segunda-feira, 5 de junho de 2017

Cracolândia é símbolo fascinante e repugnante da possibilidade de fuga

Contardo Calligaris

Os craqueiros, expulsos da cracolândia original, levaram seu fluxo para a praça Princesa Isabel.

A reportagem de Roberto de Oliveira, na Folha de 29 de maio, nos diz como se sentem os moradores das ruas da nova cracolândia: "Não saio mais com bolsa"; "Costumava ir ao cinema à noite, mas vou agora [15h]"; "Eles abordam os moradores a todo momento. Espalham lixo, fazem cocô e xixi na sua frente".

Quem esteve alguma vez na cracolândia sabe que os entrevistados estão sendo comedidos: a convivência com o fluxo é intolerável.


Num primeiro momento, a Prefeitura de São Paulo obteve na Justiça a autorização para recolher à força os viciados e encaminhá-los a um exame médico-psiquiátrico, que sugeriria (ou não) sua internação compulsória.



Internar alguém contra sua vontade é um ato grave, que despoja o indivíduo de sua autonomia. Agora, a prefeitura não pretendia internar os craqueiros em massa –só pedia a autorização para levá-los a um exame que, eventualmente, produziria internações involuntárias.



Mesmo assim, a autorização da prefeitura permitia recolher uma categoria de pessoas. É algo que, em muitos (e eu estou entre eles), evoca pesadelos do passado e do presente.



Nossa cultura adora segregar. A modernidade começa com a grande internação da idade clássica, em que, como conta Michel Foucault, loucos, pestilentos, mendigos e perdidos encontraram um destino comum na segregação. E, no século 20, os regimes totalitários aperfeiçoaram a ideia, inventando os campos de concentração e de extermínio para os que eram "diferentes".



Mas voltemos à cracolândia. Como era de se esperar, a pedido do Ministério Público e da Defensoria Pública, dois desembargadores derrubaram a autorização da prefeitura.



Também como era de se esperar, o debate já está polarizado. Há a prefeitura, querendo acabar com a degradação urbana, o tráfico e o consumo de droga a céu aberto e a sarjeta da cracolândia. E há os defensores dos direitos humanos dos craqueiros, a maioria dos quais discorda dos métodos, mas concorda com uma ideia de fundo da prefeitura, pela qual é preciso intervir, curar, dar chances, resolver o problema social etc.



Eu estou numa contradição difícil. Por um lado, solidarizo-me com os moradores da praça Princesa Isabel: a cracolândia é uma sarjeta infrequentável. Por outro lado, gostaria de respeitar os craqueiros, mas não como "doentes" que precisariam de nossos cuidados e assistência.



Para expor essa minha contradição, tento dialogar com Anderson Pomini, que, num ótimo artigo na Folha, explica a ação da prefeitura.



Pomini, secretário de Justiça da prefeitura, descreve os craqueiros como "incapazes de controlar sua vontade", de "cuidar de si mesmos" ou de "se conduzir por si mesmos". E ele acrescenta: "A cada segundo, a cada tragada, vidas são desperdiçadas. E não se pode compactuar com isso".



Concordo com ele, mas também me pergunto: será que todos nós (não craqueiros) controlamos nossa vontade e nos conduzimos por nós mesmos? Quando a gente questiona a autonomia do outro é sempre bom aproveitar para interrogar a nossa: você tem mesmo a vida que você quis e quer?



Pomini já devia suspeitar que algum maluco (eu, no caso) iria por esse lado, questionando a autonomia da gente e não só a dos craqueiros. Ele responde: "A paixão se faz de cega diante da complexidade do problema e parece propor a supremacia absoluta da autonomia da vontade em detrimento até mesmo do direito à vida. Parece sugerir que mais vale ser livre do que estar vivo".



Pomini é razoável, e me sinto próximo de sua maneira de pensar, mas, de fato, eu acho mesmo que mais vale ser livre do que ser vivo. Também entendo que o direito à vida não coincide com o dever de viver.



Entrar no fluxo do crack não significa ser livre, claro. Mas podemos observar o seguinte: os craqueiros da cracolândia são um assunto tão importante, na cidade, porque eles são o símbolo, fascinante e repugnante, da possibilidade de fugir de todas as obrigações que constrangem a nossa vida –e isso logo em troca de um prazer muito efêmero.



Nosso horror diante da andança dos craqueiros talvez seja o efeito de uma questão que eles nos colocam: o que é ser livre?



Para introduzir uma aula de filosofia sobre liberdade, eu levaria meus alunos à praça Princesa Isabel.



Folha SP


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