Cláudio Oliveira
Tenho evitado escrever sobre a situação brasileira aqui na coluna. A ideia original era que eu escreveria sobre Paris, sobre o que vejo e sobre o que encontro ou nas viagens que faço por aqui. Além do mais, como estou distante, fica mais difícil acompanhar tudo o que está acontecendo, mesmo que a primeira coisa que eu faça, todos os dias, ao acordar, seja ler os jornais brasileiros. Também tento me informar através dos blogs de jornalistas independentes (chamados pela direita brasileira de blogs sujos) e também um pouco através do que as pessoas postam no Facebook e das conversas por áudio e câmera com amigos e familiares. Mas isso é diferente de estar no Brasil, vivendo no dia-a-dia a coisa mesma.
A situação brasileira é tão complexa que é difícil decidir por onde começar uma vez que decidimos falar sobre ela. Talvez um começo seja lembrar que ela não é desconectada da situação internacional. Nem nunca foi. Assim como o golpe de 1964 não pode ser entendido fora de um contexto internacional – a Guerra Fria, a luta dos Estados Unidos e dos seus aliados contra a emergência de países comunistas -, o mesmo deve ser dito da situação que vivemos agora e do golpe de Estado que sofremos no ano passado. Só que essa situação internacional não é mais a mesma, mesmo que a luta de algum modo permaneça a mesma. Os lados da luta se mantêm inalterados, ainda que hoje seus instrumentos sejam diferentes. Os contextos mudaram.
Não há mais o fantasma do comunismo. A morte de Fidel veio sacramentar esse fato. O que existe hoje não é mais a ideia de revolução, de constituição de um Estado socialista. Ninguém mais pensa nisso como uma real possibilidade, a não ser alguns poucos autores. Mesmo a China representa hoje outra coisa, um outro tipo de ameça. A China não é hoje a ameça comunista, mas apenas a ameaça chinesa. Não vejo, por exemplo, a China muito concernida pelo que acontece nos outros países, não é muito clara para mim a atuação internacional chinesa, enquanto uma atuação política. O fantasma hoje é outro.
O perigo agora para a direita é, a meu ver, a chegada ao poder, via voto popular, de lideranças de esquerda. O fato de muitas dessas lideranças terem chegado ao poder, via voto popular, foi o fato que marcou a década passada, a primeira década do século 21. Essas lideranças de esquerda não só chegaram ao poder, mas implementaram políticas sociais que modificaram a vida de milhões de pessoas. Acendeu-se uma nova luz vermelha. O que implicou um novo modo de combater esse novo tipo de ameaça.
Podemos dizer que já era essa a tendência na América do Sul quando ocorreram os golpes militares das décadas de 1960 e 1970. A eleição de Allende, no Chile, e a de Jango, no Brasil, mostravam que a esquerda já estava buscando uma chegada ao poder através das eleições. E ela estava sendo vitoriosa. Mas a resposta da direita, todos nós a conhecemos, foram os golpes militares no Chile e no Brasil. Ou seja, é uma tradição da direita, pelo menos na América Latina: ela só respeita a democracia quando vence. Quando perde, ela produz golpes de Estado. Essa história se repetiu no Brasil em 2016, mesmo sem que os militares tenham tido participação no golpe dessa vez. Ela já tinha acontecido, do mesmo modo, no Paraguai, em 2013, com o impeachment de Fernando Lugo. Mas em Honduras, em 2009, a deportação de Manuel Zelaya, considerada por uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas como um golpe militar, não aconteceu sem a atuação das forças armadas daquele país.
Após a queda das ditaduras militares que se impuseram na segunda metade do século passado na América do Sul, houve um fortalecimento, nós acreditávamos, das instituições democráticas. Achávamos que um golpe nunca mais aconteceria. E mais uma vez, a esquerda buscou o caminho democrático das urnas para chegar ao poder. O que não é fácil num país em que todas as instâncias de poder, dentre as quais a do poder midiático, são dominadas pela direita.
