Em entrevista à DW, historiadora debate as origens da corrupção no país e diz que brasileiros passam da euforia à depressão sem a justa medida. Para ela, elites políticas incultas favorecem discurso violento.
O complexo sistema de desvio de verbas públicas, escancarado pela Operação Lava Jato, em março de 2014, revigorou um amplo debate sobre as origens da corrupção no país. A concepção distorcida entre privado e público esteve, mais uma vez, no cerne de uma questão antiga, mas que ainda não atingiu nenhuma resolução. A corrupção pode ser considerada um mal iniciado com a proclamação da República, em 1889?
Para a historiadora Laura de Mello e Souza, essa discussão deve incluir, também, o Brasil colonial. "Todo sistema colonial pressupõe doses variáveis de corrupção", afirma a professora aposentada da Universidade de São Paulo e cátedra de História do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris.
Em entrevista à DW, ela analisa o enriquecimento ilícito de autoridades ainda sob domínio português e a escravidão como fator decisivo para a desigualdade social brasileira.
DW: É possível dizer que corrupção endêmica que assola o país, e que expõe a contraditória relação entre público e privado, apontadas por Sérgio Buarque de Holanda e Silvio Romero, ganhou consistência ainda sob domínio português?
Laura de Mello e Souza: Todo sistema colonial pressupõe doses variáveis de corrupção. Comporta o "spoils system": os funcionários coloniais não ganham muito, mas, em compensação, fazem negociatas vantajosas nas terras coloniais, e o poder central fecha os olhos, porque ninguém quer desempenhar funções administrativas em regiões longínquas e onde o sistema imunológico dos europeus mostra-se frágil. Dizia-se, no império português entre os séculos 16 e 18, que uma nomeação para a África equivalia a uma sentença de morte... Descontando-se o exagero, fossem franceses, ingleses, holandeses, espanhóis ou portugueses, os funcionários coloniais dos impérios europeus esperavam enriquecer nos seus postos, e a maioria enriquecia mesmo. A escravidão moderna, adotada pelos portugueses, também complica o cenário, mas não explica tudo sozinha. Ela baralha os limites do público e do privado, sendo parte constitutiva do sistema colonial do antigo regime. Mas é preciso deixar claro que ingleses e franceses traficaram escravos intensamente e construíram sua riqueza imperial sobre a escravidão.
O acirramento político crescente no Brasil tem gerado grande hostilidade em diferentes níveis: na sociedade, nas instituições democráticas, no Congresso. Essa agressividade é fruto de processos não resolvidos, como a escravidão e a baixa diminuição nos níveis de desigualdade social?
É cedo para dar explicações únicas e fechadas. Os meios de comunicação e as mídias sociais estimulam as reações violentas e as manipulam. Vivemos uma época de extrema violência. Os discursos políticos são violentos. O Brasil, com sua sociedade desigual e suas elites políticas incultas, é um espaço privilegiado para a proliferação da violência. Não me incluo, contudo, entre os que procuram razões únicas, explicações monocausais. O passado escravista obviamente não ajuda. Mas já o poderíamos ter liquidado, ou minorado seus efeitos se houvéssemos construído uma sociedade mais igual e mais educada.
Em 2018, completamos 130 anos desde que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Por que evoluímos tão pouco nas relações raciais?
Considerando o ponto de vista do historiador, as mudanças não foram tão poucas assim. Hoje em dia o racismo é crime, e isso é um grande passo. Atitudes racistas são punidas com a lei. Contudo, não penso que a situação iníqua que persiste no que diz respeito aos brasileiros negros e mestiços possa ser atribuída unicamente ao racismo e à escravidão. Ela é fruto da profunda desigualdade econômica e do descaso para com políticas públicas que favoreçam as populações carentes. Sem investimento maciço na educação não se chega a uma sociedade mais igual, nem à superação do racismo à brasileira, que é extremamente sutil e incide principalmente sobre os negros e mestiços pobres.
As conquistas políticas brasileiras no período colonial tinham como artificio principal a luta armada, a revolta, restringindo a participação política a poucos cidadãos. Esse cenário de exclusão restringiu o poder a uma elite que segue dominante até hoje?
As revoltas do passado tiveram, muitas vezes, protagonismo maciçamente popular. Há guerras de índios, do sertão nordestino a Goiás. Canudos e Contestado não foram movimentos de elite. Os quilombos contavam-se às centenas em várias regiões brasileiras. Já a participação política foi extremamente restritiva, mas, apesar de não conhecer o assunto, não penso que fosse muito diferente do sistema político existente em outros estados ocidentais. Depois, a elite dominante hoje é diferente da que foi dominante em diversos momentos do passado. Essa que temos hoje pode ser comparada à da República Velha? Não penso. No Brasil há um intenso fenômeno de circulação das elites, sobretudo nas regiões mais ricas. O desalentador é que as novas elites incorporam a maior parte dos vícios e preconceitos das antigas.
Esse estigma de negação e descrença que tem acompanhado o Brasil é um fato novo na história nacional ou ele encontra diálogo no período colonial?
A negação e a descrença são fenômenos pendulares da nossa história. Somos um povo ciclotímico, passamos da euforia à depressão, sem estágio na justa medida. Ou somos o país do futuro, ou repetimos que "isso só podia acontecer no Brasil". É uma tradição lusitana. Os portugueses reclamam o tempo todo de si mesmos. Estamos, portugueses e brasileiros, eternamente na beira do abismo. E a situação colonial não ajudou muito: o poder real sempre distante, meio inacessível, representado por funcionários que passavam um tempo na terra e iam embora, mais ricos, de preferência. O estatuto colonial traz consigo a ideia da exploração desenfreada e da terra colonial como lugar de passagem.
Autoria Guilherme Henrique (de São Paulo)
DW
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