quarta-feira, 21 de junho de 2017

Sobre Jack London, a Ocupação Lanceiros Negros, o Chefe da Casa Civil, um pouco conhecido livro de História de uma cidade do extremo sul, e o sentido das coisas (por Gérson Wasen Fraga)

É incrível como os livros de História possuem a capacidade de nos fazer refletir sobre nosso presente. Quando menos esperamos, a realidade à nossa volta evoca novas e antigas leituras, e as coisas passam a ter seu verdadeiro sentido desvelado. Ou ainda, passam a não fazer mais sentido nenhum, conforme o caso.

Em 1903, o escritor estadunidense Jack London publicava “O Povo do Abismo”. O texto, um misto de reportagem e observação participativa, relata a inserção do autor no mundo dos excluídos pela sociedade industrial de então. Trabalhadores tentando sobreviver com salários irrisórios, abrigos e albergues sem condições de dignidade, a truculência policial contra os que nada tinham ou ainda o abandono e a miséria sofridos por aqueles que labutaram uma vida inteira quando chegados à velhice são alguns dos fatos relatados ao longo de mais de trezentas páginas por um autor que mergulhou em um mundo “invisivel” aos beneficiários do sistema. London nos mostra o quadro humilhante de degradação a que o ser humano estava destinado no coração daquele que era, à época, o mais importante e rico império surgido a partir da Revolução Industrial, por duas razões muito simples: por serem trabalhadores e por serem pobres.



Há dois pontos ao longo do livro de London que se repetem monocordicamente, assinalando questões que, em sua observação, compunham o cotidiano daquelas mulheres e daqueles homens do começo do século XX. O primeiro é a condição geral das habitações (efetivas ou emergenciais) no East End londrino, e que se constitui em parte fundamental da realidade de miséria denunciada na obra. O outro ponto é o foco da justiça e do Estado na defesa da propriedade privada, colocada muito acima da vida e da dignidade humana. Deixemos a palavra com o próprio Jack London:



“Numa civilização francamente materialista e baseada na propriedade, não na alma, é inevitável que a propriedade seja exaltada em detrimento da alma, e que crimes contra a propriedade sejam considerados muito mais sérios que crimes contra a pessoa. Triturar a mulher de alguém até deixá-la mole como geléia e quebrar algumas de suas costelas é uma ofensa trivial em comparação a dormir sob as estrelas por falta de meios para pagar por um teto. O rapaz que rouba algumas pêras de uma rica companhia ferroviária é uma ameaça maior à sociedade do que o brutamontes que agride um velho de mais de 70 anos. E a garota que finge ter emprego para conseguir hospedagem comete uma ofensa tão perigosa que, se não fosse severamente punida, faria desabar todo o sistema de propriedade”.2



Os exemplos trazidos por London não são hipotéticos. Na sequência de seu texto, ele cita diversos relatórios policiais relacionados às linhas acima.



Confesso que “O Povo do Abismo” tem me acompanhado nos últimos dias. Andou alguns anos em minha estante, saindo volta e meia para a leitura de algum pequeno trecho a ser utilizado em aula, mas somente agora este livro, que me foi indicado por um amigo e me ofertado de presente por outro, ganhou a merecida atenção. Triste ironia.



Sim, pois foi com muita tristeza que o relato centenário de Jack London veio à minha mente no exato momento em que soube da ação policial na Ocupação Lanceiros Negros, dando um sentido claro ao que estava acontecendo. A truculência de uma polícia cada vez mais despreparada e especializada em agredir trabalhadores e a brutalidade de algo que se autointitula “justiça”, e que ordena que trabalhadores, idosos e crianças sejam colocados no olho da rua em meio a uma noite fria (“para não atrapalhar o trânsito”, como fomos informados pela grande mídia), sob o efeito da violência e do gás lacrimogênio, são dignos das páginas com que Jack London retrata a sociedade de carência, miséria e opressão do East End londrino no começo do século XX.



Qual o crime daqueles que foram expulsos da ocupação? Ocupar um prédio público para buscar uma alternativa de moradia digna, ao invés de perambular pelas ruas com seus filhos? Dar função social a um prédio abandonado pelo poder público? Ameaçar a propriedade de um Estado cada vez mais privado e menos público? Evocar em nossas subconscientes a figura dos Lanceiros Negros (figura esta tão maltrada por certa historiografia festiva a cada setembro)? Ou será que seu crime é simplesmente serem pobres e despossuídos, assim como os moradores do East End londrino retratados por Jack London?