A esquerda foi vitoriosa na maioria dos países da América do Sul e em alguns da América Central no início do século 21. Essa vitória não implicou, no entanto, em nenhuma quebra ou modificação da economia de mercado, mas introduziu mudanças significativas nas ações sociais dos governos eleitos. Em outras palavras, ninguém tentou implantar nesses países uma sociedade de tipo comunista ou socialista. Os governos implantados estavam mais para a clássica receita da social-democracia: economia de mercado com justiça social. No Brasil há coisas estranhas: o Partido dos Trabalhadores, em tese socialista, buscou exercer, de fato, um governo social-democrata, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira, apesar do nome, não tem nada de social-democrata, tendo praticado um governo totalmente neoliberal.
A lição que tiramos, no Brasil, dos anos de governo do PT é a de que a social-democracia, aquela praticada pelo PT, já é suficientemente perigosa e insuportável para a classe dominante brasileira, mesmo que esse “ensaio” de social-democracia estivesse ainda muito distante do que seria uma social-democracia de fato. A única social-democracia que a classe dominante brasileira pode suportar é aquela do PSDB, ou seja, um neo-liberalismo que tem a social-democracia apenas no nome. Podemos tirar a mesma conclusão do países da América Latina em geral (a exceção, até agora, é o Uruguai).
De fato, o que vivemos hoje é uma derrota generalizada das esquerdas no mundo, em especial na América Latina. O caso Canadá é uma incógnita. E eu não tenho informações suficientes para comentar o caso (lembremos apenas que o Canadá vinha de um longo período de governo pelo Partido Conservador e isso deve ter produzido um esgotamento). O paradigma do momento não é, no entanto, Justin Trudeau, mas Donald Trump, com seu correspondente brasileiro, ou melhor, paulista (espero que ele permaneça um correspondente apenas paulista), João Dória.
Há uma tendência conservadora no mundo como um todo. Mesmo um oásis progressista como a Holanda sente essa tendência: “Há uma atmosfera conservadora”, diz Jonathan Foster, dono de um coffeeshop em Amsterdã, leio em notícia publicada na Folha de S.Paulo. A observação do proprietário se deve à notícia do fechamento do Mellow Yellow, o mais antigo coffeeshop de Amsterdã, no qual a venda e consumo de maconha eram tolerados desde 1972.
O fechamento da casa se deve a uma nova “medida que proíbe a venda de maconha a menos de 250 metros de escolas —o Mellow Yellow estava a 230 metros de um curso de barbeiro”. A medida teve que ser aceita pela prefeitura de Amsterdã, mais liberal, como uma espécie de negociação com o governo nacional, mais conservador, que queria simplesmente proibir turistas de frequentarem esses estabelecimentos. “Sabemos que isso chateia quem foi afetado”, diz, à Folha de S.Paulo, Jasper Karman, porta-voz da prefeitura. “Tivemos que escolher. Acreditamos ter tomado a decisão certa.”
Cito essa situação porque para mim ela é um paradigma do que temos na América Latina, onde mesmo governos de orientação socialista ou social-democrata tiveram que permanentemente negociar com uma classe dominante extremamente conservadora. Sabemos que essa negociação chateia muita gente, sobretudo aqueles que são afetados por ela, mas foi uma negociação sempre necessária para evitar um mal pior.
Fiquemos no caso do Brasil, e do governo do PT. Durante todo o seu governo, Lula e Dilma tiveram que negociar os anéis para não perder os dedos. O que lhes rendeu inúmeras críticas vindas da esquerda, seja de partidos da esquerda, seja simplesmente de cidadãos que por terem votado nos candidatos do PT esperavam um governo 100% de esquerda. As pessoas são inocentes ao ponto de acreditarem que, após ter chegado ao poder, o PT poderia ter feito o que quisesse. E se não o fez, é porque não quis. É o tal do mito voluntarista da “vontade política”.
No Brasil de hoje, fala-se muito dos “erros do PT”. Mas esses “erros” são mesmo do PT, devem ser atribuídos unicamente ao PT ou, antes, eles teriam que ser atribuídos à classe dominante brasileira, àquele 0,1 % da população brasileira que detém a metade da riqueza de tudo o que é produzido em nosso país e que traduz esse poder econômico em poder legislativo, judiciário, executivo e, sobretudo, em poder midiático? Será que é tão difícil para as pessoas entenderem (refiro-me às pessoas que votaram no PT e que se dizem desiludidas) que o PT nunca governou sozinho esse país, mas sim junto com a direita?
