por exemplo, a homologação parcial desse acordo, no caso da JBS, excluindo a cláusula flagrantemente ilegal (a não denúncia para quem é líder de organização criminosa ou não foi o primeiro a delatar), dentre outras.
O Judiciário precisa cumprir seu papel de examinar a legalidade das cláusulas. O Poder Judiciário não pode aceitar a função de mero carimbador dos acordos de delação premiada.
Entendo, inclusive, que, se estivéssemos no primeiro grau de jurisdição, o próprio mérito da delação poderia ser revisto pelo órgão superior do Ministério Público, através da regra do art.28 do Cod.Proc.Penal.
O prêmio de “não denunciar” é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública e deve ser efetivado através de um requerimento de arquivamento do inquérito ou peças de informação.
Finalmente, mesmo que seja mantida a homologação deste acordo, tendo ele efeitos de arquivamento do inquérito, poderá o Ministério Público exercer o direito de ação penal ou serem retomadas as investigações nas hipóteses previstas, respectivamente, na Súmula 524 do S.T.F. e no art.18 do Cod.Proc.Penal.
Vale a pena repetir: o prêmio de não denunciar não acarreta extinção de punibilidade e não tem a imutabilidade da chamada coisa julgada material, pois aqui não haverá ação, processo e jurisdição.
Lógico que, tratando-se de exercício ou não da ação penal pública, a última palavra há de ser do Ministério Público, como é próprio do sistema acusatório.
Entretanto, é preciso que haja um controle sobre a exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, devendo o sistema processual vigente ser aplicado às regras da referida lei n.12.850/13. Ela não pode ser considerada um “corpo estranho” em nosso sistema processual penal, que é um reflexo de relevantes normas constitucionais.
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Afranio Silva Jardim é professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.
Empório do Direito
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