Pela mão de Jack London, “O Povo do Abismo” nos leva a um cenário de carência e miséria. Agora, fazemos o mesmo caminho graças à ação da “justiça” e do “governo” do estado do Rio Grande do Sul. Contudo, se a carência material está com aqueles que, privados de um lugar para morar, haviam ocupado um prédio público e abandonado, dando-lhe uma função social e humanitária, a miséria está na alma daqueles que por hora nos governam.



Tudo isto andava pela minha cabeça quando tomei conhecimento da nota emitida pelo Chefe da Casa Civil, Fábio Branco, justificando e elogiando a eficiência da Brigada Militar na ação de despejo. No texto da referida nota, o Chefe fala em “depredação de bens públicos”, “interesses ideológicos e políticos”, “obstrução de mandatos judiciais”, e ainda arremata dizendo que “não vivemos mais no tempo da ditadura”. Ora, qualquer portoalegrense que tenha passado pela frente da ocupação Lanceiros Negros e que lembre das condições do imóvel sabe que a degradação do prédio não é devido à ação de seus moradores, mas sim fruto do estado de abandono promovido por seu proprietário, que vem a ser o próprio Governo do Estado. Em segundo lugar, argumentar que cerca de setenta famílias (inclusive velhos e crianças) prefiram morar em condições precárias por “interesses ideológicos” é algo que ultrapassa o limite do razoável. Quanto à obstrução de “mandatos judiciais”, fico me perguntanto sobre a decisão judicial de 2015, assinada pelo desembargador Jorge Luis Dall’Agnol, determinando que os salários dos servidores estaduais não seja objeto de parcelamento, tomando como base o artigo 35 da própria Constituição Estadual, ou ainda a relutância deste mesmo governo em apresentar de forma clara os dados relativos à distribuição de incentivos fiscias, em que pese as determinações do Ministério Público.



Mas foi a afirmação de que “não vivemos mais no tempo da ditadura” que me trouxe à mente outro livro de História, este, menos famoso que o de Jack London. Trata-se de “Rio Grande Século XX: olhares históricos”, uma coletânea de artigos sobre a História da cidade de Rio Grande (da qual Fábio Branco foi prefeito) organizada pelos jovens historiadores Leandro da Costa e Lidiane Friderichs, lançada em 2012 e que tive a honra de prefaciar. No último artigo desta obra, o também historiador Francisco Cougo Junior nos relata, de forma didática e detalhada, como o então prefeito Fábio Branco, em conjunto com a Câmara de Vereadores da Raínha do Mar, resolveu homenagear o “ilustre cidadão riograndino Golbery do Couto e Silva” com um busto em praça pública, no exato momento em que o golpe militar completava cinquenta anos3. Para quem não sabe ou não lembra, o agora Chefe da Casa Civil argumentou em defesa própria e da homenagem: “Eu não quero fazer juízo sobre a ditadura de 1964, eu nem era nascido”.4 Dias depois, uma comitiva de representantes do Movimento Ditadura Nunca Mais!, sensibilizados pela ignorância histórica do então prefeito, resolveu presenteá-lo com um conjunto de obras produzidas sobre o tema, dentre os quais os títulos de autoria de Élio Gaspari (“A Ditadura Derrotada”, “A Ditadura Escancarada”…). Não se sabe se foi pelo forte caráter ideológico das obras e de seu autor, ou por outro motivo alheio a este, mas o fato é que o grupo sequer foi recebido. Contudo, alguns dias depois, o então prefeito Fábio Branco resolveu abrir as portas do paço municipal para receber livros de presente, desta vez entregues por representantes do Exército Brasileiro, e de autoria do sargento José Vargas Jiménez, participante ativo do combate à Guerrilha do Araguaia.5



Assim, apenas podemos crer que a afirmação do Chefe Fábio Branco seja em tom de lástima, e não de celebração. Caso contrário, não fará o menor sentido.



.oOo.


1 Professor de História na Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim.


2 LONDON, Jack. O povo do abismo. Fome e miséria no coração do império britânico: uma reportagem do início do século XX. São Paulo: Perseu Abramo, 2004, p 211.


3 COUGO JUNIOR, Francisco. “Golbery e a Cidade Surreal”: reflexões de uma luta sem fim. In: COSTA, Leandro Bráz; FRIDERICHS, Lidiane (orgs.). Rio Grande século XX: olhares históricos. Pelotas: Editora e gráfica universitária, 2012.


4 http://www.sul21.com.br/jornal/a-mais-bela-derrota-da-eleicao-gaucha/


5http://www.riogrande.rs.gov.br/pagina/index.php/noticias/detalhes+6b1f2,,prefeito-recebe-livros-sobre-historia-da-guerrilha-do-araguaia.html#.WUNc_TeQxdg


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Gérson Wasen Fraga é historiador, professor da UFFS – Universidade Federal da Fronteira Sul.

Sul 21 


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