Agora nós podemos ver a olho nu com quem o PT estava governando. Não é senão isso o governo Temer. Portanto, a questão que nós temos que colocar agora deve ser invertida: como o PT conseguiu fazer tudo o que fez mesmo tendo que governar com esses caras? Ora, o fato de que o governo do PT encabeçava esse governo de coalizão colocava certos limites à atuação da direita dentro do governo, mesmo que essa direita também colocasse limites à atuação do PT. O que vemos agora é essa direita atuando sem nenhum limite.
Nós nunca tivemos um governo do PT propriamente dito, nem no nível nacional, nem no nível estadual. Simplesmente nunca houve um governo de esquerda propriamente dito no nosso país. Nós não sabemos o que é isso. Portanto, não podemos fazer exigências ao PT como se isso tivesse algum dia existido. Em países como Canadá e Inglaterra, um partido só pode chegar ao poder se tiver maioria no Congresso. Em outras palavras, o partido que obtém maioria no Congresso nomeia o primeiro ministro. No Brasil, não existe nada disso. E como existe uma pulverização dos partidos políticos (eterno tema de uma reforma política que nunca acontece), surgiu o tal de “presidencialismo de coalização”.
Portanto, precisamos levar em consideração que a maioria dos chamados erros do PT não são erros do PT, são erros de uma coalizão entre partidos de esquerda e de direita que governaram o país nos últimos treze anos. É claro que, além desses, há erros que podem ser atribuídos, a meu ver, não tanto ao PT, mas ao Lula e à própria Dilma enquanto governantes. Por exemplo, todas as nomeações de juízes para o Supremo Tribunal Federal foram erros. Nem Lula nem Dilma foram capazes de realmente constituir um STF progressista, mesmo que possamos ver algum avanço da Corte atual em relação a um ou outro ponto. Mas o STF continua a serviço da classe dominante brasileira.
Também foram erros de Lula e de Dilma terem dado todas as condições para o surgimento desses monstros que se tornaram o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Não ter politizado as nomeações foi um erro, pois não politizá-las pela esquerda significa simplesmente permitir a politização pela direita. Temos hoje um Judiciário caracterizado pela ideologia das classes dominantes e nem Lula nem Dilma foram capazes de produzir qualquer tipo de mudança nesse sentido. E tudo em nome de uma neutralidade democrática que eles julgavam ser o procedimento correto a ser adotado nessas nomeações.
Nós poderíamos elencar muitos outros “erros” dos governos Lula e Dilma, mas creio que os “erros” pelos quais eles são acusados, enquanto “erros” do PT, têm outra natureza e só podem ser entendidos à luz das condições complexas, para não dizer complicadas, em que eles tiveram que exercer seus mandatos presidenciais.
Hoje já temos elementos suficientes para poder compreender que Lula não é nem nunca foi apenas um líder da esquerda brasileira. Enquanto tal, ele jamais teria chegado ao poder, jamais teria ganho uma eleição presidencial. A esquerda não tem como chegar ao poder no Brasil, e mesmo que chegue, cai.
Lula não chegou ao poder apenas como um líder da esquerda. Ele chegou ao poder como um líder da esquerda que conseguiu negociar um acordo com a direita. Isso ficou já totalmente claro em sua primeira eleição – não só na famosa Carta aos Brasileiros – e foi só por isso que ele finalmente conseguiu vencê-la após três tentativas fracassadas. Foi só quando incluiu explicitamente a direita em sua candidatura que Lula pôde vencer a eleição presidencial.
Em outras palavras, ele continuou sendo um sindicalista enquanto presidente. Ele continuou sendo o representante da classe trabalhadora a negociar com os “patrões”. O fato de que ele era agora Presidente da República não o tornou um “patrão”. Ele continuou sendo um trabalhador. A única coisa que o diferenciava dos outros trabalhadores era exatamente o fato de que, enquanto os representava, era recebido pelos “patrões” ou os recebia no Palácio do Planalto. Mas ele jamais se tornou um patrão.
A prova cabal disso é que a classe dominante, a classe dos patrões, continuou tratando-o como o que ele é: um simples sindicalista. A empáfia de um juiz como Sergio Moro diante de Lula, um ex-Presidente da República é, a meu ver, a melhor imagem do desprezo da classe dominante brasileira pela classe trabalhadora (incluindo nesse desprezo a classe média brasileira, que se identifica com a classe dominante e não com a classe trabalhadora). Por contraste, basta ver como Fernando Henrique Cardoso foi tratado em recente interrogatório pelo mesmo juiz Sergio Moro. Lula não passou a ser tratado como um patrão por ter sido presidente. Suas origens populares, operárias e sindicais lhe condenam a ser para sempre tratado pela classe dominante como qualquer brasileiro médio com as mesmas origens. Daí sua condução coercitiva sem justificativas.
Portanto, a chegada de Lula à presidência não significa, nem nunca significou uma chegada da esquerda ao poder no Brasil. Assim como nunca significou uma verdadeira modificação das relações de poder no Brasil. Significou simplesmente um refresco ou algo que nós poderíamos chamar hoje de uma política de diminuição de danos, para tomar de empréstimo uma expressão da área de saúde pública. Significou simplesmente a presença de um negociador na Presidência da República, que tentava conseguir junto à classe dominante melhores condições de existência para a classe trabalhadora.
A classe dominante teve que aceitar a partir de um determinado momento uma figura como Lula simplesmente pelo fato de que ela, a classe dominante, não tinha sido capaz nos últimos anos de criar uma liderança política que estivesse em condições de vencer uma eleição presidencial. O caso Aécio Neves é talvez o mais emblemático nesse sentido, pois conseguiu perder para uma presidente com baixa popularidade num momento de crise econômica aguda, o que contradiz todas as regras da ciência política. Mas isso se explica, talvez, pela fato de que a última vez que a direita teve um candidato vencedor, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, foi uma tragédia para o país. E uma parcela muito significativa dos brasileiros guarda até hoje uma lembrança muito clara dessa tragédia. Foi o que impediu uma vitória do PSDB nas quatro últimas eleições presidenciais no Brasil.
Não sendo capaz de ganhar eleições presidenciais, a classe dominante, no entanto, não deixa de dominar todas as outras instâncias de poder, mesmo a instância do executivo, pois mesmo nos governos do PT sempre houve a presença de representantes dessa classe em seus quadros, em vários dos seus ministérios. E no que diz respeito a outros poderes, o Judiciário, o Legislativo e o quarto poder, a mídia, a classe dominante sempre teve total controle dos mesmos. Em 2016, essa classe dominante viu uma janela, uma possibilidade de estar no poder sozinha sem o incômodo que era o PT.
O PT não se uniu a essa classe dominante por gosto. Ele o fez pelo Brasil. Já está mais do que na hora de nós entendermos isso.
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Diário do Centro do Mundo
A situação brasileira é tão complexa que é difícil decidir por onde começar uma vez que decidimos falar sobre ela. Talvez um começo seja lembrar que ela não é desconectada da situação internacional. Nem nunca foi. Assim como o golpe de 1964 não pode ser entendido fora de um contexto internacional – a Guerra Fria, a luta dos Estados Unidos e dos seus aliados contra a emergência de países comunistas -, o mesmo deve ser dito da situação que vivemos agora e do golpe de Estado que sofremos no ano passado. Só que essa situação internacional não é mais a mesma, mesmo que a luta de algum modo permaneça a mesma. Os lados da luta se mantêm inalterados, ainda que hoje seus instrumentos sejam diferentes. Os contextos mudaram.
Não há mais o fantasma do comunismo. A morte de Fidel veio sacramentar esse fato. O que existe hoje não é mais a ideia de revolução, de constituição de um Estado socialista. Ninguém mais pensa nisso como uma real possibilidade, a não ser alguns poucos autores. Mesmo a China representa hoje outra coisa, um outro tipo de ameça. A China não é hoje a ameça comunista, mas apenas a ameaça chinesa. Não vejo, por exemplo, a China muito concernida pelo que acontece nos outros países, não é muito clara para mim a atuação internacional chinesa, enquanto uma atuação política. O fantasma hoje é outro.
O perigo agora para a direita é, a meu ver, a chegada ao poder, via voto popular, de lideranças de esquerda. O fato de muitas dessas lideranças terem chegado ao poder, via voto popular, foi o fato que marcou a década passada, a primeira década do século 21. Essas lideranças de esquerda não só chegaram ao poder, mas implementaram políticas sociais que modificaram a vida de milhões de pessoas. Acendeu-se uma nova luz vermelha. O que implicou um novo modo de combater esse novo tipo de ameaça.
Podemos dizer que já era essa a tendência na América do Sul quando ocorreram os golpes militares das décadas de 1960 e 1970. A eleição de Allende, no Chile, e a de Jango, no Brasil, mostravam que a esquerda já estava buscando uma chegada ao poder através das eleições. E ela estava sendo vitoriosa. Mas a resposta da direita, todos nós a conhecemos, foram os golpes militares no Chile e no Brasil. Ou seja, é uma tradição da direita, pelo menos na América Latina: ela só respeita a democracia quando vence. Quando perde, ela produz golpes de Estado. Essa história se repetiu no Brasil em 2016, mesmo sem que os militares tenham tido participação no golpe dessa vez. Ela já tinha acontecido, do mesmo modo, no Paraguai, em 2013, com o impeachment de Fernando Lugo. Mas em Honduras, em 2009, a deportação de Manuel Zelaya, considerada por uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas como um golpe militar, não aconteceu sem a atuação das forças armadas daquele país.
Após a queda das ditaduras militares que se impuseram na segunda metade do século passado na América do Sul, houve um fortalecimento, nós acreditávamos, das instituições democráticas. Achávamos que um golpe nunca mais aconteceria. E mais uma vez, a esquerda buscou o caminho democrático das urnas para chegar ao poder. O que não é fácil num país em que todas as instâncias de poder, dentre as quais a do poder midiático, são dominadas pela direita.
A esquerda foi vitoriosa na maioria dos países da América do Sul e em alguns da América Central no início do século 21. Essa vitória não implicou, no entanto, em nenhuma quebra ou modificação da economia de mercado, mas introduziu mudanças significativas nas ações sociais dos governos eleitos. Em outras palavras, ninguém tentou implantar nesses países uma sociedade de tipo comunista ou socialista. Os governos implantados estavam mais para a clássica receita da social-democracia: economia de mercado com justiça social. No Brasil há coisas estranhas: o Partido dos Trabalhadores, em tese socialista, buscou exercer, de fato, um governo social-democrata, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira, apesar do nome, não tem nada de social-democrata, tendo praticado um governo totalmente neoliberal.
A lição que tiramos, no Brasil, dos anos de governo do PT é a de que a social-democracia, aquela praticada pelo PT, já é suficientemente perigosa e insuportável para a classe dominante brasileira, mesmo que esse “ensaio” de social-democracia estivesse ainda muito distante do que seria uma social-democracia de fato. A única social-democracia que a classe dominante brasileira pode suportar é aquela do PSDB, ou seja, um neo-liberalismo que tem a social-democracia apenas no nome. Podemos tirar a mesma conclusão do países da América Latina em geral (a exceção, até agora, é o Uruguai).
De fato, o que vivemos hoje é uma derrota generalizada das esquerdas no mundo, em especial na América Latina. O caso Canadá é uma incógnita. E eu não tenho informações suficientes para comentar o caso (lembremos apenas que o Canadá vinha de um longo período de governo pelo Partido Conservador e isso deve ter produzido um esgotamento). O paradigma do momento não é, no entanto, Justin Trudeau, mas Donald Trump, com seu correspondente brasileiro, ou melhor, paulista (espero que ele permaneça um correspondente apenas paulista), João Dória.
Há uma tendência conservadora no mundo como um todo. Mesmo um oásis progressista como a Holanda sente essa tendência: “Há uma atmosfera conservadora”, diz Jonathan Foster, dono de um coffeeshop em Amsterdã, leio em notícia publicada na Folha de S.Paulo. A observação do proprietário se deve à notícia do fechamento do Mellow Yellow, o mais antigo coffeeshop de Amsterdã, no qual a venda e consumo de maconha eram tolerados desde 1972.
O fechamento da casa se deve a uma nova “medida que proíbe a venda de maconha a menos de 250 metros de escolas —o Mellow Yellow estava a 230 metros de um curso de barbeiro”. A medida teve que ser aceita pela prefeitura de Amsterdã, mais liberal, como uma espécie de negociação com o governo nacional, mais conservador, que queria simplesmente proibir turistas de frequentarem esses estabelecimentos. “Sabemos que isso chateia quem foi afetado”, diz, à Folha de S.Paulo, Jasper Karman, porta-voz da prefeitura. “Tivemos que escolher. Acreditamos ter tomado a decisão certa.”
Cito essa situação porque para mim ela é um paradigma do que temos na América Latina, onde mesmo governos de orientação socialista ou social-democrata tiveram que permanentemente negociar com uma classe dominante extremamente conservadora. Sabemos que essa negociação chateia muita gente, sobretudo aqueles que são afetados por ela, mas foi uma negociação sempre necessária para evitar um mal pior.
Fiquemos no caso do Brasil, e do governo do PT. Durante todo o seu governo, Lula e Dilma tiveram que negociar os anéis para não perder os dedos. O que lhes rendeu inúmeras críticas vindas da esquerda, seja de partidos da esquerda, seja simplesmente de cidadãos que por terem votado nos candidatos do PT esperavam um governo 100% de esquerda. As pessoas são inocentes ao ponto de acreditarem que, após ter chegado ao poder, o PT poderia ter feito o que quisesse. E se não o fez, é porque não quis. É o tal do mito voluntarista da “vontade política”.
No Brasil de hoje, fala-se muito dos “erros do PT”. Mas esses “erros” são mesmo do PT, devem ser atribuídos unicamente ao PT ou, antes, eles teriam que ser atribuídos à classe dominante brasileira, àquele 0,1 % da população brasileira que detém a metade da riqueza de tudo o que é produzido em nosso país e que traduz esse poder econômico em poder legislativo, judiciário, executivo e, sobretudo, em poder midiático? Será que é tão difícil para as pessoas entenderem (refiro-me às pessoas que votaram no PT e que se dizem desiludidas) que o PT nunca governou sozinho esse país, mas sim junto com a direita?
Agora nós podemos ver a olho nu com quem o PT estava governando. Não é senão isso o governo Temer. Portanto, a questão que nós temos que colocar agora deve ser invertida: como o PT conseguiu fazer tudo o que fez mesmo tendo que governar com esses caras? Ora, o fato de que o governo do PT encabeçava esse governo de coalizão colocava certos limites à atuação da direita dentro do governo, mesmo que essa direita também colocasse limites à atuação do PT. O que vemos agora é essa direita atuando sem nenhum limite.
Nós nunca tivemos um governo do PT propriamente dito, nem no nível nacional, nem no nível estadual. Simplesmente nunca houve um governo de esquerda propriamente dito no nosso país. Nós não sabemos o que é isso. Portanto, não podemos fazer exigências ao PT como se isso tivesse algum dia existido. Em países como Canadá e Inglaterra, um partido só pode chegar ao poder se tiver maioria no Congresso. Em outras palavras, o partido que obtém maioria no Congresso nomeia o primeiro ministro. No Brasil, não existe nada disso. E como existe uma pulverização dos partidos políticos (eterno tema de uma reforma política que nunca acontece), surgiu o tal de “presidencialismo de coalização”.
Portanto, precisamos levar em consideração que a maioria dos chamados erros do PT não são erros do PT, são erros de uma coalizão entre partidos de esquerda e de direita que governaram o país nos últimos treze anos. É claro que, além desses, há erros que podem ser atribuídos, a meu ver, não tanto ao PT, mas ao Lula e à própria Dilma enquanto governantes. Por exemplo, todas as nomeações de juízes para o Supremo Tribunal Federal foram erros. Nem Lula nem Dilma foram capazes de realmente constituir um STF progressista, mesmo que possamos ver algum avanço da Corte atual em relação a um ou outro ponto. Mas o STF continua a serviço da classe dominante brasileira.
Também foram erros de Lula e de Dilma terem dado todas as condições para o surgimento desses monstros que se tornaram o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Não ter politizado as nomeações foi um erro, pois não politizá-las pela esquerda significa simplesmente permitir a politização pela direita. Temos hoje um Judiciário caracterizado pela ideologia das classes dominantes e nem Lula nem Dilma foram capazes de produzir qualquer tipo de mudança nesse sentido. E tudo em nome de uma neutralidade democrática que eles julgavam ser o procedimento correto a ser adotado nessas nomeações.
Nós poderíamos elencar muitos outros “erros” dos governos Lula e Dilma, mas creio que os “erros” pelos quais eles são acusados, enquanto “erros” do PT, têm outra natureza e só podem ser entendidos à luz das condições complexas, para não dizer complicadas, em que eles tiveram que exercer seus mandatos presidenciais.
Hoje já temos elementos suficientes para poder compreender que Lula não é nem nunca foi apenas um líder da esquerda brasileira. Enquanto tal, ele jamais teria chegado ao poder, jamais teria ganho uma eleição presidencial. A esquerda não tem como chegar ao poder no Brasil, e mesmo que chegue, cai.
Lula não chegou ao poder apenas como um líder da esquerda. Ele chegou ao poder como um líder da esquerda que conseguiu negociar um acordo com a direita. Isso ficou já totalmente claro em sua primeira eleição – não só na famosa Carta aos Brasileiros – e foi só por isso que ele finalmente conseguiu vencê-la após três tentativas fracassadas. Foi só quando incluiu explicitamente a direita em sua candidatura que Lula pôde vencer a eleição presidencial.
Em outras palavras, ele continuou sendo um sindicalista enquanto presidente. Ele continuou sendo o representante da classe trabalhadora a negociar com os “patrões”. O fato de que ele era agora Presidente da República não o tornou um “patrão”. Ele continuou sendo um trabalhador. A única coisa que o diferenciava dos outros trabalhadores era exatamente o fato de que, enquanto os representava, era recebido pelos “patrões” ou os recebia no Palácio do Planalto. Mas ele jamais se tornou um patrão.
A prova cabal disso é que a classe dominante, a classe dos patrões, continuou tratando-o como o que ele é: um simples sindicalista. A empáfia de um juiz como Sergio Moro diante de Lula, um ex-Presidente da República é, a meu ver, a melhor imagem do desprezo da classe dominante brasileira pela classe trabalhadora (incluindo nesse desprezo a classe média brasileira, que se identifica com a classe dominante e não com a classe trabalhadora). Por contraste, basta ver como Fernando Henrique Cardoso foi tratado em recente interrogatório pelo mesmo juiz Sergio Moro. Lula não passou a ser tratado como um patrão por ter sido presidente. Suas origens populares, operárias e sindicais lhe condenam a ser para sempre tratado pela classe dominante como qualquer brasileiro médio com as mesmas origens. Daí sua condução coercitiva sem justificativas.
Portanto, a chegada de Lula à presidência não significa, nem nunca significou uma chegada da esquerda ao poder no Brasil. Assim como nunca significou uma verdadeira modificação das relações de poder no Brasil. Significou simplesmente um refresco ou algo que nós poderíamos chamar hoje de uma política de diminuição de danos, para tomar de empréstimo uma expressão da área de saúde pública. Significou simplesmente a presença de um negociador na Presidência da República, que tentava conseguir junto à classe dominante melhores condições de existência para a classe trabalhadora.
A classe dominante teve que aceitar a partir de um determinado momento uma figura como Lula simplesmente pelo fato de que ela, a classe dominante, não tinha sido capaz nos últimos anos de criar uma liderança política que estivesse em condições de vencer uma eleição presidencial. O caso Aécio Neves é talvez o mais emblemático nesse sentido, pois conseguiu perder para uma presidente com baixa popularidade num momento de crise econômica aguda, o que contradiz todas as regras da ciência política. Mas isso se explica, talvez, pela fato de que a última vez que a direita teve um candidato vencedor, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, foi uma tragédia para o país. E uma parcela muito significativa dos brasileiros guarda até hoje uma lembrança muito clara dessa tragédia. Foi o que impediu uma vitória do PSDB nas quatro últimas eleições presidenciais no Brasil.
Não sendo capaz de ganhar eleições presidenciais, a classe dominante, no entanto, não deixa de dominar todas as outras instâncias de poder, mesmo a instância do executivo, pois mesmo nos governos do PT sempre houve a presença de representantes dessa classe em seus quadros, em vários dos seus ministérios. E no que diz respeito a outros poderes, o Judiciário, o Legislativo e o quarto poder, a mídia, a classe dominante sempre teve total controle dos mesmos. Em 2016, essa classe dominante viu uma janela, uma possibilidade de estar no poder sozinha sem o incômodo que era o PT.
O PT não se uniu a essa classe dominante por gosto. Ele o fez pelo Brasil. Já está mais do que na hora de nós entendermos isso.
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